30 Mai 2020
Olhando para as coisas de fora, o caso Bose traz à tona a hipótese de que, também dentro do Mosteiro de Bose, explodiu um conflito entre “ideal comunitário” de “vida evangélica” tradicional (ou “vida religiosa” como fim em si mesma) e urgências de evangelização, que talvez tenha levado Enzo Bianchi a se mover em espaços abertos, sempre como “monge”, mas menos ligado ao “mosteiro”.
O comentário é de Alberto Simoni, frade dominicano italiano, em artigo publicado em Koinonia-forum, n. 655, 29-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Independentemente de situações e dinâmicas internas, todas a serem entendidas, o caso Bose se presta a algumas considerações de caráter mais geral, talvez menos interessantes, mas certamente importantes.
Eu anotava de passagem no último Koinonia-forum que, nos momentos de viradas epocais na história da Igreja, a resposta a várias reivindicações ocorria com a criação de novas ordens religiosas, que, porém, parece que já viveram o seu tempo e vivem por força de inércia.
Mas, se hoje se continua falando de “mudança de época”, a resposta não parece poder ser a mesma. E, se as reivindicações de virada do Vaticano II ainda devem ser satisfeitas, um passo decisivo pode vir não mais através de formações pré-constituídas e autorreferenciais, mas sim de baixo, como um chamado à fé para cada indivíduo em função eclesial e de missão. É uma convicção valorizada pela experiência!
Mesmo que esse relevo não fosse captado – até por ser totalmente contra a corrente –, eu nunca fiz mistério em dizer que a generalizada resposta do “monaquismo” ao Concílio, por mais bem-sucedida que fosse, era a menos apropriada, exceto por mudanças de rota dentro dos próprios mosteiros, como pode ter ocorrido em Camaldoli com o Pe. Calati.
Em geral, a proliferação de iniciativas e fenômenos monacais só criou polos de atração e sangramento do corpo eclesial de base, onde uma efetiva reforma deveria ter ocorrido, mas onde era mais árdua, como demonstra o fenômeno paralelo das “comunidades de base”. Assim como as várias tentativas de repensar os próprios conventos em relação à implementação do Concílio foram abortadas, em nome de uma “vida comunitária” absolutizada e formal, que surgiu como pretexto e como critério de marginalização, sem margens de verificação.
Olhando para as coisas de fora, o caso Bose traz à tona toda essa história vivida, mas não escrita, e nada impede de levantar a hipótese de que, também dentro do Mosteiro de Bose, explodiu esse conflito entre “ideal comunitário” de “vida evangélica” tradicional (ou “vida religiosa” como fim em si mesma) e urgências de evangelização, que talvez tenha levado Enzo Bianchi a se mover em espaços abertos, sempre como “monge”, mas menos ligado ao “mosteiro”. É quando o apelo à “fraternidade” é jogado em sentido único de maneira formal, com fórmulas preconcebidas de equilíbrios pré-estabelecidos nada inclusivos!
Mas não é isso que interessa esclarecer, mas sim o fato de que a experiência de Bose, iniciada no dia 8 de dezembro de 1965, dia do encerramento do Concílio (eu estava na Praça de São Pedro), tornou-se um símbolo de renovação conciliar e, nesse sentido, serviu de porto e de refúgio para muitos, dando origem ao mesmo tempo a um fenômeno de heterogênese dos fins e, portanto, a contradições intrínsecas que explodiram somente agora.
Colocando-se em imediata continuidade com o Vaticano II, talvez prematuramente demais, o fenômeno Bose nascia em contraste com o próprio Concílio: de fato, repropunha formas de vida cristã e espiritual datadas, embora atualizadas, símbolo de outras épocas, ou seja, daquela cristandade que se queria ultrapassar. A própria ideia de mosteiro permanecia como índice de sedentarismo, de territorialidade, de estabilidade institucional, de espaço sagrado e de laicidade consagrada, de governo monárquico.
Em suma, um odre velho para um vinho novo, mesmo que bem-sucedido, porque, no fundo, “ninguém que tomou vinho envelhecido deseja vinho novo, pois diz: ‘O velho é melhor!’” (Lucas 5,39).
Era necessário criar reservas ou cenáculos ou inserir-se como fermento evangélico na massa, naturalmente “não o velho fermento nem o fermento da maldade ou da iniquidade, mas sim os pães ázimos da sinceridade e da verdade” (1Coríntios 5,8)?
É precisamente essa ambiguidade que faz com que as tensões presentes na Igreja em relação às apostas do Vaticano II também tenham transbordado sobre Bose e esteja prevalecendo estranhamente a ala de fidelidade ao Concílio como fato realizado, saia derrotada a tendência a seguir o seu impulso propulsor rumo a horizontes diferentes como sistema aberto.
De algum modo, Bose se torna a sua agulha da balança ou o seu papel de tornassol, um espião para quem pressente o perigo. Está bastante claro, de fato, que o problema não pode ser apenas de ordem disciplinar ou de gestão do poder, mas envolve também escolhas de fundo; caso contrário, seria incompreensível o apelo ao Vaticano e a intervenção do próprio papa.
Por tudo isso, o caso não pode ser arquivado como um fato da crônica, mas deve ser aproveitado como oportunidade para chegar ao coração de uma situação geral da Igreja, que precisa de clareza e de coragem, e não pode permanecer sob a sombra da suspeita, da alusão ou da condenação gratuita por parte da “verdadeira Igreja” pré-conciliar e pré-tudo.
Com o único objetivo de um discernimento abrangente, tento uma leitura do comunicado assinado pela “Comunidade de Bose” – difícil de saber se acordado e aprovado por todos os monges –, que começa de uma maneira bastante controversa: quando fala de “sérias preocupações que chegaram de muitas partes à Santa Sé”. Portanto, não é só uma questão interna, mesmo que não se saiba de que partes chegam essas “sérias preocupações” e, acima de tudo, não se entende a gravidade que justifica o recurso à autoridade suprema, sem encontrar uma solução interna.
Se o problema é o “exercício da autoridade do Fundador, a gestão do governo e o clima fraterno”, trata-se ainda de questões domésticas, e é verdadeiramente muito pouco para invocar e para justificar uma intervenção tão encorpada e de alto perfil, porque, então, as “Visitas Apostólicas” deveriam se multiplicar infinitamente e com resultados imprevisíveis.
Sem muita enrolação, está em questão, portanto, a “relevância eclesial e ecumênica da Comunidade de Bose e a importância de que ela continue desempenhando o papel que lhe é reconhecido, superando graves inconvenientes e incompreensões que poderiam enfraquecê-la ou até anulá-la”.
Se, a esse respeito, até o Santo Padre se sentiu no dever de oferecer uma ajuda à Comunidade com a Visita Apostólica e, depois, de assinar o decreto de afastamento, é legítimo se perguntar o porquê: se pelo fato de Bianchi e companheiros não seguirem a sua linha quanto ao papel da Comunidade, ou precisamente porque a seguem.
Seria justo saber isso, até para não ouvir gritos aqui e acolá de acusações de heresia e cantos de vitória sobre a morte de uma Igreja conciliar. Também podemos apelar submissamente ao papa para que nos ilumine e não nos deixe na incerteza de saber se vale a pena ou não nos ater ao que ele propõe, até uma “conversão pastoral”.
Talvez bastaria tornar pública, neste ponto – porque é um fato de relevância pública – o “relatório elaborado com base na contribuição dos testemunhos livremente concedidos por cada membro da Comunidade”. Mas, caros coirmãos monges, e antes desses últimos anos onde e com quem vocês estavam? Tudo aconteceu de repente, quase por mágica?
De todos os modos, existem as conclusões da Santa Sé, fruto de atento discernimento e de oração, que, por acaso, não dizem respeito apenas a Enzo Bianchi e companheiros de desventura, mas também a toda a comunidade monástica, que parece estar sob um comissário, e para a qual “a Santa Sé delineou um caminho de futuro e de esperança, indicando as principais linhas de um processo de renovação”.
Portanto, parece estar em questão esse “processo de renovação”: mas, então, deve-se pensar que foi Enzo Bianchi quem impediu esse “renovado impulso à nossa vida monástica e ecumênica” da Comunidade? O que há de errado em explicar isso?
Seria uma excelente oportunidade para dar exemplo daquela clareza e coragem de que precisa uma Igreja em apneia, sem mais capacidade de discussão e debate. Dizem-nos que esse caso também veio à tona e se tornou de razão pública não por escolha de transparência, mas sim no momento em que a Comunidade se obrigou a sair da confidencialidade porque “a anunciada recusa dos procedimentos por parte de alguns destinatários determinou uma situação de confusão e desconforto maiores”. Em suma, porque alguém se sentiu no direito de quebrar os pratos! Como se, com o fato de se limitar a citar os nomes dos diretos envolvidos, o caso ficasse mais bem esclarecido e silenciado.
Em vez disso, existe um comunicado de Enzo Bianchi com alguns esclarecimentos que corroboram cada vez mais a hipótese de um choque de conteúdos e de soluções unilaterais de caráter puramente formal.
Entre outras coisas, ele escreve: “Em vão, a quem nos entregou o decreto, pedimos que nos fosse permitido conhecer as provas das nossas faltas e que pudéssemos nos defender de falsas acusações. (...) Nesta situação, para mim, assim como para todos, muito dolorosa, peço que a Santa Sé nos ajude e, se fizemos algo que contrasta a comunhão, que nos seja dito. De nossa parte, no arrependimento, estamos dispostos a pedir e a dar misericórdia. No sofrimento e na provação, pedimos igualmente que a comunidade seja ajudada em um caminho de reconciliação”.
Aqui, não se trata de se erguer como juiz e cuspir sentenças, mas sim de querer entender o que efetivamente está em jogo nos seus efeitos e nas suas repercussões, porque é claro que não se pode reduzir tudo à administração comum ou a procedimentos disciplinares, nem mesmo motivado demais.
Ninguém pode nos impedir de pensar que estamos na presença de uma operação de normalização, na qual infelizmente o Papa Francisco também está envolvido, enquanto ressoa o absoluto silêncio da Igreja italiana, talvez na tentativa de reduzir tudo a fatos pessoais corriqueiros. Falar de “normalização de Francisco”, até prova em contrário, pode significar que ele é o sujeito, mas também pode significar que ele é o seu objeto. Também por isso não é lícito levar as coisas de ânimo leve e deixá-las fluir para arquivá-las o mais rápido possível, mas – goste-se ou não – é necessário enuclear a questão de fundo, para que seja possível se pronunciar aberta e construtivamente de um lado e do outro.
Certamente, somos levados a nos perguntar o que está acontecendo entre as milhares de pessoas que se referiram à Bose em todos esses anos. E onde estão: são uma realidade e uma voz dentro da Igreja italiana capazes de suportar um peso e de se fazer ouvir?
Precisamente essa interrogação me leva de volta à hipótese e ao temor inicial em relação à Bose: que ela representou uma grande reserva de oração, de espiritualidade, de ecumenismo, de diálogo, de acolhida, mas como em uma bolha fora de dinâmicas e problemáticas históricas da Igreja real, que requerem outras lógicas evangélicas e pastorais.
Assim como se reforça a hipótese de que Enzo Bianchi caiu em desgraça justamente porque tentou sair e fazer com que se saísse dessa bolha em resposta às solicitações do próprio Papa Francisco.
Mas, então, também se reforça a interrogação – que seria bom que fosse resolvida – de saber o que o papa efetivamente espera de nós: qual é o verdadeiro sentido da sua intervenção?
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Olhando de fora para Bose: “normalização” do Papa Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU