26 Mai 2020
"Nada deste mundo nos é indiferente. É uma passagem da encíclica Laudato si' (que completa exatamente cinco anos nos próximos dias), colocada logo no início, no segundo parágrafo, onde é dada voz ao clamor da terra devastada pelo homem, alertando: O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”, escreve Marco Revelli, cientista político italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 26-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A pandemia nos obriga a um repensamento global e radical. Porque nos tocou ferozmente "no osso e na pele", diz o Livro de Jó, exige uma verificação impiedosa dos deveres e dos poderes.
Ainda mais quando, pelo menos aqui na Itália e na Europa, parece que estamos vendo o fim do túnel. E a verificação, para ser eficaz, só poderá ocorrer em nome de um princípio simples e exigente: "Nada deste mundo nos é indiferente".
Niente di questo mondo ci risulta indifferente.
Associazione Laudato si'.
Un'alleanza per il clima, la Terra e la giustizia sociale
(Foto: Reprodução da Capa | Facebook)
É uma passagem da encíclica Laudato si' (que completa exatamente cinco anos nos próximos dias), colocada logo no início, no segundo parágrafo, onde é dada voz ao clamor da terra devastada pelo homem, alertando: “O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. E também é o título de um livro extraordinário (publicado pela Edizioni Interno) de cuja capa um babuíno nos olha perplexos sob o lema "A normalidade era o problema".
Livro "extraordinário" – ou seja, que nos eleva acima da normalidade - por duas boas razões. A primeira diz respeito à maneira como nasceu, foi pensado e escrito: por muitos, por muitas mãos, por dezenas de estudiosos, competentes, militantes das mais variadas associações, crentes e leigos, se integrando na associação "Laudato si'", que durante meses se reuniram, discutiram, verificaram e compararam suas ideias, muitas vezes discordantes, as reformularam, as tornaram compatíveis, reconduzindo-as à unidade de um discurso articulado e compartilhado, como sempre deveria ser feito, entre os que participam do mesmo horizonte de valores e, acima de tudo, sentem a urgência do tempo.
A segunda razão diz respeito ao conteúdo: finalmente, uma abordagem verdadeiramente "total" aos males que nos afligem e às soluções necessárias. O estado do planeta visto como "um todo", no qual devastação ambiental e devastação social, catástrofe ecológica e desigualdade econômica, não somente se entrelaçam, mas parecem aspectos do mesmo problema: desprezo pela terra e desprezo pelos homens, até desprezo por si e pelo próprio futuro são o produto da mesma raiz e do mesmo erro.
Um pensamento errado, que deu origem a um paradigma socioeconômico distorcido e a um estilo de vida insensato.
O livro já havia sido elaborado antes, mas o tsunami do coronavírus que marcou os três meses que antecederam sua publicação acabou por dar seu aval, confirmando sua visão e reforçando sua mensagem.
Como escreve Daniela Padoan, a curadora, no ensaio No tempo do contágio, que abre o volume: "Diante da pandemia, o titanismo de nossa cultura é forçado a aprender a lição de estar à mercê", explicando como a experiência que estamos vivendo - em seu caráter total e global - é, de certa forma, "uma figuração" das argumentações contidas no texto. Dela aprendemos, na dor, a fragilidade estrutural do Antropoceno, deste mundo construído à imagem e semelhança de seu hóspede humano. Tivemos oportunidade de ver, despida, "a sociedade espectral do management totalitário", para usar a expressão do filósofo canadense Alain Deneault citado pela curadora.
Entender (para quem quisesse entender) o quanto falaciosa e enganosa fosse aquela racionalidade instrumental que elevamos a estatuto do universo - garantia de sua perfeição - e que, ao contrário, prova ser mortífera, incapaz de prever e prevenir, prenúncio de desordem e queda, perigosa para o ser vivo.
E quanta hybris - quanta arrogância, em nosso cego desafio ao céu - havia no culto do fazer e no mito de uma eficiência que, ao exaltar apenas um aspecto da existência (aquele econômico e técnico), sacrifica tudo o mais. Ou seja, o todo.
No livro, a partir do diagnóstico dos males emerge um programa realista de resposta: em “Clima”, a "radiografia da catástrofe" se alia ao princípio de que "a justiça climática é justiça social".
Foto: Reprodução Il Manifesto
Em "Depredação ambiental", a necessidade de uma luta contra a "agricultura 4.0" que ameaça "direitos humanos, sociais e da natureza". Sobre as migrações, a alegação de que "Migrar é um direito" segue o dever de denúncia da "morte" no mar como uma “verdadeira emergência".
A descrição das dimensões da pobreza está entrelaçada com a denúncia da "economia de descarte" como alma do paradigma hegemônico contemporâneo, dramaticamente visível também na gestão da emergência sanitária.
Em "Finanças e dívida", a forte definição de "Capital financeiro global como forma de criminalidade organizada" é colocada ao lado da valorização da "economia do dom".
E depois o Trabalho: da afirmação peremptória de que "não há liberdade em vender a própria força-trabalho", à descoberta das "múltiplas solidões das trabalhadoras e dos trabalhadores".
E depois o Ecofeminismo: "Libertação das mulheres, da natureza e do ser vivo". A Cultura do limite. E muito mais.
Uma coletânea perfeita para quem quer entrar no território novo que o vírus nos deixa no luto.
Com uma forte consciência: que já estávamos doentes antes da chegada do Covid-19. Muito antes.
“Não despertamos diante de guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Continuamos impertérritos, pensando que ficaríamos para sempre saudáveis em um mundo doente", disse o Papa Francisco naquela Praça de São Pedro metafísica e irreal, deserta e faiscante de chuva, em 27 de março.
Também teremos que ouvir, hoje, todas aquelas vozes e outras que foram se somando, se não quisermos finalmente nos encontrar tateando no escuro no final do túnel.
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A pandemia exige uma verificação dos deveres e poderes. Artigo de Marco Revelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU