A proposta do New York Times para respeitar as vítimas de Covid

Reprodução da capa do New York Times, edição de 24-05-2020.

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26 Mai 2020

Dar um nome àqueles que perderam a vida em batalha, nas trincheiras, sob os escombros de um bombardeio: até os monumentos ao soldado desconhecido representam a homenagem a uma busca impossível, às vezes sem resultados satisfatórios", escreve Umberto Gentiloni, historiador italiano, professor de história contemporânea na Universidade La Sapienza de Roma, em artigo publicado por La Repubblica, 25-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Há quase três meses, acompanhamos os números como reflexo imediato do contágio de Covid-19: o boletim da proteção civil, os dados separados por região, país, continente; a curva dos pacientes internados, dos curados, das mortes diárias. Um exercício inquieto para estar informado, tentar entender o que pode acontecer no futuro próximo. Os números produzem um retrato impiedoso, ferramenta preciosa a ser interpretada para apoiar indagações científicas e diagnósticos circunstanciados. Mas a perda de muitos, o vazio daqueles que não estão mais aqui, não podem ser esgotados nos números cruéis dessas semanas: o caminho da humanidade testemunha como a força dos nomes, das histórias, das identidades perdidas seja a base de uma civilização compartilhada. Uma vida vale todas as vidas em toda parte do mundo, afirmava-se com orgulho e uma boa dose de provocação algumas décadas atrás.

A primeira página do New York Times de 24 de maio vai direto ao coração dos leitores: mil nomes com notas biográficas para reunir e representar o um por cento das quase cem mil vítimas estadunidenses da infecção. Um massacre de homens e mulheres. O nome é um tijolo de memória, um componente único e irredutível que transmite os sinais de um itinerário, os legados de uma biografia individual para as gerações vindouras. Dar um nome àqueles que perderam a vida em batalha, nas trincheiras, sob os escombros de um bombardeio: até os monumentos ao soldado desconhecido representam a homenagem a uma busca impossível, às vezes sem resultados satisfatórios. Os nomes tornam-se uma testemunha preciosa na memória subjetiva individual e na dimensão pública, muitas vezes material. Basta referir-se aos monumentos para as vítimas da máfia ou aos bancos de dados para investigar a longa trilha de sangue do terrorismo político e de massacre.

Os caídos dispostos lado a lado no tecido das bandeiras que rememoram o atentado às torres gêmeas, esculpidas nas lajes de granito do memorial do Vietnã em Washington, no muro que lembra o genocídio de Ruanda em Kigali ou nas lápides no chão do massacre de Srebrenica. Uma lista de feridas e significados que poderia ser muito mais longa: o nome como um rastro inapagável que sustenta o monumento até se tornar um seu componente constituinte. A partir do nome, pode ser iniciada uma pesquisa histórica, uma investigação sobre os processos dos culpados, uma reprodução que permita trazer consigo o fragmento de uma história maior. Para apresentá-lo com a esperança das palavras do jornal de Nova York "Não são simples nomes em uma lista. Eles eram nós". Trata-se de um longo caminho que vem do passado, um legado do século passado como reação à ferocidade nazista dos nomes eliminados.

Os deportados eram mortos ou tornaram-se números sem rosto, dignidade, pensamento. No nome submerso e esquecido, encontramos o profundo significado do Holocausto, o projeto para aniquilar uma parte da humanidade, para apagá-la da face da terra, removendo o seu bem mais precioso, sua unicidade irrepetível: marcar um número na pele ou como relatou um sobrevivente como Shlomo Venezia (Sonderkommando Auschwitz, 2007) chamar de prisioneiros de "peças", engrenagens inconscientes de um mecanismo que não admite pessoas ou inteligência.

Esses nomes, hoje como então, são o símbolo de uma profundidade humana e social, representam o antídoto mais eficaz para os funerais sem caixões ou saudações derradeiras, para a ferocidade indistinta de valas comuns, para os cemitérios sem símbolos, para o ódio nacionalista da limpeza étnica. A pandemia não é uma guerra nem seria útil arriscar comparações insustentáveis. Mas a memória dos caídos pode unir memórias e contextos, aproximar cantos distantes do planeta, construir um tecido precioso de energias e memórias.

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