16 Mai 2020
“Já não chegou o momento de levar a sério o Evangelho e vivê-lo com todas as suas consequências? Se o Papa Francisco deu uma nova e mais evangélica guinada em relação ao papado na Igreja, porque todo o episcopado e o clero não segue o mesmo caminho traçado pelo sucessor de Pedro? Se isto acontecesse, sem dúvida alguma, toda a Igreja teria a atualidade e a presença que o P. Jorge Mario Bergoglio possui”, escreve José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digial, 14-05-2020. A tradução é do Cepat.
É um fato, que ninguém duvide: a pandemia de coronavírus é o acontecimento universal mais perigoso e preocupante que ocorreu em nosso planeta, desde a Segunda Guerra Mundial. E o mais grave é que não sabemos nem quando, nem como acabará.
Como é lógico, em um assunto tão extremo como este, estiveram (e estão) muito presentes a medicina, a economia, a política, o direito, os meios de comunicação e todas as ciências, saberes e tecnologias que puderam ser utilizadas para remediar ou minimizar esta espantosa desgraça em que todos nós, seremos humanos, nos vemos envolvidos. E é por isso – por este envolvimento universal em um problema tão grave e que afeta a todos nós – que inevitavelmente surge a pergunta: E a religião? Está presente neste assunto de tamanha gravidade? E se está, onde se nota a sua presença?
Eu me faço estas perguntas porque, desde a minha já distante juventude, dediquei-me inteiramente ao estudo e o ensino da Teologia. E é por isso que, desde que começamos a padecer o perigo e as trágicas consequências do coronavírus, não deixo de pensar e me perguntar: “E em tudo isto, que estamos padecendo, está ou não está presente a religião? E se está, sua presença serve para algo?”. Sinceramente, não sei o que está ocorrendo, nesta ordem de coisas, em outros continentes e em outros países. Na Espanha – me parece –, sem dúvida, existem muitas pessoas que precisam da ajuda das crenças religiosas para suportar e superar, diante da doença, a perda de entes queridos, as privações que o confinamento que estamos passando impõe, os problemas econômicos que tudo isto acarreta, etc.
Mas o problema que mais me preocupa em todo este assunto – confesso sinceramente – é o problema que representa a presença (ou ausência) da Igreja como tal. É verdade que, nos meios de comunicação, precisamente ao informar sobre a pandemia, menciona-se o que fez ou disse o Papa Francisco, um homem de Deus, que cada dia admiro mais. Mas, o que dizemos dos bispos e do clero na Espanha? Como é possível que, a esta altura, a Conferência Episcopal Espanhola não tenha apresentado um Documento oficial, sério, bem justificado, sobre o problema que temos nós, crentes em Jesus Cristo, por causa desta pandemia tão grave?
É claro, há bispos e sacerdotes mencionados nos meios de comunicação em razão da pandemia. E não faltam casos exemplares, dignos de elogio e imitação. Mas também é verdade que se fala, talvez com mais frequência, de fatos chamativos e chocantes, quando se informa da presença das forças da ordem pública, que precisam comparecer em igrejas e catedrais, para impedir a violação de normas que cabem a todos.
De qualquer modo, no final das contas, nada do que foi dito é o mais sério. O que mais me faz pensar é que, se algo está se tornando evidente, é óbvio que nossa Igreja dá a impressão de que, quando se vê limitada ou privada dos rituais, cerimônias e celebrações do “sagrado”, não tem outros projetos, outros horizontes e, sobretudo, outras preocupações. Se fecham os templos da Igreja e fica sem missas, batizados, comunhões, casamentos, enterros, procissões e funções semelhantes, o que faz? Ao que se dedica? O que diz às pessoas? Dá a impressão de que não sabe o que fazer. Nem tem nada a dizer. É justamente o que está acontecendo na penosa situação em que estamos vivendo.
No entanto, esta sociedade (e este mundo) que tanto está sofrendo, justamente o que mais precisa é o que a Igreja não acerta em dizer. Porque é algo tão importante e decisivo, que não se comunica com cerimônias, palavras e discursos. Comunica-se com fatos, com nossas próprias “obras”. As obras (“erga”) que Jesus fazia (Mt 11, 2). De que “obras” estou falando?
No Evangelho, fica claro que Jesus se interessou vivamente por dois grandes problemas que preocupam a todos nós. Refiro-me à “saúde” e à “economia”.
Antes de tudo, com a saúde dos seres humanos, que fica evidente na quantidade de relatos de curas de todos os tipos de doentes. Levando em consideração que, nesses relatos, o importante não é a sua “historicidade”, mas sua “significância”. Nos quatro evangelhos estão presentes 67 relatos de curas de doentes. Todos esses relatos possuem o mesmo valor histórico? Não. Contudo, insisto: os evangelhos não são livros de história. São uma “teologia narrativa”, que a primeira coisa que nos diz é que, essencialmente, o que mais preocupou Jesus foi justamente o que mais preocupa os humanos: a saúde. O que mais interessa a todos nós, nesse exato momento, quando nossa saúde se vê mais ameaçada.
E junto à saúde, a economia. Jesus não foi um curandeiro. Nem pretendeu, por meio de seus milagres, demonstrar que ele era Deus. Em Jesus, realizou-se o que a Teologia cristã reconhece como o Mistério da Encarnação. Que é justamente o acontecimento da Humanização de Deus. O evangelho de João diz isso com uma nítida clareza: “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Filho único, que está junto do Pai, o revelou a nós” (Jo 1,18). E o próprio Jesus disse a um de seus discípulos, ao se despedir deles: “Felipe, quem me vê, está vendo o Pai” (Jo 14,9).
Pois bem, o “Deus humanizado”, que é Jesus, viu claramente que o problema da saúde não se resolve, caso não se solucione previamente o problema da economia. Por isso, Jesus, que tanto insistiu na cura dos doentes, insistiu tanto ou mais no tema evangélico capital do “seguimento”. Um tema que se deformou na tradição cristã, porque foi interpretado como um problema de espiritualidade.
Na realidade, o central do “seguimento” de Jesus não é a “espiritualidade”, mas a “economia”. Com efeito, seguir Jesus é abandonar tudo. Em todos os relatos de “seguimento”, que há nos evangelhos, a chave está no desapego total: nem casa, nem família, nem fortuna, nem segurança alguma (Mc 1, 16-21; Mt 8, 18-22; Mc 2, 14-17; Mt 16, 24; Mc 10, 17-31, etc). É evidente que quem “segue a Jesus” não pensa no benefício próprio, mas na saúde e na felicidade dos outros.
O que há no fundo desta exigência capital? Apegar-se à riqueza, ao dinheiro, à família ou a qualquer segurança, seja a que for, nos prende e nos incapacita a colocar como o primeiro e central da vida e da sociedade um sistema de saúde igual e seguro para todos.
É isto que muita gente na Igreja não compreendeu. E, por isso, esta nossa Igreja pretendeu fundir o Evangelho com a Religião. E, por fim, aconteceu o que tinha que acontecer: a Religião confere importância, segurança e dinheiro, ao passo que o Evangelho nos cria muitas dificuldades. Como se as criou a Jesus. Sendo assim, é verdade que na Igreja há muitos crentes em Jesus que vivem heroicamente o Evangelho, mas também é verdade que na Igreja há gente importante que optou pela Religião. Chegou-se ao extremo de integrar o Evangelho na Religião, tornando impossível compreender o Evangelho. E mais difícil vivê-lo.
Já não chegou o momento de levar a sério o Evangelho e vivê-lo com todas as suas consequências? Se o Papa Francisco deu uma nova e mais evangélica guinada em relação ao papado na Igreja, porque todo o episcopado e o clero não segue o mesmo caminho traçado pelo sucessor de Pedro? Se isto acontecesse, sem dúvida alguma, toda a Igreja teria a atualidade e a presença que o P. Jorge Mario Bergoglio possui.
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Dá a impressão de que se a Igreja se vê privada dos rituais, não tem outros projetos. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU