05 Mai 2020
"Um exemplo sutil dessa abordagem vemos no Cardeal Robert Sarah, autoridade litúrgica do Vaticano, um dos opositores mais eficazes de Francisco", escreve Christopher Lamb, correspondente de Roma da revista londrina The Tablet, em artigo publicado por The Tablet, 30-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O artigo foi adaptado do livro The Outsider: Pope Francis and His Battle to Reform the Church, publicado por Orbis Books.
Um carismático cardeal africano torna-se um dos centros opositores, de dentro da Igreja, ao estilo e ao conteúdo do papado de Francisco. Christopher Lamb, correspondente em Roma da revista católica inglesa The Tablet, pergunta-se sobre o que Robert Sarah pode aguardar do futuro, ao completar 75 anos no próximo mês.
Grande parte da oposição ao Papa Francisco age nos bastidores, em privado. Parte dessa oposição vem de autoridades e burocratas que estão sentados à espera que esse pontificado termine. Estas pessoas podem não se opor a Francisco abertamente, mas também não o apoiam. Como os funcionários públicos da série televisiva inglesa Yes Minister, na superfície eles concordam: “Sim, é claro, Santo Padre, devemos ter uma Igreja para os pobres (…) Só não tenho certeza de que devemos receber refugiados no Vaticano”. É o que se chama, na Itália, de gattopardismo, isto é, aquela estratégia de se criar a ilusão de um progresso, ao mesmo tempo que se mantém tudo intacto.
Um exemplo sutil dessa abordagem vemos no Cardeal Robert Sarah, autoridade litúrgica do Vaticano, um dos opositores mais eficazes de Francisco. O prelado guineense tem seguidores leais nos círculos conservadores, especialmente nos Estados Unidos. É amplamente respeitado em seu continente de origem. Seus apoiadores falam dele como um forte candidato a ser o primeiro papa negro, um homem com uma espiritualidade imponente que tornaria a Igreja mais fiel, mais pura. Críticos dizem que ele tem sido usado por aqueles que buscam manter o antigo status quo clericalista.
Por trás do cardeal estão apoiadores poderosos e ricos. Os Cavaleiros de Colombo, organização católica multibilionária americana, adquiriu um grande número de exemplares de seu livro, Deus ou nada: entrevista sobre a fé (Fons Sapientiaem, 2016), para distribuição na África. Os Cavaleiros disseram que essa era “uma das várias iniciativas” em apoio a “membros da Cúria e do papa”, negando veementemente fazer parte de qualquer oposição a Francisco.
Como a corte de Bento XVI e muitas redes católicas de comunicação, Sarah estabeleceu-se como uma autoridade “paralela” a Francisco, por meio de seus livros, palestras e viagens frequentes a postos avançados conservadores. Ele não confronta nem critica diretamente o papa, mas o faz obliquamente, apresentando à Igreja um modelo alternativo de liderança. Em particular, ele ouve as queixas a respeito de Francisco; compartilha algumas das preocupações, embora seja muito cuidadoso com o que diz. Sarah não apoia os ataques, mas também nada faz para detê-los.
Asceta que aparentemente sempre está envolto em oração e jejum, este cardeal combina certa espiritualidade mística com uma defesa inflexível do ensino católico tradicional. Fosse eleito papa, sem dúvida ele lembraria Pio XII, como um neotradicionalista que “reinaria” como papa, em vez de adotar o estilo de Francisco, que se arrisca a levar a Igreja para a rua. Em suas sessões de autógrafos, os seguidores de Sarah o cumprimentam e beijam seu anel episcopal.
A história pessoal deste cardeal africano é extraordinária. Ele cresceu em cabanas de barro numa região montanhosa remota da Guiné, em um município que hoje é composto por apenas mil habitantes, a cerca de 480 quilômetros de Conacry, perto da fronteira com o Senegal.
Originalmente, sua família não era cristã; seu pai batizou-se dois anos após o nascimento do cardeal, em 1947, com o bebê Robert batizando-se na sequência. O religioso cresceu em um grupo tribal chamado coniaguis, composto quase inteiramente por agricultores e criadores de gado. Os coniaguis formam um povo religioso, dedicado a Deus, a quem chamam de Ounou, acessível através da adoração aos ancestrais.
Os coniaguis têm ritos de iniciação para os jovens, rituais que começam por volta dos 12 anos e envolvem circuncisão; depois, estes jovens são levados para a floresta, durante uma semana, para aprender resistência, abnegação e respeito aos mais velhos. Sarah rejeita esses rituais como um “ardil, uma farsa que usa mentiras, violência e medo”, embora seja difícil não concluir que a sua criação lhe imprimiu lições de autodisciplina e abnegação.
Aos 11 anos, o hoje cardeal deixou a vila onde morava e foi para o seminário júnior. Sofreu forte influência da espiritualidade dos Pais do Espírito Santo, a mesma ordem que produziu Dom Marcel Lefebvre, bispo excomungado em 1988 após liderar um grupo de tradicionalistas que se separaram da Igreja na sequência das reformas do Concílio Vaticano II. Há relatos de conexões entre o cardeal e os lefebvrianos. Será que o cardeal, que tem tendência a um tradicionalismo litúrgico, mantém alguma simpatia por Lefebvre e pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X?
Após sua ordenação, Sarah estudou as escrituras em Roma e passou um ano em Jerusalém, antes de voltar à Guiné, onde arriscou a sua vida viajando de canoa para levar os sacramentos a comunidades remotas. Em 1979, aos 34 anos, foi nomeado arcebispo de Conacry sob o regime hostil de Sékou Touré.
O antecessor de Sarah havia sido preso por Touré, e o jovem arcebispo demonstrou uma tremenda coragem, manifestando-se contra a má administração do país e a negligência de Touré pelos pobres. Após a morte do presidente, soube-se que Touré planejou prender e executar Sarah. “Deus foi mais rápido”, comentou o religioso. Inabalável, ele continuou com suas denúncias, dessa vez contra o sucessor de Toure, Lansana Conté.
“Tenho grande admiração pelo Cardeal Sarah”, disse-me o ex-núncio apostólico na Guiné, Dom Alberto Bottari de Castello. “Sarah é um homem de oração e de grande riqueza humana e pastoral. Na Guiné, ele trabalhou como um pastor preocupado com a liberdade e com o respeito aos direitos humanos, intervindo publicamente com coragem, sem temer por sua segurança. Fazia isso com coerência, tendo uma vida de simplicidade, pobreza e em contato com o povo”.
Em 2001, Sarah foi chamado a Roma para trabalhar como secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos, conhecida como Propaganda Fide. Depois de nove anos, tornou-se presidente do antigo Conselho Pontifício “Cor Unum”, órgão do Vaticano que supervisionava as obras humanitárias da Igreja. Segundo uma fonte bem informada no assunto, Sarah era “extraordinariamente conservador” e muito desconfortável de trabalhar com mulheres em postos de autoridade.
Em Deus ou nada, o cardeal diz que muitas demandas pelos direitos das mulheres são “ideológicas”, descreve a ideia de mulheres ordenadas ao sacerdócio como uma “aberração” e considera a possibilidade de uma cardeal mulher “tão ridícula quanto a ideia de um padre que queira se tornar freira”. O religioso africano impediu uma tentativa da Caritas, setor de caridade da Igreja, de implementar uma política que daria oportunidades iguais às mulheres e eliminava a discriminação com base no gênero, além de obstruir a instituição de práticas trabalhistas em conformidade com os parâmetros do século XXI.
Nas celebrações da missa realizadas pelo cardeal, espera-se que o povo receba a comunhão na língua, e não na mão. Um outro colaborador de Sarah o descreve como gentil e gracioso, embora com um “entendimento particular” da Eucaristia.
Quem trabalhou com o cardeal diz que ele sofreu com a solidão em Roma, o que o levou a ficar aberto à manipulação. Em vez de contar com a tradição e a experiência teológicas africanas, os assessores do cardeal são católicos europeus, como Marguerite Peeters, guerreira cultural belga que critica o “feminismo radical”, a homossexualidade e a teoria de gênero, e Nicolas Diat, autor francês, conservador, figura bem relacionada e com quem Sarah escreve seus livros.
Deus ou nada é escrito no estilo de perguntas e respostas e se parece muito com um manifesto de campanha. O seu segundo livro com Diat sobre o silêncio também foi sucesso de vendas e publicado num momento oportuno, para uma época saturada de mídias sociais. O seu terceiro livro, The Day is Now Far Spent (sem tradução ao português), publicado em setembro de 2019, sustenta que o Ocidente está abrindo caminho para “novas civilizações bárbaras”. A linguagem empregada por Sarah é apocalíptica e, para alguns, perturbadora. Sua posição quanto aos migrantes contraria à de Francisco, assim como a sua estratégia pastoral. Durante o Sínodo dos Bispos sobre a Família, o cardeal afirmou que “as ideologias homossexuais e abortistas ocidentais e o fanatismo islâmico” eram “quase como duas bestas apocalípticas”, comparando-as ao nazismo e ao comunismo.
Sarah não quer que ninguém use aparelhos celulares ou táblets para ler orações, dizendo: “Não é digno. Dessacraliza a oração (…) Esses aparelhos não são instrumentos consagrados e reservados a Deus, mas os usamos para Deus e também para coisas profanas!” É uma teologia que rejeita o mundo ou que se refugia na forma moderna do gnosticismo, o que Francisco descreve como um ver a fé como “estrita e supostamente pura” e que “pode parecer possuir uma certa harmonia ou ordem que abranja tudo”.
Sarah continua extremamente leal a Bento XVI. Uma polêmica eclodiu em 12 de janeiro deste ano, quando excertos de um livro que estava para ser publicado, aparentemente escrito em parceria por Sarah e Bento, intitulado Das profundezas dos nossos corações: sacerdócio, celibato e a crise da Igreja Católica, apareceram no jornal francês Le Figaro. Em uma introdução assinada conjuntamente, Sarah e Benedict afirmam ousadamente que qualquer abertura à ordenação de homens casados seria um grande perigo para a Igreja, justamente quando o sucessor de Bento estava ponderando sobre concordar com o pedido dos bispos da região amazônica, de permitir que diáconos casados sirvam como sacerdotes.
O livro foi visto como uma tentativa flagrante de minar o processo do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, ao cooptar-se a autoridade do papa emérito. Sarah e Diat haviam recebido um ensaio de autoria de Bento, tendo ouvido que poderiam usar como bem entendessem. Mas logo soube-se que Bento não havia concordado em ser um coautor da obra. Sarah teve de concordar com a solicitação de Bento, transmitida através de seu secretário, Dom Georg Gänswein, de que o nome do religioso alemão fosse tirado da capa como coautor.
Em 2014, Francisco nomeou Sarah como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Fontes em Roma dizem que essa nomeação foi solicitada por Bento, com Francisco sentindo o dever de respeitar tal desejo. As coisas não começaram exatamente bem sob a liderança do prelado guineense, quando o setor encabeçado por ele levou mais de um ano para elaborar um decreto de 370 palavras que permitia que as mulheres fossem incluídas no ritual de lava-pés da Quinta-Feira Santa, algo que Francisco especificamente havia solicitado.
Na Quinta-Feira Santa de 2013, duas semanas após sua eleição, o papa viajou até a prisão juvenil de Casal del Marmo, em Roma, para lavar os pés de doze detentos, incluindo duas mulheres e dois muçulmanos. Era a primeira vez que algo assim acontecia. Mais tarde, Sarah diria que “os padres não estão obrigados” a lavar os pés das mulheres na Quinta-Feira Santa.
O cardeal expressou o seu ceticismo em relação às reformas da liturgia católica que ocorreram em meados do século XX, alegando que “de forma muito violenta passamos, sem preparação alguma, de uma liturgia a outra”. Por outro lado, o Papa enfatizou repetidas vezes que as mudanças provocadas pelo Concílio Vaticano II são irreversíveis, tendo dado mais responsabilidade às igrejas locais para traduzir as orações do latim em seus próprios idiomas.
Francisco repreendeu publicamente Sarah após este sugerir que os padres começassem a celebrar a missa ad orientem, ou seja, de costas para a congregação, e por afirmar que a relação entre a Santa Sé e os bispos, nas traduções litúrgicas, é como aquela dos pais na tarefa de casa de uma criança ou a de um orientador acadêmico para com o aluno. O papa respondeu com manobras precisas e clínicas para conter o cardeal. Quando necessário, corrige-o publicamente e nomeou uma série de novos membros para o departamento litúrgico, pessoas que não compartilham da visão de Sarah.
Francisco trabalha principalmente com o confiável e centrista Dom Arthur Roche, secretário do dicastério presidido por Sarah. Roche, nascido em Leeds, na Inglaterra, acabou tornando-se o responsável de grande parte do trabalho diário do dicastério. Sarah deve apresentar seu pedido de renúncia ao papa em 15 de junho próximo, quando completará 75 anos, e Francisco bem poderá aceitar, já que o cardeal completou um mandato de cinco anos como prefeito em novembro passado.
Interpelado com a afirmação de que estaria fazendo oposição ao papa, Sarah disse: “Estou calmo porque sou leal ao papa. Eles não podem citar uma palavra, uma frase, um gesto com o qual eu me oponha ao papa. É ridículo, é ridículo”. As palavras de Sarah professam lealdade, mas as suas ações sugerem o contrário. Também é revelador que o sentimento de precisar lembrar ao mundo que ele não é um opositor de Francisco aponta para deficiências embutidas em seu ministério enquanto cardeal: os que recebem o barrete cardinalício prestam juramento de fidelidade e obediência ao pontífice romano.
No passado, o Cardeal Sarah seria despachado para uma missão apostólica distante ou acabaria escanteado a uma função pouco influente na Cúria. Francisco, no entanto, tem sido tolerante. Em lugar de reagir com hostilidade às tentativas de miná-lo dentro do Vaticano, o papa adverte contra a “ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja”, que é mais uma entre as heresias dos dias atuais. Alguns cristãos, explica o papa, “gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo”.
O prestígio de uma liturgia elaborada focada mais no sacerdote do que no povo, e a sedução da ideologia política travestida de teologia, são tentações contra aquilo que Francisco, repetidas vezes, vem advertindo. O papa não está tentando vencer disputas curiais mesquinhas. Diante de facções concorrentes que se esforçam em enfraquecê-lo, o papa preocupa-se mais com a definição de um curso para o futuro da Igreja, oferecendo ao mundo a mensagem sem a qual ela perece.
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O magistério paralelo do Cardeal Sarah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU