05 Abril 2020
O papado moderno exige visibilidade e, portanto, é essencialmente incompatível com um regime rigoroso de auto-isolamento. O distanciamento social significa que a Igreja institucional é visível apenas através da mídia. Francisco enfatizou a necessidade de descentralizar a Igreja, e o confinamento ocorre em um momento muito delicado do pontificado.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em Commonweal, 31-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Governos de todo o mundo estão comparando a luta contra a pandemia com a guerra, e, quer você concorde ou não com a metáfora, o Papa Francisco e o Vaticano enfrentam uma situação “semelhante à guerra”.
A Itália está em lockdown, os ritos da Semana Santa e da liturgia pascal serão celebrados sem a presença de pessoas, e um viagem papal para Malta planejada para maio foi adiada indefinidamente.
De fato, pela primeira vez desde 1979, pode não haver nenhuma viagem papal em um ano inteiro. Agora, até o próprio Francisco usa a palavra “enjaulado” para descrever o efeito das limitações impostas a ele. No entanto, nos últimos dois séculos, vários dos antecessores de Francisco enfrentaram condições semelhantes.
Durante o pontificado de Pio IX (1846-1878), por exemplo, o governo dos Estados Papais foi temporariamente substituído por um governo republicano de curta duração em Roma, após a fuga do papa para a cidade de Gaeta, no sul da Itália, no Reino das Duas Sicílias, de 1848 a 1850. Isso coincidiu com o fim da curta fase liberal do então novo papa, que, em uma virada reacionária, adotou ensinamentos sociais e políticos anti-modernos.
Indiscutivelmente, isso levou, pelo menos indiretamente, à formação da Itália moderna e, como uma das consequências não intencionais do Concílio Vaticano de 1869-1870, a um papado ideologicamente anti-moderno, mas burocraticamente modernizado. O Concílio foi interrompido pela invasão de Roma pelo Exército italiano e pelo colapso dos Estados Papais em setembro de 1870, e esse foi o começo de uma longa reclusão do papa, que agora se via como um “prisioneiro no Vaticano”.
O pontificado de Bento XV (1914-1922) foi testado pela Primeira Guerra Mundial, que começou pouco antes da sua eleição, em setembro de 1914. Sua interpretação do papel do papado e da Santa Sé nesse conflito sem precedentes serviu como a origem do ensino moderno da Igreja, engajada com o trabalho pela paz, assim como com a neutralidade e a diplomacia da Santa Sé, e com o multilateralismo, as instituições internacionais e o nacionalismo. O colapso dos impérios após o fim da guerra levou a repensar a relação entre o colonialismo e a atividade missionária da Igreja (na encíclica Maximum illud, de 1919).
O pontificado de Pio XII (1939-1958), é claro, ainda deve ser amplamente explorado pelos historiadores (seus arquivos, abertos no dia 2 de março, agora estão fechados novamente por causa da pandemia). Mas é bem sabido que a Segunda Guerra Mundial ameaçou o papado e o Vaticano de uma maneira muito particular.
Mussolini, que recebeu o apoio político do Vaticano e da Igreja Católica italiana durante sua ascensão ao poder nos anos 1920, provocou a ira do establishment eclesial depois de se aliar a Hitler, o que colocou o papa em perigo.
A guerra e o Holocausto testaram Pio XII como diplomata e como pastor, mas também como teólogo. Seu silêncio sobre o Holocausto, tanto durante quanto depois da guerra, continua sendo, é claro, o aspecto mais política e teologicamente controverso do seu papado.
A guerra também moldou o pontificado de João XXIII (1958–1963). Ao atuar como capelão militar durante a Primeira Guerra Mundial, Angelo Giuseppe Roncalli pôde se encontrar com pessoas de outras religiões – cristãos não católicos, judeus e muçulmanos. Ele não era um pacifista, mas claramente rejeitava a retórica da guerra e não foi absorvido (como outros padres) pela propaganda nacionalista-religiosa.
Depois, como diplomata papal na Turquia durante a Segunda Guerra Mundial, ele ajudou na fuga de milhares de judeus da Europa Oriental para o futuro Estado de Israel. Ele se tornou papa no auge da Guerra Fria e, em seu momento mais perigoso – a Crise dos Mísseis Cubanos de outubro de 1962 – ele interveio diretamente junto ao presidente John F. Kennedy e ao secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Nikita Khrushchev.
Meses depois, em abril de 1963, ele publicou sua última encíclica sobre a paz e os direitos humanos, Pacem in terris, um dos ensinamentos papais mais importantes de todos os tempos.
O papado, institucionalmente situado dentro das dependências do Vaticano, tem uma espécie de imunidade física àquilo que acontece além de seus muros. No entanto, a soberania não é um escudo contra a pandemia. Crises como estas tendem a afetar os papas como seres humanos e o papado como instituição. Já podemos ver isso começando a acontecer.
Em termos dos efeitos da pandemia sobre o papado de Francisco, há três aspectos que vale a pena considerar. O primeiro é como a gestão da pandemia afeta a mística do papado. A Igreja Católica, do modo como ela se desenvolveu historicamente, não pode abrir mão do povo e não pode abrir mão do papa. Há uma tradição do papa como defensor da Igreja, de Roma e da civilização, que remonta ao Papa Gregório I, “o Grande” (590-604), frequentemente considerado o primeiro papa medieval.
Isso veio à mente enquanto eu assistia Francisco percorrer a Via del Corso em uma Roma totalmente deserta em sua peregrinação a duas igrejas na tarde do domingo, 15 de março, e a sua extraordinária bênção Urbi et orbi contra a pandemia, sozinho em uma Praça São Pedro vazia, no dia 27 de março.
Foto: Il Sismografo
Se houver um processo de canonização para Jorge Mario Bergoglio no futuro, esses dois momentos poderão ser uma parte importante do dossiê – algumas das imagens icônicas do seu pontificado.
O segundo aspecto diz respeito ao ensinamento magisterial. Esta emergência de saúde global é mais um exemplo da crise da globalização e confirma as intuições proféticas de alguns princípios fundamentais da doutrina social católica, incluindo o acesso universal à saúde, a cooperação e a solidariedade internacionais, o papel dos Estados e governos na proteção do bem comum e a cooperação entre a Igreja e as autoridades seculares pelo bem comum.
Mas também estamos vendo um reequilíbrio de poder em favor dos governos nacionais. Pela segunda vez na sua vida (a primeira foi a ditadura e a guerra suja na Argentina), Francisco se encontra em uma situação em que a Igreja tem que andar sobre uma corda muito tênue entre as liberdades fundamentais (incluindo a liberdade religiosa) e os limites impostos por governos nacionais.
Para algumas lideranças católicas (clérigos e leigos), o que quer que um Estado ou governo faça é necessariamente hostil à fé; eles não conseguem ver, ou optam por não ver, que o que o governo faz pode ser essencial para o bem comum.
Isso nos leva ao terceiro aspecto, o impacto no sistema institucional da Igreja Católica. Diários e testemunhos deixados por líderes influentes da Igreja em tempos de crise revelam o entendimento que eles tinham de como as crises podem impactar as intrincadas operações do papado e do Vaticano: das relações com o Estado e com as Igrejas locais até a administração das finanças do Vaticano, passando pela atividade diplomática da Santa Sé e muito mais.
Pode-se imaginar, por exemplo, o que significaria se um conclave tivesse que ser convocado nesta situação. Mas há também o projeto em curso da reforma da Cúria Romana, no qual o Conselho de Cardeais trabalha desde pelo menos 2014. Seria ingênuo pensar que esta pandemia não terá um efeito sobre isso – também por causa do impacto nas finanças da Igreja Católica localmente e no Vaticano.
De modo mais geral, crises internacionais tão importantes como esta tendem a expor as fraquezas do status quo eclesiástico. Por exemplo, em um importante memorando redigido no verão de 1945, Jacques Maritain (então embaixador francês junto à Santa Sé) endossou a ideia amplamente difundida de uma desitalianização da Cúria Romana, junto com um novo sistema de proteção internacional para a Santa Sé contornar os Tratados Lateranenses de 1929. Isso foi percebido como uma ameaça por uma Cúria dominada por italianos.
O que se seguiu no pontificado de Pio XII foi a maximização do autoritarismo e do verticalismo, em que o papa microgerenciava o trabalho dos dicastérios vaticanos, e um papel mais proeminente da Secretaria de Estado, que estava sob o controle direto do próprio papa. O Santo Ofício começou a desempenhar o papel de um superdicastério.
O dominicano francês Yves Congar, sob investigação do Santo Ofício, em uma anotação em seu diário no dia 6 de dezembro de 1954, definiu a Congregação Suprema nestes termos: “O Santo Ofício é o cerne de tudo, o motor sem nome, o absoluto ao qual tudo se refere e diante do qual tudo deve se curvar. Não existe mais nada”.
Isto não é uma guerra. Mas, como em uma guerra, a pandemia está limitando a capacidade da Igreja de funcionar normalmente, litúrgica e institucionalmente, em todo o mundo. Isso inclui o Vaticano. A soberania da Cidade do Vaticano não confere imunidade contra a ameaça invisível do vírus. As pessoas dentro da residência vaticana testaram positivo para a Covid-19, e, embora Francisco tenha testado negativo, ele continua mantendo as audiências e está visivelmente mais em risco do que a maioria de nós, em confinamento.
O papado moderno exige visibilidade e, portanto, é essencialmente incompatível com um regime rigoroso de auto-isolamento. O distanciamento social significa que a Igreja institucional é visível apenas através da mídia. Esse estado de suspensão litúrgica e institucional, especialmente durante a Quaresma e a Páscoa, está chamando a atenção da mídia novamente sobre Roma e o papa. Francisco enfatizou a necessidade de descentralizar a Igreja, e o confinamento ocorre em um momento muito delicado do pontificado.
Esse é o tipo de emergência que, nos últimos dois séculos, ampliou a vantagem que o papado institucional tem sobre as Igrejas locais. Não sabemos se será assim desta vez. Também não sabemos como isso afetará o ecossistema sempre delicado que é formado por Roma, pelo Vaticano e pelo papado.
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Papados em confinamento: até que ponto a pandemia é comparável às crises do passado? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU