21 Fevereiro 2020
Professora de Ética, a filósofa valenciana, Prêmio Nacional de Ensaio, em 2014, é uma das pensadoras mais conceituadas e uma das vozes que sempre se levanta contra a intolerância. Adela Cortina quebra protocolos: surge na entrada da Fundação Etnor, em Valência, da qual é diretora acadêmica, com um sorriso. Algo que dificilmente perde. Acumula compromissos, palestras, conferências, artigos e continua tendo dificuldades de tempo para ler tudo o que gostaria. A discípula de ética do diálogo de Habermas e Karl-Otto Apel prefere continuar sem um telefone celular. Deve ter vantagens, afirma, porém “mais que uma obrigação, é um vício”.
A entrevista é de Alfons Garcia, publicada por Diario de Mallorca, 17-02-2020. A tradução é do Cepat.
A revolução digital teve um tremendo impacto. Sua relevância é tanta como a da imprensa?
Eu a vejo assim. Esta terceira revolução industrial é tão importante como a da imprensa: está mudando nossa maneira de escrever, pensar e, receio, de viver. Tem vantagens, mas também inconvenientes. Aquela questão se a internet está nos tornando mais estúpidos ou ao menos superficiais me parece pertinente. Para nós, é cada vez mais difícil ler um livro ou um artigo inteiro.
Somos a geração fragmentada.
Vamos beliscando aqui e ali, entre tantas informações. É espantoso quando você está lidando com qualquer assunto e faz uma pesquisa na internet. Compreende-se por que são raras as vezes que lemos um livro até o final.
Enxerga muita diferença entre os jovens de hoje e os de outras épocas.
Sobre os jovens é preciso dizer coisas para o bem e para o mal. Há muito mais facilidade para obter informações, aprender idiomas, organizar viagens... Contudo, justamente por isso a superficialidade é um risco, porque para conhecer algo a fundo é preciso dedicar reflexão e tempo. E, depois, com exceções, depararam-se com um mundo mais simples, que seus pais trabalharam para eles e muitos não percebem que é preciso mantê-lo e conquistá-lo. Essa cultura do esforço se perdeu muito.
Costuma-se dizer que a tragédia da sociedade de hoje é que os jovens viverão pior do que seus pais.
Aqueles que pertenceram à minha geração se acostumaram a ir progredindo em tudo: da ditadura à democracia, alguns subiram dos níveis mais baixos para se tornar professores de institutos e universidades. Isso parou e a precariedade é o pão nosso de cada dia. É dramático porque uma pessoa não pode organizar sua vida sem saber com o que poderá contar. Essa deveria ser uma de nossas preocupações fundamentais: garantir um emprego estável para os jovens é de primeira necessidade.
Então, você suporta, compreende ou se desgasta com este mundo de 2020?
Tudo o que é novo me parece um desafio. De fato, nos últimos tempos, entrei em temas da inteligência artificial. É espetacular. A inteligência artificial nos leva a pensar o que é a inteligência humana, a memória, o sentido moral. Com a inteligência artificial, aprendi que nós, humanos, temos a capacidade do senso comum. Que coisa óbvia! Pois bem, os sistemas inteligentes não têm inteligência geral, apenas parcial. Deep Blue é capaz de vencer Kasparov no xadrez, mas só sabe jogar isso.
Sem necessidade do senso comum.
Não tem, porque o senso comum precisa de inteligência geral. Com ela, em contextos concretos, você toma algumas decisões ou outras. Penso que seria necessário cultivar enormemente o senso comum e a inteligência geral nas pessoas, porque você pode encontrar pessoas geniais em um determinado âmbito e que na vida cotidiana não acertam uma só decisão.
No consumo, por exemplo.
O consumo deve ser livre: que eu consuma o que quero e não o que estão me vendendo continuamente. Precisa ser justo, porque minhas decisões de consumo têm consequências para os outros. E precisa ser aprazível, porque um consumo que prende as pessoas não é. Agora, existe uma vantagem. Os jovens desejam possuir cada vez menos e desfrutar mais. Nisso considero que são muito inteligentes, porque tudo que você compra representa um peso: mantê-lo, pagá-lo...
O mundo de hoje também é um mundo com muito menos vínculos nas relações pessoais, mais instável.
Eu distinguiria os vínculos interpessoais e a relação com as coisas. Há uma diferença fundamental e é necessário continuar mantendo-a.
Mas nossas relações pessoais também são diferentes, mudam muito mais.
Efetivamente. E assim como acontece com as coisas, parece-me que não há razão para se prender a elas por toda a vida. Com as pessoas, acredito que é importante perceber que os vínculos são fundamentais para uma vida feliz. Uma coisa são os laços que não podem ser rompidos de forma alguma. Isso me parece lamentável. Mas todos nós temos vínculos históricos com pessoas com quem vivemos ocasiões muito importantes. Estou me referindo à amizade e ao amor.
A família é um bem a ser preservado? Digo isso em comparação aos Estados Unidos, onde se rompe muito mais.
Na Espanha e no sul da Europa, a rede familiar é fundamental. Nas pesquisas sobre os valores dos jovens fica entre o primeiro e o segundo lugar, porque a família é a rede que os protege quando não têm trabalho ou estão em uma situação triste. A família é um vínculo protetor.
É pela tradição católica?
Pesa muitíssimo, obviamente, porque o peso dos séculos é muito importante, mas me refiro ao valor dos vínculos para todos os tipos de vida. A chave do cérebro moral é o vínculo, em princípio de mãe para filho. O neoliberalismo defendeu um individualismo que é falso, é pura ideologia. Nós, seres humanos, não somos indivíduos isolados que nascem como cogumelos e em certo dia decidimos nos reunir, ao contrário, nascemos em vínculo: o familiar, o da escola, o da proximidade. Os vínculos nos constituem. Por isso, é preciso protegê-los. Essa é em muitas ocasiões a chave da felicidade. O individualismo é falso, inventaram.
Com qual finalidade?
Porque querem as pessoas mais desprotegidas. O ideal para um ditador ou um personagem totalitário é romper vínculos. Quando há uma trama de relações e associações, é muito mais difícil para um totalitário. O neoliberalismo se encanta com indivíduos isolados: cada um tenta maximizar o lucro e tirar todos os outros da jogada. A inteligência da Europa foi continuar mantendo essa ideia dos vínculos e de seu capital social.
É uma frase fácil, mas são tempos ruins para a ética?
Não. Estamos atuais. Fala-se de ética por todas as partes: da empresa, da inteligência artificial, do desenvolvimento, bioética. Está muito presente.
Em teoria, porque na prática ... Penso na corrupção.
Isso é farinha de outro saco. Na prática, é realmente um pouco precário, porque há muitos interesses e é muito difícil pensar que há outros que estão sendo prejudicados por algumas decisões egoístas. Vemos isso todos os dias.
Uma professora de Ética tem orgulho de todos os seus atos?
Não, por Deus. Seria absolutamente acrítica e estúpida.
Como é a sua relação com o passado? É preciso saber se perdoar?
Claro. Quando eu era muito jovem, disse a mim que nunca tentaria me justificar. Vale muito mais tomar consciência do que aconteceu e tentar se perdoar, mas saber o que não estava bem. É preciso tentar dizer no máximo a verdade e depois perceber que falhamos continuamente e saber no que para não repetir.
Fala-se muito de pós-verdade, de que importam mais as emoções que a verdade científica.
A pós-verdade me deixa muito nervosa, porque dizer o contrário do que se pensa com a intenção de enganar é simplesmente mentir. E dizem a você que essas mentiras funcionam porque há aqueles que estão desejando aceitá-las. E não. Sempre existiram pessoas que desejaram que as coisas lhes fossem contadas de uma maneira que ficassem satisfeitas. Isso se chama embuste.
Somos acomodados, gostamos de permanecer no espaço das ideias com as quais nos acostumamos.
É uma espécie de mecanismo de sobrevivência. Ficamos muito mais confortáveis com aquilo que fomos aprendendo desde a infância, o mundo no qual fomos nos socializando.
Desse ponto de vista, a autocrítica é o elemento-chave para romper os círculos fechados.
A autocrítica é fundamental: a consciência, a reflexão, o que os clássicos faziam. É um dos temas que me preocupa com a extimidade: essa época de exterioridade em que sempre estamos em redes, mas na qual não se aprofunda. As pessoas colocam fotos, mas há algo muito importante que é a intimidade.
Olhar para dentro.
É preciso fazer isso, porque se você não olha para dentro de vez em quando, ao final, não tem liberdade, porque estará nas mãos de outros. Decide o contexto ou a último embuste. A liberdade é algo muito difícil que é preciso conquistar com capacidade de reflexão. Não quer dizer se fechar, mas, sim, tomar decisões do interior.
Isso de que somos livres desde que nascemos. Uma frase bonita ...
É preciso trabalhá-la. A expressão “não somos livres para deixar de ser livres” quer dizer que temos que decidir.
Fala de superficialidade e extimidade. São os traços deste tempo convulsivo?
É o que eu temo. Não aumentamos tanto o poder da comunicação como o da conectividade. Ficamos nesse mundo um pouco superficial das redes e isso nos leva a perder a humanidade. Sêneca dizia que o ser humano precisa ser o artífice de sua própria vida e para isso precisa saber o que deseja. E isso é muito difícil.
O fato de que a moderação esteja em crise e que avancem as posições extremas são consequências dessa ‘extimidade’?
A moderação não está na moda. A polarização e os discursos de ódio, sim. Mas, ao longo da história, houve tudo isso. Estamos no melhor momento se compararmos. Eu acredito que houve progresso. Por isso, é lamentável que, em vez de utilizar os novos meios de comunicação para criar maiores situações de felicidade e concórdia, estejamos fazendo o seu uso para o mesmo que na Idade Média: a polarização e o descrédito do outro.
O populismo é a pior face da política?
A pior face, não, mas é um dos grandes problemas do nosso momento. Na realidade, não é nem de esquerda e nem de direita, mas, sim, uma estratégia de ação. Trump pode ser populista, assim como também Maduro. Mas, sim, há toda uma lógica de ação nefasta, que consiste em dividir o povo entre nós e eles, e isso fazem de uma cor ou outra. O nós costuma ser uma posição supremacista, os outros são inferiores. Essa distinção entre os corretos, morais, e os outros é destrutiva do mundo democrático.
Essa ideia é transferível para o nacionalismo?
Na minha perspectiva, sim. A humanidade é um nós absolutamente universal. Uma coisa é ter carinho pela própria terra e outra é o nacionalismo que rompe e que, no século passado, foi nefasto.
Qual é a sua pátria?
Não tenho muito claro o conceito de pátria, na verdade. Penso que é o que se passa com os que são de minha geração.
Talvez isso seja positivo.
Bom, sinto-me absolutamente valenciana, espanhola, europeia, ibero-americana e me sinto uma cidadã do mundo. Sou uma matrioska: sinto-me bem em todos esses níveis, mas me recusaria a priorizar. O conceito de pátria não me ajuda a construir nada. Sinto-me cosmopolita, embora seja necessário ir com cuidado, porque antes significava aquele que se sentia cidadão do mundo e não se responsabilizava pelos assuntos locais. O oportuno é um cosmopolitismo enraizado.
Mais enraizada do que a pobreza próxima, poucas coisas. Tendemos a viver de costas para a pobreza porque a classe média vira as costas para uma realidade que teme como um futuro possível?
Preocupa-me enormemente a rejeição ao pobre. E a pobreza não é apenas econômica. O assédio escolar me deixa doente. A criança assediada é o pobre naquele momento. Relegar aquele que está pior situado é indignante. Nessas sociedades do contrato, queremos que nos ajudem e procuramos aqueles que podem nos dar algo em troca. Quando aparece alguém (o imigrante, o refugiado, o perseguido) que me parece que, caso eu me aproxime, vão me excluir, nos distanciamos. Isso está metido em nosso cérebro e é preciso acabar com isso.
Outro capítulo é o que acontece com a pobreza econômica. Durante muito tempo, estudou-se a pobreza como algo inevitável, mas o Estado de bem-estar social disse que temos o direito de não ser pobres. Deveria ser estabelecido em todas as partes. As pessoas têm o direito de que a sociedade as ajude a não ser pobres.
Essa seria a função básica da política: atender como sociedade o que não fazemos como indivíduos?
Exatamente. A política precisa se ocupar com a justiça e não com a felicidade. Cada pessoa busca encontrar isso de acordo com suas características e possibilidades.
Há partidos que prometem a felicidade das pessoas.
É uma bobagem. A felicidade é uma opção pessoal, mas a justiça é uma obrigação da política e dos cidadãos. No século XXI, quando existem meios suficientes para que ninguém seja pobre, é uma obrigação da política tentar fazer com que ninguém seja pobre, a não ser que seja voluntariamente.
Faltam intelectuais em comparação aos séculos passados, quando tinham muito peso na sociedade? Não sei se esse papel esvaeceu.
Mais do que esvaecido, como disse Aranguren, se democratizou. Há muito mais intelectuais, mas devido à superabundância de informações, é muito difícil detectar quais são os que realmente estão contribuindo com algo interessante. Surge uma quantidade de publicações que todo mundo cita e, então, você vê que são fraquíssimas.
Como carrega a palavra Deus? Ajudou-lhe?
Sim. Deus é algo muito importante. Que Deus exista, e tomara que exista, seria uma boa notícia por muitas razões. Uma muito importante é que a injustiça não seja a última palavra da história. Ao longo da história, muitas pessoas sofreram a injustiça. E será possível que não exista para elas nenhum tipo de redenção? Isso convida a trabalhar mais ativamente para que a injustiça não seja cometida. Não se trata de dizer que já será reparada.
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“A justiça é uma obrigação da política e dos cidadãos”. Entrevista com Adela Cortina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU