06 Janeiro 2020
Encerra-se um ano que ficará na memória como um caos permanente, sob o signo de uma figura cujo obscurantismo jamais poderá ser esquecido.
Declarações e atos aberrantes do presidente e sua equipe, quando não crimes e ataques às próprias funções de Estado, foram pão de cada dia. Entre a perplexidade geral e um imobilismo também causado por uma esquerda derrotada no tempo e na história, o absurdo se estabilizou e por vezes teve ares de normalidade. No entanto, a situação econômica e os levantes em países vizinhos sugerem que a pasmaceira não será eterna. É sobre este quadro que o sociólogo Ruy Braga falou ao Correio da Cidadania, 30-12-2019.
“A equação do conservadorismo é: o aparato repressor reacionário, o que inclui o Judiciário, marcado pelo avanço de certo milenarismo jurídico, como se este poder fosse salvar o país; as classes médias que aderem o projeto ultraliberal; o empresariado que adere à agenda de Paulo Guedes; e o setor popular ligado às igrejas pentecostais e neopentecostais, aderente ao governo por conta da agenda de costumes, o que se reflete na popularidade de Damares”, afirmou Braga, ao explicar a relativa estabilidade do governo.
Ruy Braga acrescenta que tal estabilidade também se apoia na conjuntura do espectro oposto. “Temos uma enorme fragmentação da pauta de esquerda, mas sem articulação entre todas elas, o que mostra a lulodependência da esquerda brasileira, e também o esgotamento desta forma de fazer política, uma fórmula muito concentrada na figura de um caudilho, uma liderança”.
Estudioso das questões do mundo do trabalho, a respeito do qual publicou e editou diversos livros, Ruy Braga passou o ano de 2019 orientando o estudo que culminou no livro Trabalho e Sofrimento Psíquico – histórias que contam essa História escrito por Tathiana Cappellano e Bruno Carramenha a partir de mais de 800 entrevistas com trabalhadores(as) brasileiro(as). Uma base que o faz constatar que o múltiplo processo de mercantilização da vida, como define, ainda será contrastado por variadas e potentes revoltas sociais.
“Parece óbvio que a resposta a tais dilemas não será dada pela esquerda institucional. O que consigo imaginar para breve é algo muito parecido com o que se vê na América Latina: um conjunto grande de insurgências populares urbanas, com feições heterogêneas, com escala de massas, sem lideranças claramente identificadas e com uma agenda de enfrentamento da mercantilização radical de todos os setores da vida social, ensejada pelo ultraneoliberalismo comandado por Paulo Guedes”.
Como sintetizar o ano de 2019 no Brasil, com o aparecimento de um governo de ultradireita que, apesar de despertar enorme repúdio, consegue avançar reformas e colocar suas pautas, muitas delas moralistas, no centro da agenda política?
O primeiro ano deste governo fica marcado pelo signo da instabilidade. Aquilo que a sociedade herda do período de crise de 2015 pra cá, uma combinação de crise econômica com política, resultante em profunda crise social, não se estabilizou. Bolsonaro é expressão do processo de reprodução de uma crise que pode estar menos explícita, mas está marcadamente presente na vida das pessoas, haja vista a questão do emprego.
De novembro de 2017 até os últimos dados do emprego a taxa geral de desemprego está estável, no entanto, percebemos claramente uma deterioração do mercado de trabalho brasileiro. Mais empregos informais no lugar dos formais, um movimento de insegurança para as famílias submetidas. Isso significa que mesmo com este 1% de crescimento ao ano há uma deterioração das condições gerais de contratação, acompanhada do aumento da concentração de renda. O endividamento das famílias é outra consequência, gerenciado por intermédio da liberação do FGTS.
Do ponto de vista das condições gerais da política, o fato de ser um governo novo permitiu superar a situação de aguda crise política do governo Temer, de corrupção, escândalos e baixíssima popularidade. Como se explica? A decantação da extrema direita pela sociedade brasileira, que encontrou em Bolsonaro um meio de expressar seus ressentimentos, neuras e taras. Isso em alguma medida sustenta seus 30% de popularidade. Já caiu muito após a eleição, mas se estabilizou nesses 30%, um número que não é de total adesão, não é tão firme. O núcleo bolsonarista consistente é de 12% a 15%. Mas tem 30% da sociedade disposta a apoiar tal governo, o que é muita gente.
Isso passa pela crise econômica, pela identificação do PT como causador da política econômica, através da corrupção e também por conta do segundo mandato de Dilma, marcado por políticas que não deram certo e aprofundaram a recessão. Mas tem outro componente: a aproximação de parte da população da agenda conservadora, expressa na aproximação pentecostal/evangélica. Existe um setor da sociedade que garantiu sua eleição – o voto evangélico, genericamente falando – que fez a diferença entre Bolsonaro e Haddad.
É um fato importante, que precisa ser estudado: o deslocamento do setor pentecostal/neopentecostal para a extrema direita. Isso já vinha sendo indicado em outras pesquisas, mas agora ganha volume mais surpreendente.
A despeito da instabilidade e depressão econômica, que não se superou, houve uma reacomodação do jogo de forças em torno do presidente e seus ministros mais populares, como Moro, o que garantiu fôlego ao primeiro ano de governo.
E no espectro oposto é de se supor alguns fatores que também expliquem este fôlego.
Do ponto de vista dos movimentos sociais e partidos, percebe-se claramente que todo o processo que terminou com o processo de impeachment de Dilma - de certa forma desde 2013, quando um nível de atividade política muito intenso se viu por todo o país, até 2017, ápice da instabilidade de Temer – foi duramente golpeado em 2018 com a prisão de Lula, a impossibilidade de sua candidatura, seguida da vitória de Bolsonaro e o estancamento de um projeto progressista.
O ano de 2019 fica marcado por essas condições, incluindo a insegurança econômica, e termina sob a marca da desmobilização social, motivada pelo contexto de derrota de 2018 e esgotamento das forças políticas e também sociais, o que vinha desde 2013 – forças sindicais, populares urbanas, estudantis, feministas, LGBTs, negro(as). Estas foram duramente atingidas pela regressão de 2018.
A questão é: como explicar essa desmobilização? A meu ver, deve-se à incapacidade que a esquerda tem de construir um projeto alternativo ao lulismo. Quando se deposita toda sua energia em ganhar uma eleição, tida como último recurso para conter os avanços da direita, e o candidato mais forte é preso e excluído da competição, revela-se com muita clareza a inexistência de projetos alternativos ao lulismo.
Temos uma enorme fragmentação da pauta de esquerda, mas sem articulação entre todas elas, o que mostra a lulodependência da esquerda brasileira, e também o esgotamento desta forma de fazer política, uma fórmula muito concentrada na figura de um caudilho, uma liderança.
Portanto, vivemos tamanha desmobilização porque, de um lado, houve uma derrota política e, de outro, a incompetência em criar um projeto alternativo ao que foi derrotado em 2018. Por isso nada se traduz em acirramento da luta de classes nas ruas, locais de trabalho e ficamos sob o clima de pasmaceira generalizada. Limita-se, assim, a possibilidade de fazer política apenas no âmbito parlamentar. Temos bastante ativismo partidário nos parlamentos, mas isso não tem vinculação direta com mobilizações de rua.
Ainda sobre a extrema direita, como compreender tal fenômeno ao sabermos que o discurso moralista não se sustenta na realidade, dado que os vínculos de Bolsonaro e seu círculo com a corrupção e até a mafialização da vida pública são de considerável conhecimento e não exatamente refutados. Como compreender estabilização mesmo diante da fragilidade da sua moralidade?
É o conservadorismo que precisamos radiografar. Quando observamos a base social deste governo percebemos com alguma clareza que há uma ala ligada ao exército, historicamente conservador e reacionário, que em muitos momentos da história se colocou na linha de frente da defesa de interesses ligados à burguesia e às classes médias altas. Não podemos negar isso. Mesmo com uma Reforma da Previdência que atingiu a parte baixa dessa base, o que fustigou um pouco o governo, é notório que o aparato repressor brasileiro – somando as polícias – apoia majoritariamente o governo.
Temos um aparato repressor centralizado no Estado, com disciplina rígida, comando, organização interna, que banca a estabilidade deste governo. É um primeiro elemento, ao lado do qual devemos considerar também a Polícia Federal, que não tem pouca gente e abrange parte substantiva do Estado brasileiro.
A isso se soma a adesão de setores médios tradicionais a uma agenda conservadora reacionária, principalmente do ponto de vista econômico, onde o ultraneoliberalismo autoritário de Paulo Guedes tem alguma popularidade. São setores que ganharam muito no período lulista, experimentaram a crise e se divorciaram definitivamente de qualquer agenda progressista, o que se via em boa medida desde a redemocratização.
Trata-se de parcela da população que tem dinheiro aplicado no mercado financeiro e se divorcia, neste caso, dos governos petistas mais pelos seus méritos que defeitos, isto é, aumento dos empregos em carteira, formalização de trabalhadores domésticos, tentativa de desconcentrar a renda por meio do trabalho... Esses setores aderem a uma agenda autoritária do ponto de vista econômico e isso tem efeito, por ser um setor influente, que forma opinião, tem acessão aos meios de comunicação, certo nível de estudo. Por isso o governo é bem avaliado entre aqueles que têm nível superior.
O terceiro elemento passa pela forte adesão do empresariado brasileiro a essa agenda ultraneoliberal, o que consolida sua liderança sobre setores médios e tradicionais do empresariado, a exemplo da FIESP.
E, finalmente, o grande elemento inovador é o apoio popular a uma agenda conservadora em costumes, o que não é tanta novidade no Brasil. No entanto, mostra certa tensão no âmbito das classes subalternas, entre o pragmatismo ligado à reprodução da vida cotidiana – salário, renda, emprego, segurança – e uma agenda conservadora do ponto de vista dos costumes. No governo Lula, enquanto houve certa prosperidade entre setores populares, tal tensão foi mitigada, adiada, de modo que essa agenda teve de esperar um pouco diante da melhoria das condições de vida daquele momento.
Assim, a maioria dos setores evangélicos votava em Lula e Dilma. No entanto, no contexto de crise esses setores, que já eram conservadores, mas faziam concessões diante do pragmatismo político, se afastaram completamente.
A equação do conservadorismo é: o aparato repressor reacionário, o que inclui o Judiciário, marcado pelo avanço de certo milenarismo jurídico, como se este poder fosse salvar o país; as classes médias que aderem o projeto ultraliberal; o empresariado que adere à agenda de Paulo Guedes; e o setor popular ligado às igrejas pentecostais e neopentecostais, aderente ao governo por conta da agenda de costumes, o que se reflete na popularidade de Damares.
Quanto ao campo de esquerda e progressista, há aqueles que apontam um fim de ciclo que demorará a ser substituído por outro, até pela hegemonia que se mantém do lulismo, mas há aqueles que apontam as revoltas populares em países vizinhos, fora do controle institucional – inclusive das forças de esquerda e progressistas institucionais. Como imaginar o futuro próximo, ao considerar que a queda nas condições de vida das maiorias é inequívoca?
A situação brasileira é marcada, sem dúvida, pela instabilidade. Não estamos num momento de estabilização das relações sociais de produção capitalista, muito menos no campo político. O solo é muito movediço. Quando me refiro à incapacidade das esquerdas se rearticularem, me refiro aos setores hegemônicos desta esquerda, no sentido de criar um projeto alternativo ao lulismo.
O segundo ponto é que me parece óbvio que a resposta a tais dilemas não será dada pela esquerda institucional. O que consigo imaginar para breve é algo muito parecido com o que se vê na América Latina: um conjunto grande de insurgências populares urbanas, com feições heterogêneas, com escala de massas, sem lideranças claramente identificadas e com uma agenda de enfrentamento da mercantilização radical de todos os setores da vida social, ensejada pelo ultraneoliberalismo comandado por Paulo Guedes.
O momento não é de pasmaceira eterna; é de forte instabilidade, que tem a ver com economia, política, sociedade, com a crise geral que se reproduz e não se supera.
Teremos pelo Brasil, num futuro próximo, um nível mais agudo de enfrentamento contra este modo de articulação de diferentes movimentos de mercantilização, quer seja do trabalho como se vê no recuo da proteção do emprego, dos direitos trabalhistas, da previdência; na mercantilização das terras urbanas, com segregação espacial, gentrificação, agudização da repressão dos setores populares das periferias; na multiplicação do tipo de tragédia de Paraisópolis, tendo a PM como ponta de lança deste processo de repressão/mercantilização territorial; na mercantilização das terras rurais, em especial com o avanço do agronegócio e da mineração ilegal, inclusive sobre reservas e terras indígenas, e uma ameaça ao meio ambiente que aumenta e se torna mais irreversível a cada dia.
Por fim, toda essa mercantilização se liga profundamente ao rentismo e à financeirização, através do endividamento das famílias junto aos bancos e concentração cada vez maior de renda, o que estimula o aumento das dívidas das famílias – que não cessa, só se aprofunda, apesar de ter sido mitigado pela liberação de FGTS, o que por sua vez tem custo, limites, pois não será possível reproduzir indefinidamente...
Temos ainda uma mercantilização que se vê na Reforma da Previdência, nas poupanças, na informalidade do trabalho, tudo convergindo em múltiplas formas de mercantilização da vida. Isso estimulará respostas massivas e diversas. E não teremos respostas setoriais, como se viu no passado. Devemos ver algo muito parecido com o processo chileno, com descontentamento latente na base da sociedade, que se transforma em insurgência plebeia de escala nacional contra o governo a partir do aumento da passagem do metrô em Santiago, a exemplo do que se viu em 2013 com a passagem do ônibus em São Paulo. Alguma coisa parecida com isso pode desatar uma revolta geral.
Eu não descartaria que este tipo de centelha venha de lugares não imaginados, como o setor de transportes, rodoviários, caminhoneiros... Afinal, nenhuma das razões da greve dos caminhoneiros de 2017 foi realmente superada ou enfrentada pelo atual governo, por mais que haja afinidade política e ideológica entre eles. Estamos num barril de pólvora.
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2019: o silêncio que precede a explosão. “Estamos num barril de pólvora”. Entrevista com Ruy Braga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU