16 Dezembro 2019
Às vezes, é a justaposição no tempo de dois eventos aparentemente não relacionados que faz com que as peças se encaixem, trazendo à tona uma intuição previamente semiconsciente e fazendo-a parecer surpreendentemente óbvia.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 15-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na última semana, o resultado desse processo foi o seguinte: talvez não possamos julgar o impacto do Papa Francisco na política pelas medidas usuais, porque, condizente com sua perspectiva populista argentina, ele está mais interessado em mudanças horizontais do que verticais.
Primeiro os eventos aparentemente não relacionados: Boris Johnson e Greta Thunberg.
O Reino Unido é apenas o último caso em que a visão da vida política e social de Francisco, que ele tem defendido há mais de seis anos, simplesmente não parecia ter muita força em um eleitorado. Afinal, Francisco ganhou o Prêmio Carlos Magno em 2016 pela sua defesa de uma unificação europeia mais profunda, mas, no Reino Unido, na última semana, os eleitores deram a Johnson um enorme mandato para tirar o país da União Europeia o mais rápido possível.
Para ser justo, pode-se dizer que o Reino Unido não é um país católico. Por isso, não é razoável esperar que um papa consiga ter muita influência lá. Se é assim, no entanto, o que se pode dizer sobre o Brasil e as Filipinas, o primeiro e o terceiro maiores países católicos do mundo?
No Brasil, Francisco tornou a preservação da Amazônia um elemento central do seu ensino ambiental desde o primeiro dia. No entanto, os brasileiros elegeram o candidato pró-agronegócio Jair Bolsonaro em outubro de 2018. Nas Filipinas, apesar de repetidas injunções de Francisco contra a violência, os filipinos abraçaram Rodrigo Duterte em 2016, que prontamente desencadeou a mais sangrenta guerra contra as drogas da história, sem falar da sua aberta zombaria da Igreja e de suas lideranças.
Tudo isso, é claro, não diz nada sobre o fato de que, apesar da linha “muros não são cristãos” do papa durante a campanha de 2016 nos EUA, os estadunidenses mesmo assim elegeram Donald Trump – que, aliás, ganhou com um considerável apoio católico.
Se o teste da capacidade de um papa de guiar a história é a sua influência sobre os líderes e as políticas nacionais, não está claro como Francisco se classificaria.
Porém, ao mesmo tempo em que o Vaticano praticava um silêncio estratégico sobre o terremoto político no Reino Unido, ele também estava sendo efusivo sobre o fato de a adolescente Thunberg ter sido nomeada “Pessoa do Ano” da revista Time.
Falando aos repórteres no dia 12 de dezembro, na coletiva de imprensa sobre a publicação da mensagem de Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2020, celebrado no dia 1º de janeiro de cada ano, o cardeal Peter Turkson, prefeito do escritório vaticano para o Desenvolvimento Humano Integral, chamou Thunberg de “uma grande testemunha daquilo que a Igreja ensina sobre o cuidado do ambiente e o cuidado da pessoa”.
“Qual é o objetivo dela? Faltar a escola por um futuro, um futuro que não pode ser garantido porque não há nenhum cuidado pelo ambiente”, disse Turkson, acrescentando que, em muitos casos, há uma completa falta de coerência entre as políticas internacionais sobre o ambiente e o que é dito às crianças.
“É uma coerência com o ensino da Igreja”, disse ele, acrescentando que o cuidado pelo ambiente também é uma questão de fé.
Thunberg, é claro, não é uma política, e o seu movimento das “Sextas-Feiras pelo Futuro” não tem poder algum para definir políticas em lugar algum. No entanto, ela se tornou o rosto global dos jovens que exigem ações contra as mudanças climáticas, inspirando incontáveis pessoas a seguirem a sua liderança em todo o mundo.
Uma sueca essencialmente secular, Thunberg baseia seu ativismo na ciência, e não na religião, e, embora não haja razão alguma para acreditar que ela tenha se envolvido na luta para conter as mudanças climáticas por causa de Francisco, ela obviamente gosta do pontífice. Quando os dois se encontraram em abril passado, Thunberg disse ao papa: “Obrigado por se pronunciar pelo clima e por falar a verdade. Isso significa muito".
Para os secularistas há muito tempo acostumados a pensar na religião como um obstáculo ao progresso, deve ser um pouco desconcertante, de fato, mas também encorajador saber que o líder religioso mais visível do mundo lhes dá cobertura.
Durante a longa era de São João Paulo II, os observadores vaticanos aprenderam a avaliar o impacto político do papa através de uma lente essencialmente vertical. João Paulo II moldava os assuntos nacionais e internacionais no aqui-e-agora, desempenhando um papel-chave no colapso do comunismo, instando vários Estados policiais da América Latina a se encaminharem para a democracia (como disse um cardeal veterano, o único ditador latino-americano a sobreviver a um encontro com o papa foi Fidel Castro) e manifestando a oposição moral à invasão do Iraque por parte do governo Bush.
Na verdade, o impacto de João Paulo II sempre foi tanto horizontal quanto vertical, porque seu papel na derrubada do Muro de Berlim começou com o apoio a um movimento de protesto civil essencialmente de baixo para cima na Polônia, chamado Solidariedade. Por ele ter sido bem-sucedido com tanta rapidez, no entanto, tendemos a pular do método para o resultado.
A própria formação de Francisco como populista peronista na Argentina significa que ele é indiscutivelmente ainda mais sensível aos perigos de a política ser sequestrada pelas elites (de qualquer ideologia) que sirvam a seus próprios interesses e, portanto, à importância de uma sociedade civil forte e engajada.
Um modo de ver esse instinto em Francisco é que, com os papas anteriores, o discurso político mais importante deles a cada ano era ao corpo diplomático credenciado no Vaticano, representando o sistema vertical. Com Francisco, no entanto, em vez disso, é a sua mensagem ao Encontro Mundial dos Movimentos Populares, uma iniciativa lançada sob sua inspiração.
Em agosto passado, o Vaticano publicou um livro chamado “A irrupção dos Movimentos Populares. Rerum novarum do nosso tempo”, uma referência à encíclica social do Papa Leão XIII, de 1891, que lançou o ensino social católico moderno. Claramente, a ideia era elevar os movimentos populares como a encarnação mais importante da agenda social da Igreja no nosso tempo, aos quais Francisco, em seu prefácio, chamou de “um fermento para uma profunda transformação social”.
Se a maneira correta de avaliar o sucesso ou o fracasso de alguém é medi-lo em relação aos seus próprios objetivos, portanto, talvez não seja a vitória dos Conservadores no Reino Unido, mas sim a aclamação global de uma adolescente não católica de 16 anos que, ironicamente, oferece o melhor parâmetro sobre Francisco na semana passada.
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Por que Greta pode ser o modo certo para avaliar o impacto político de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU