16 Dezembro 2019
Antonio Martins, jornalista, analisa a surpreendente vitória do Partido Conservador na última eleição inglesa, e as potencialidades do Partido Trabalhista. O artigo é publicado por Outras Palavras, 13-12-2019.
Uma oportunidade de dar novo sentido às revoltas populares que marcam 2019 e às frustrações com a política tradicional, que atravessam o mundo há anos, foi perdida ontem. Liderado por sua ala mais à direita e impulsionado pelo Brexit, o Partido Conservador venceu eleições cruciais e obteve folgada maioria no Parlamento (365 de 627 cadeiras) – mesmo alcançando menos da metade (43,6%) dos votos. O resultado frustrou, ao menos temporariamente, um processo que se iniciou há quatro anos, e tem grande significado para a esquerda em todo o mundo. Sob a liderança de Jeremy Corbyn, alcançada de modo surpreendente em 2015, o Partido Trabalhista transformou-se, multiplicou seu número de membros e reassumiu a busca de alternativas ao capitalismo. Sua vitória teria colocado em prática um programa de impulso aos serviços públicos e ampliação dos direitos sociais; de fortalecimento do Comum e combate ao poder das corporações e da oligarquia financeira; de redistribuição de riquezas combinada com preservação da natureza. Tudo isso, num país onde os fatos políticos têm enorme repercussão internacional.
Agora, as críticas a Corbyn precipitam-se. Acusam-no de ser pouco carismático; de condescender com o antissemitismo; de ter avançado à esquerda de maneira irrealista e, por todos estes motivos, afastado-se do eleitorado. São análises superficiais. Com 32,2% dos votos, o Labour continua robusto e popular (comparativamente, os maiores partidos de esquerda obtiveram, em suas últimas eleições, 29,3% no Brasil, 19,58% na França, 20,5% na Alemanha, 28% na Espanha, 22,9% na Itália). Teve maioria em todas as faixas etárias até os 44 anos (chegando a 57% no grupo entre 18 e 24). Além disso, sua derrota eleitoral não tem sentido estratégico, porque não o torna incapaz de intervir com protagonismo na nova conjuntura (difícil e certamente tumultuada) que se abrirá. Parte dos ataques visa enterrar uma experiência inovadora e capaz de inspirar a esquerda muito além do Reino Unido. Por isso, examinar estes quatro anos – seus êxitos, as causas reais de seu insucesso nas urnas, suas perspectivas no futuro – é essencial.
Fonte: Lord Ashcroft Polls
Ativista ligado às causas trabalhistas, ao anti-imperialismo e à lutas anticoloniais da América Latina desde a juventude; próximo aos grupos marxistas britânicos; membro rebelde do Parlamento britânico a partir de 1983, Jeremy Corbyn foi figura desconhecida na arena internacional até tornar-se líder do Partido Trabalhista, em setembro de 2015. Sua escolha foi uma enorme surpresa. O posto ficou vago com a renúncia de Ed Miliband, após derrota em eleições gerais. Na Inglaterra, é preenchido por meio de eleições diretas, onde votam todos os membros de cada partido. Corbyn, já então aos 65 anos, julgou que não seria justo que a disputa ocorresse sem a presença de um postulante claramente identificado com as alas esquerdas do Labour. Na ausência de outros, candidatou-se.
Sua vitória era tão improvável que, a princípio, sequer reuniu o número de adesões necessárias para entrar na cédula eleitoral. Pôde participar porque colegas parlamentares o endossaram, de última hora, num gesto condescendente. Uma vez confirmado, Corbyn dirigiu-se à base trabalhista com um programa claro, que combinava posições claramente antineoliberais com posturas democráticas. Anunciou que se oporia à retirada de direitos previdenciários (defendida então pelo Labour) e a todas as políticas de “austeridade” (praticadas pelo partido). Propôs ação do Estado para criar um banco voltado ao financiamento da habitação para as maiorias e à melhora de infraestrutura, nas áreas empobrecidas. Declarou-se contrário à aliança militar britânica com os EUA, às armas nucleares e à própria presença do país na OTAN. Anunciou a intenção de consultar frequentemente os militantes do partido, sobre as questões centrais de sua política.
Considerado irrealista e ridicularizado por toda a mídia, este programa conquistou no entanto, em poucas semanas, a maioria dos membros do partido. Em meio a três outros candidatos, todos ligados ao establishment trabalhista, Corbyn elegeu-se com 59,5% dos votos. E ele não se mostraria capaz apenas de provocar – mas também de construir. Sua força nunca se assentou apenas nos votos dos grupos à esquerda. Sua eleição, ao contrário, desencadeou uma enchente de adesões ao partido, que dobrou o número de membros. A grande maioria são jovens, em processo inicial de politização.
A resiliência de Corbyn, quando desafiado pela burocracia partidária, veio daí. Menos de um ano após eleito, ele foi derrubado, em manobra de seus próprios colegas de bancada parlamentar. A moção de desconfiança que o tirou do posto, em junho de 2016, foi aprovada por 172 votos contra apenas 40. Mas ele voltou nos braços dos ativistas, dois meses depois. Obteve o direito de disputar novamente o pleito e o venceu – desta vez com 61,8% dos votos, numa eleição que teve o comparecimento de estonteantes 77,6% dos inscritos no partido.
A importância deste movimento fica ainda mais nítida quando ele é observado em seu contexto. Na Europa e na América do Norte, é o tempo do igualamento dos dos partidos; dos supostos social-democratas que se encarregam de executar o programa neoliberal. Ao mesmo tempo, no rastro das revoltas de 2011, há uma busca de alternativas à esquerda. Na Espanha, o movimento dos Indignados acaba de parir o Podemos (em 2014). Nos Estados Unidos, Bernie Sanders prepara-se para disputar a Casa Branca. O primeiro feito político de Corbyn é demonstrar que, em certas condições, também os partidos que se julgava mortos podem renascer. E esta impressão se tornará mais forte logo a seguir, nas eleições gerais britânicas de 2017.
Em fevereiro de 2017, uma colagem na revista londrina The Economist – pró-capitalista e ferina – expõe o sentimento de sarcasmo do establishment britânico e global diante da nova esquerda. Uma lápide marca o túmulo do Partido Trabalhista, num descampado. Uma boina, idêntica à que Corbyn frequentemente usa, compõe a cena – junto com rosas vermelhas e murchas. O texto que a imagem ilustra é eloquente. Prevê a morte do Labour em 2030, após uma série de desatinos políticos, iniciados pelo então líder trabalhista. O sentido é claro. Corbyn pode empolgar os antigos e novos militantes trabalhistas, pensa Economist. Mas não há o que temer: quanto mais eles se entusiasmarem, mais se encerrarão em sua bolha e se afastarão dos cidadãos comuns.
É provável que a primeira-ministra conservadora Theresa May tenha comprado este peixe. Em abril de 2017, diante de dificuldades no Parlamento e de pesquisas de opinião que lhe davam 25 pontos percentuais de vantagem sobre os trabalhistas, ela os desafiou com uma proposta de convocação antecipada de eleições gerais. Ao contrário do que se previa, Corbyn e o Labour não se intimidaram: votaram em favor da antecipação.
A campanha foi extremamente curta: apenas cinco semanas. Mas teve um elemento-surpresa: um líder trabalhista ainda mais audacioso e concreto, na formulação de uma alternativa ao neoliberalismo. Seu programa era provocador desde o título: “Para muitos, não para poucos”. Mas agora, ao contrário do que fizera na disputa pela liderança trabalhista, Corbyn não se limitava a elencar pontos esparsos, capazes de sinalizar a rejeição às políticas de “austeridade”. Ele acenava aos Comuns.
Seu Manifesto, como chamam os britânicos, era, já então, uma articulação coerente de propostas muito claras para inverter o rumo das políticas do Estado. Havia compromisso de transformar os serviços públicos (revitalizando o Sistema Nacional de Saúde, eliminando as mensalidades nas Universidades britânicas, reforçando-as ao mesmo tempo com dotações adequadas de recursos). Surgiam medidas redistributivas fortes, para financiar esta ousadia (aumento dos tributos sobre as corporações, os mais ricos, as operações financeiras). Entravam em cena medidas estruturais na Economia (reestatização do abastecimento de água, das ferrovias, dos correios). Dialogava-se com agendas contemporâneas (reconhecimento vasto dos direitos LGBTI, proibição de propaganda de alimentos ultraprocessados na TV, banimento da exploração de petróleo por fragmentação rochosa). Anunciava-se o fim do alinhamento britânico aos EUA (proibição da venda de armas à Arábia Saudita, promessa de reviravolta na política externa).
O resultado, em 8 de junho, foi o desmentido frontal às previsões dos que acreditavam na moderação eterna do eleitorado. O Labour não venceu. Mas chegou a 40% dos votos, ampliou em 30 parlamentares sua bancada e demonstrou que há espaço, na política contemporânea, para um novo imaginário pós-capitalista. De quebra atirou os conservadores a uma crise da qual só sairiam dois anos mais tarde, ao preço de se descaracterizarem e projetarem o país em incertezas. Aqui entra a polarização pró-Brexit.
Em outubro de 2017, a reviravolta rebate na refinada Economist. Uma das capas, sempre mordazes, apresentava o mesmo Corbyn já não como ícone da tumba do Labour, mas diante da porta de 10, Downing Street — a residência oficial do governo britânico. O líder trabalhista era, dizia a revista, o “provável próximo primeiro-ministro”. O texto sondava caminhos para barrar suas políticas, vistas pelo establishment como antimercado.
A que acabou prevalecendo foi talvez a menos esperada. Uma crise política de dois anos levou o Parlamento a um impasse duradouro, derrubou a primeira-ministra Theresa May e deixou desorientados o próprio Partido Trabalhista e sua liderança. Permitiu, ao final, a ascensão de Boris Johnson, um ex-jornalista demitido por manipular informações, inexpressivo por anos nas próprias fileiras conservadoras e cúmplice de Steve Bannon no estratagema de manipulação eleitoral articulado pela Cambridge Analytica para favoreceu o Brexit.
Entre 2017 e junho de 2019, o establishment britânico bateu cabeças incessantemente, nas tratativas para concretizar a saída da União Europeia, decidida em plebiscito em 2016. Suas hesitações refletiam as da aristocracia financeira e das corporações – quase sempre temerosas de perder acesso ao mercado europeu, às vezes seduzidas por uma aproximação ainda mais intensa com os Estados Unidos. Mas a indecisão e a demora em executar o que o plebiscito decidira acabaram paralisando também o Labour e Corbyn.
O partido dividiu-se irremediavelmente. Não foi uma desavença originada em sua direção. Está ligada à própria composição de sua base. Parte dela, formada pela antiga classe operária do interior industrial e pelo sindicalismo do pós-II Guerra, votou maciçamente pelo Brexit e manteve-se fiel à proposta mesmo quando começaram a ficar claros os enormes riscos que ela implica. São os trabalhadores cujos empregos foram eliminados pela quebra das fronteiras e deslocalização das empresas (favorecidas pela União Europeia – UE); e cujas condições de vida degradaram-se devido às políticas de “austeridade” (comandadas pelo Banco Central Europeu). Identificam, não sem uma enorme dose de razão, a UE como um organismo hegemonizado pelo capital, impermeável à democracia, construído para eliminar direitos sociais.
Mas o Labour também é composto pela paisagem londrina – as massas de jovens precários (porém cosmopolitas), as famílias de imigrantes, a intelectualidade de esquerda. Todos estes grupos sabem que o Brexit favorecerá o provincianismo e a xenofobia, os deixará isolados diante do poder da classe dominante britânica, abrirá caminho para uma aproximação nefasta com Washington e não trará de volta nem as indústrias, nem os empregos.
Em junho deste ano, Theresa May caiu, depois de derrotada seguidamente em suas propostas sobre o Brexit. Para conquistar o governo, Boris Johnson precisou apenas do voto dos membros do Partido Conservador. Ao chegar ao poder, tinha um discurso simplório, porém claro: Get Brexit done, “Façamos o Brexit”. Sabia que, apoiado nele, podia polarizar o debate, manter os trabalhistas divididos, ampliar as chances de vencê-los e, com base neste trunfo, unir em torno de si o grande poder econômico. Nada disso seria possível, porém, sem contar com um erro tático fatal do Labour e de Corbyn.
“Foi decisão minha. Eles [os outros membros da liderança] a engoliram”. Indagado, numa de suas entrevistas mais recentes, sobre por que o Partido Trabalhista aceitara o desafio de Boris Johnson e apoiara, em outubro, a convocação de eleições antecipadas, Jeremy Corbyn assumiu para si a responsabilidade. Foi seu erro fatal, possivelmente provocado pelo excesso de confiança adquirido nas vitórias surpreendentes anteriores.
Agressivo e histriônico como sempre, Boris Johnson tornou-se agressivo como nunca ao assumir o governo, em setembro. Mais uma vez, tomou o Brexit como bandeira única. Acusou todos os adversários de bloquearem a vontade popular. Arrogou a condição de representante da maioria – o que era e é falso. Escancarou seu caráter autoritário. Em 28 de agosto, anunciou a intenção de suspender os trabalhos do Parlamento até outubro, para liderar sozinho o processo final de saída da União Europeia. Por ilegal, a decisão foi revertida semanas depois pela Corte Suprema. Mas o desafio estava lançado e o revés parcial não inibiu o primeiro-ministro. O lance era, percebe-se agora, preparativo para outro maior.
Em 29 de outubro, Johnson propôs eleições antecipadas. A oposição tinha condições para resistir. As pesquisas indicavam os conservadores 19 pontos à frente dos trabalhistas. Mas Corbyn preferiu aceitar o desafio e, conforme revelou mais tarde, impô-lo à liderança do partido. Talvez sua vasta trajetória em defesa da democracia o tenha feito sentir-se desconfortável, diante do chamado do adversário ao pronunciamento dos eleitores. Talvez não tenha percebido que, depois de dois anos de protelações no Parlamento, o Brexit seria, inevitavelmente, o tema central da campanha.
Os trabalhistas voltaram a crescer, nas cinco semanas de campanha. Como em 2017, seu esforço foi liderado pelos grupos mais à esquerda, como o Momentum, que desenvolveu intenso diálogo de porta em porta. Este trabalho foi efetivo, desmentindo suposições segundo as quais a radicalização afastou os eleitores. A dianteira conservadora caiu, ao final, à metade – para dez pontos percentuais. Mas a polarização em torno do Brexit e a divisão do Partido Trabalhista foram decisivas. A aposta de Corbyn, de que o programa trabalhista seria capaz de desviar o foco da disputa, fracassou. Horas depois da derrota, o líder do Labour anunciava que não comandará o partido numa próxima eleição. Qual o futuro?
* * *
“Agora é que a luta está começando”, disse ontem (12/12) Emily Thornberry, ministra do Exterior do governo paralelo de Corbyn (outra tradição britânica), ao ser eleita para o Parlamento em seu distrito. Muito próxima do atual líder do partido, ela é uma das candidatas a sucedê-lo. A batalha da esquerda não será fácil. Os últimos tempos foram dela – e especialmente intensos; mas, dos anos 1970 até 2015, o partido viveu quatro décadas de acomodação ao neoliberalismo e burocratização. Após a derrota de ontem, a antiga burocracia tentará colocar as asas – envelhecidas, mas ainda poderosas – de fora. Na mídia e no establishment político, a palavra de ordem está lançada: “chegou a hora de destruir o corbynismo”.
Mas nada será tranquilo, ou favorável, tampouco para os conservadores. Completar o Brexit – a obrigação central que assumiram – será árduo, num período de estagnação geral das economias capitalistas, desavenças entres interesses nacionais e corporativos conflitantes, revoltas populares (vale notar a persistência dos Gillets Jaunes e a grande greve geral francesa de 12/12), ausência de um projeto de futuro. Agora, Boris Johnson, em confortável maioria, não poderá posar de outsider.
Se o Labour for capaz de preservar o ânimo recobrado nos últimos quatro anos, tanto melhor. Neste caso, a Inglaterra continuará a mandar sinais alentadores. De qualquer modo, em meio a uma crise civilizatória que só parece se agravar, sem que se veja desfecho à frente, a batalha singular de Jeremy Corbyn merece ser celebrada. Contra os preconceitos disseminados pela mídia, contra a ideia de que o futuro deve ser entregue aos mercados, contra os que se resignam a buscar o “mal menor” – contra tudo, ele mostrou que ainda há política possível.
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Reino Unido: razões de um fracasso provisório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU