13 Dezembro 2019
Na semana passada, o Instituto Lumen Christi, da Universidade de Chicago, nos EUA, sediou um evento sobre governança da Igreja intitulado “A questão em aberto da política da Igreja: Trento, Vaticano I e Vaticano II”.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 09-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu ainda não consegui encontrar o vídeo do evento, mas, ao procurá-lo, me deparei com o vídeo de um evento promovido pelo Lumen Christi no ano passado que abordou o mesmo tema, mas com um foco mais explícito no Vaticano I. Esse evento se intitulava “Vaticano I: perdas e ganhos com a governança papal da Igreja Católica”.
Em um tempo em que se levantam questões sobre a viabilidade do atual modelo de governo da Igreja Católica, ambos os eventos foram um lembrete oportuno da matriz de questões envolvidas e da seriedade com que essas questões devem ser abordadas. Hoje, vou me concentrar no evento do ano passado, enquanto espero pelo vídeo do evento da semana passada.
O padre jesuíta John O’Malley explicou que, até o fim do século II, os bispos eram responsáveis pela governança da Igreja local e, no fim do século III, o bispo de Roma recebeu um status especial. No século XI, os papas começaram a exercer graus crescentes de governança sobre a Igreja universal. O papado foi notavelmente enfraquecido no século XVIII, simbolizado pela morte do Papa Pio VI sob custódia no fim do século.
Além disso, quando o Vaticano I foi aberto, a centralização da autoridade havia se tornado marcante na governança civil e “era exigida pela cultura em que se vivia”, disse O’Malley. A governança papal também destacava a universalidade da Igreja, dando uma expressão concreta do mandato do Senhor de ir aos confins da terra para batizar e pregar, além de neutralizar aquilo que O’Malley definiu como “um nacionalismo quase raivoso” que caracterizou o século XIX, senão sempre, efetivamente.
O’Malley aborda uma das ironias da história que eu já observei antes, a saber, que governos anticatólicos muitas vezes fortaleceram o papado sem querer. Por exemplo, embora a Igreja Católica tenha condenado a separação entre Igreja e Estado até o Vaticano II, o fato de a Constituição dos EUA ter consagrado isso impedia o governo dos EUA de exercer qualquer papel na escolha dos bispos, e esse poder foi colocado inteiramente nas mãos do papa.
O governo anticlerical da Terceira República Francesa, em 1905, revogou a concordata que dera ao governo uma voz proeminente na escolha dos bispos, deixando novamente o assunto nas mãos do papa. E assim por diante.
O’Malley observa, com razão, a importância das novas tecnologias da comunicação em também tornar o papa uma presença mais visível em todo o mundo católico.
O’Malley ressalta que essa mudança significou que, embora os objetivos espirituais da Igreja nunca fossem obstruídos pelos objetivos políticos de um governo em particular, a escolha dos bispos estava agora inteiramente nas mãos de clérigos. Reis, rainhas e imperadores, afinal, eram leigos. Eu acho que o ponto mais importante é que o envolvimento dos governos acrescentava um contrapeso local à autoridade romana que provavelmente exercia um papel moderador. E a maioria dos membros reais via seu papel como divinamente ordenado, e, por isso, eu questiono até que ponto o fato de eles serem leigos modificava a paisagem.
De qualquer forma, e como O’Malley observa, quaisquer que sejam os pontos fortes ou fracos do antigo sistema, não há como recuperá-lo.
O papel do papado como “teólogo-chefe” emerge do movimento ultramontano e, especificamente, da Pastor Aeternus, a constituição dogmática da Igreja aprovada no Vaticano I. Embora não esteja tecnicamente ligada ao primado papal em outras áreas, essa mudança teve o efeito de enfraquecer o episcopado e de fortalecer o papado.
Deve-se notar também que se tratava de uma constituição truncada, porque o Concílio havia sido interrompido pelo início da Guerra Franco-Prussiana e, portanto, nunca chegou a discutir e a promulgar o magistério católico sobre o episcopado.
O’Malley observa, com razão, que São Tomás de Aquino nunca lidou sistematicamente com o conceito de magistério papal, menos ainda o citou, porque não havia nenhuma encíclica na sua época. Essa é uma questão que continuará a exigir um exame: a cátedra de Pedro é muitas coisas, mas não é uma cátedra acadêmica.
O’Malley concluiu a sua fala com a afirmação de que é “axiomático” que a boa governança provavelmente surgirá quando houver um equilíbrio entre o centro e a periferia. Ele acredita que a tradição tem os recursos para alcançar esse equilíbrio, porque ela é de estrutura colegial e também hierárquica.
Russell Hittinger, que atualmente é pesquisador residente no Lumen Christi, apontou para a difícil história dos cânones disciplinares do Concílio de Trento sobre o matrimônio, que demandavam a presença e a bênção de um padre para a sua validade, entre outras mudanças. Alguns governos civis viram isso como uma ponte longa demais e se recusaram a permitir a publicação dos cânones. Eles só foram universalmente aplicados após o Vaticano I, 300 anos depois!
A imagem de um papado todo-poderoso na Idade Média ou na época da Reforma é tolice. Hittinger tinha muito mais a dizer, e eu encorajo as pessoas a assistirem a sua intervenção na íntegra, assim como a resposta às duas apresentações do padre jesuíta Joseph Mueller, da Marquette University.
Meu objetivo hoje é meramente ressaltar que os defensores das mudanças na governança da Igreja, geralmente cheios de uma adequada indignação em relação ao modo como a hierarquia lidou – é melhor dizer “lidou mal” – com a crise dos abusos sexuais clericais, precisam considerar as razões teológicas e históricas pelas quais a Igreja está estruturada da forma como está e precisam ser honestos sobre os perigos que as suas propostas pressagiam.
Assim, por exemplo, após a renúncia forçada de Dom Richard Malone, bispo de Buffalo, Terry McKiernan, codiretor do BishopAccountabilty.org, disse: “Roma permitiu e possibilitou o descarrilamento em câmera lenta de uma grande diocese estadunidense”. Em maio, o papa deu aos arcebispos metropolitanos locais a responsabilidade de solicitar autoridade para investigar as acusações feitas contra um bispo sufragâneo que envolvessem abuso sexual e o seu encobrimento.
Durante os últimos meses, eu fiquei esperando que o escritório do cardeal Timothy Dolan, de Nova York, fizesse um anúncio de que ele havia pedido permissão para abrir uma investigação desse tipo. Eu não sei por que ele não o fez. Foi Roma que finalmente interveio em outubro, despachando o bispo do Brooklyn, Nicholas DiMarzio, para realizar uma visitação apostólica. Em menos de três meses, Malone foi deposto. Essa foi a terceira de tais visitações nos EUA ordenada pelo Papa Francisco, e todas terminaram com a remoção do bispo (Memphis e Kansas City eram as outras). Isso é abandono do dever? E, a propósito, o papa realizou um Sínodo durante esse tempo.
Tim Busch, o plutocrata que acha que sabe como consertar a Igreja Católica, repentinamente ficou a favor da liderança leiga. O Instituto Napa de Busch é um foco de oposição a Francisco. Esse é o tipo de liderança leiga que achamos que ajudará a Igreja? Ou o tipo oferecido por Carl Anderson nos Cavaleiros de Colombo? Os católicos progressistas têm a organização ou o dinheiro para competir com esses conservadores se os leigos passarem a obter um maior controle sobre a Igreja?
A influência governamental na escolha dos bispos que O’Malley descreveu também introduziu considerações especificamente políticas no processo. Alguém acha que envolver os leigos hoje não teria o mesmo resultado? Ao comentar sobre o comportamento muitas vezes caprichoso da rainha Anne, em seu livro “Marlborough: His Life and Times”, Winston Churchill comentou: “O favor real era como o clima. Era tão inútil censurar a rainha Anne por volubilidade e inconstância quanto acusar um eleitorado do século XX desses vícios”.
Nesse ambiente, neste país, neste momento da história, é irresponsável e imprudente bater no tambor da liderança leiga. Aqueles que tagarelam sobre os problemas dos “bispos que investigam bispos” deveriam levar a sério e explicar que alternativa eles acham que é melhor.
É preciso salientar que, nesta década, a hierarquia católica, apesar de toda a sua disfunção, levou Francisco a liderar a Igreja universal? A nossa vibrante democracia produziu o presidente Donald Trump. Eu prefiro me arriscar com a hierarquia, muito obrigado.
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Os perigos de desfazer a histórica força do papado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU