13 Dezembro 2019
Foi publicado em italiano, com tradução de Massimo Parizzi, o livro “Vaticano I. Il Concilio e la genesi della Chiesa ultramontana” [Vaticano I: o Concílio e a gênese da Igreja ultramontana, em tradução livre] (Milão: Vita e Pensiero, 2019, 238 páginas), uma obra na qual o padre jesuíta John William O’Malley, professor de teologia da Georgetown University em Washington e historiador da Igreja, relata os acontecimentos que levaram ao Concílio e os efeitos que, ainda hoje, depois de 150 anos, são sentidos em relação à vida da Igreja e à figura de pontífice.
O jornal L’Osservatore Romano, 08-12-2019, publicou alguns trechos da introdução do livro. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Concílio Vaticano I, convocado pelo Papa Pio IX (reinante de 1846 a 1878), reuniu-se no transepto norte da Basílica de São Pedro, em Roma, por cerca de sete meses, do início de dezembro de 1869 a meados de julho de 1870 (embora com algumas outras reuniões esporádicas em agosto-setembro).
Era o primeiro concílio ecumênico (de toda a Igreja) há mais de 300 anos, e, por aquelas que se presumia que seriam as consequências da Pastor aeternus, o decreto conciliar que definia o primado e a infalibilidade do pontífice, os especialistas previam que seria o último. O decreto, segundo eles, tornava os concílios supérfluos; a partir daquele momento, toda decisão poderia e deveria ser tomada pelo papa.
No dia 25 de janeiro de 1959, João XXIII, anunciando a sua intenção de convocar um concílio (que, pouco tempo depois, chamou de Vaticano II), desmentiu aquelas previsões. No entanto, a Pastor aeternus constitui um marco na história da Igreja Católica: os seus efeitos são sentidos profundamente ainda hoje. Mesmo que apenas por aquele decreto, o Vaticano I merece ser estudado.
Se a história conta como chegamos a ser o que somos, a história do Vaticano I conta como a Igreja Católica, em um período relativamente curto, assumiu uma forma nova e muito mais concentrada no papa, que é o que indica o termo ultramontano.
Durante o século XIX, o papado perdeu o Estado pontifício e até a cidade de Roma, e, no início do século XX, quase somente os papas continuavam pensando que essas perdas poderiam ser recuperadas um dia. Mas, ao mesmo tempo, eles já haviam começado a exercer sobre a Igreja uma autoridade maior do que a de que jamais haviam desfrutado.
Os responsáveis por essa importante reviravolta foi o Concílio Vaticano I, as circunstâncias que lhe deram origem e as circunstâncias que o seguiram. No século XIX, não se vira e nunca se veria um órgão tão numeroso e tão internacional se reunir por um período tão longo. Embora não fosse imediatamente evidente, o Concílio representou um solene desafio ao liberalismo do século, sobretudo por aquilo que o termo significava quanto a formas representativas de governo, liberdade religiosa, separação entre Igreja e Estado, e secularização das escolas e de outras instituições.
Na reação ao liberalismo, encontrava expressão uma série de valores profundamente enraizados nas classes dominantes tradicionais da Europa ocidental, às quais a experiência havia ensinado que liberdade, igualdade e fraternidade não eram uma panaceia, mas sim uma garantia de carnificina e caos. Tais sentimentos acabaram se deteriorando gradualmente, mas demonstraram uma grande capacidade de renascimento e ainda não desapareceram.
O significado do Concílio, portanto, vai além da Igreja Católica e dos seus problemas internos. Os chefes das grandes potências o acolheram e o acompanharam com muita preocupação. Seus embaixadores junto à Santa Sé combinavam com os jornalistas, e não só com eles, para obter informações sobre o que estava acontecendo e o que isso poderia significar para as relações entre Estado e Igreja.
Antes que o Concílio se reunisse, o príncipe Chlodwig von Hohenlohe-Schillingsfürst, primeiro-ministro da Baviera, escreveu uma carta circular para advertir acerca da ameaça de colocar a Igreja contra os governos legítimos da Europa que ele representava. Particularmente atentos e famintos de informações eram William Gladstone e Émile Ollivier, respectivamente primeiros-ministros britânico e francês. Depois do Concílio, Gladstone e Bismarck publicaram panfletos para denunciar a situação, e Ollivier dedicou-lhe uma história e uma análise em dois volumes.
O impulso para definir o primado e a infalibilidade do pontífice não caiu do céu, mas foi fruto de uma poderosa campanha lançada em nível de base em grande medida por leigos. Na infalibilidade papal, eles viam a única resposta possível à crise cultural, política e religiosa desencadeada pela Revolução Francesa e pelas sublevações que, com Napoleão, se seguiram por toda a Europa. Se não fosse enfrentada diretamente, defendiam, essa crise teria tido as consequências mais dramáticas para a Igreja Católica, o cristianismo e a própria civilização. A única força para enfrentá-las era uma autoridade indiscutível.
A doutrina-chave ultramontana da infalibilidade papal afundava suas raízes na Idade Média, e os teólogos, especialmente a partir do século XVII, repetiam os argumentos fundamentais a seu favor e a favor de uma Igreja mais centrada no papado.
O expoente dessa visão mais levado em consideração e mais amplamente lido era o jesuíta Roberto Bellarmino (1542-1621). Somente no século XIX, porém, surgiram personalidades capazes de fazer com que as ideias ultramontanas parecessem tão relevantes e convincentes a um vasto público a ponto de lhes conferir uma força concreta.
Foi o nascimento de um movimento. Pôr em prática tais ideias, no entanto, significaria renunciar a convicções sobre as prerrogativas da Igreja local, até então, geralmente, dominantes no catolicismo. Acendeu-se, assim, no início do século XIX, um choque que continuaria inabalável até os últimos dias do Vaticano I.
O primado papal é a preeminência do papa no governo, enquanto a infalibilidade papal é a preeminência do papa no magistério. Trata-se de dois conceitos distintos, mas tão estreitamente conectados que, no segundo, pode-se ver um aspecto do primeiro. Ambos ocupavam um lugar importante no pensamento dos ultramontanos, mas, no centro da sua atenção, estava particularmente a infalibilidade.
O fato de que se devia um respeito especial ao sucessor de São Pedro era reconhecido desde os primeiros anos da Igreja. Tal crença se fundamentava na imagem neotestamentária do papel de liderança exercido por Pedro entre os discípulos de Jesus. Bispos e outros estavam de acordo a esse respeito, no Oriente e no Ocidente. O que era fonte de candentes disputas era somente aquilo que esse respeito especial devia significar em nível prático, uma controvérsia que seguia em frente há séculos. Apesar das amargas polêmicas no Ocidente sobre o porte da preeminência dos papas em relação a governantes, bispos locais e, por fim, concílios, tal preeminência era, teoricamente, reconhecida quase universalmente.
A situação mudou radicalmente com a Reforma, que declarou o papa como inimigo do verdadeiro cristianismo e até o anticristo. Os católicos se uniram em defesa do papado, mas, como deixaram evidentes as situações de impasse no Concílio de Trento, continuaram discordando entre si sobre o escopo da autoridade pontifícia.
No século XVIII, os ministros dos grandes monarcas católicos desafiaram quase constantemente as reivindicações papais. As definições do Vaticano I pretendiam pôr um fim nessa situação de uma vez por todas.
A preeminência do papa no magistério, especialmente como se expressava na infalibilidade, tinha uma história igualmente complexa em relação à do primado e era objeto das mesmas interrogações sobre os seus limites.
Assim como o Vaticano I a definiria em seguida, a infalibilidade é a doutrina que afirma que, quando o papa, em certas condições, declara que um ensinamento é de fé divina e apostólica, ele não pode errar, assim como o seu pronunciamento, consequentemente, pode ser cancelado em seguida.
A inerrância é reativa, enquanto a infalibilidade é proativa. A primeira se produz em dar testemunho da tradição da Igreja em meio a um conflito doutrinal. A segunda entra em vigor ao se tomar a iniciativa se pronunciando sobre uma doutrina, contestada ou não, e confere a uma doutrina uma autoridade nova e inatacável, independentemente do prestígio que ela já pode gozar.
Pio IX concebia o Concílio como a resposta negativa da Igreja ao liberalismo e ao mundo moderno que a havia produzido e, depois, abraçado. Ele enfrentara esse mundo sozinho com o “Sílabo dos Erros” (1864), que terminava com a condenação aparentemente sem reservas da ideia de que o pontífice romano devia se reconciliar com o progresso, o liberalismo e a cultura moderna. O problema tornou-se tão premente para ele a ponto de requerer, para enfrenta-lo, um concílio.
Nessa convicção, ele não estava sozinho. Como lhe disse o cardeal Luigi Lambruschini ainda em 1849, a apenas três anos da sua eleição como papa: “Penso que V.S. em seu tempo (e esse tempo não pode estar longe) deverá convocar um concílio geral para condenar erros recém-nascidos e fazer reviver a fé no povo cristão, restaurar e revigorar a disciplina eclesiástica tão enfraquecida nos nossos dias. Os males são gerais; portanto são-lhe necessárias providências gerais”.
Quando, 20 anos depois, o Concílio se reuniu, o seu programa correspondia fielmente às indicações de Lambruschini. Se os documentos preparados para isso não continham referências explícitas à infalibilidade papal, em retrospectiva, pode-se ver com clareza como a campanha ultramontana e a oposição que ela suscitou levaram quase inevitavelmente à Pastor aeternus, que é uma implícita, mas poderosa, afirmação de que a ordem social e política justa é hierárquica. É pela Pastor aeternus que o Vaticano I é lembrado. Além dela, entretanto, o Concílio promulgou a Dei Filius, que abordava o problema da fé religiosa em um mundo cada vez mais secular e cético, problema que ainda nos toca muito de perto. Junto com a Pastor aeternus, portanto, é também a Dei Filius tornar importante hoje no Vaticano I.
O concílio convocado de Pio IX foi o primeiro concílio em que nenhum leigo participou, embora o laicato tenha exercido sobre ele uma influência de extraordinária importância. No Vaticano I, por sua vez, participaram os bispos das Igrejas orientais, que haviam se reconciliado nesse meio tempo com a Igreja latina. Foi o primeiro a ser celebrado na Basílica de São Pedro e, pelo número de bispos que dele participaram – mais de 700 nos momentos de máxima presença –, foi um dos concílios mais lotados. Era considerável o número de prelados de outros continentes. A partir desse ponto de vista, ele foi o primeiro concílio a poder reivindicar legitimamente um caráter mundial.
No entanto, foi um encontro em tudo e por tudo europeu/assalariado: realizou-se Europa: os problemas que ele enfrentou eram europeus no sentido em que tinham origem na história europeia e, na maioria das vezes, eram tais apenas na Europa; os trabalhos foram realizados em latim, uma língua europeia; os padres conciliares mais influentes eram todos europeus.
Mas, assim que as implicações da Pastor aeternus se tornaram mais claras, o Concílio exerceu um extraordinário impacto sobre toda a Igreja.
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Os 150 anos da abertura do Concílio Vaticano I (1869-2019) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU