09 Outubro 2018
"A linha que separa o clero dos leigos ficou obscurecida por um longo tempo já – o fato de ter se tornado uma distinção canônica diz pouco sobre o que o clero e os leigos têm em comum e o que os separa. Mas agora estamos testemunhando um novo tipo de “duo genera Christianorum” – aqueles que têm dinheiro (e, portanto, podem influenciar a Igreja) e aqueles que não têm".
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 08-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Dado tudo isso, - conclui o teólogo - a canonização de Oscar Romero no próximo domingo não poderia vir em um momento mais crucial".
Em 1979, agentes do FBI disfarçados gravaram um congressista estadunidense aceitando um suborno, quando o político corrupto notoriamente disse: “O dinheiro fala neste negócio, e as bobagens caminham”.
Essa imagem prosaica poderia ser usada para descrever o que está acontecendo atualmente na Igreja Católica dos Estados Unidos.
É aqui que encontramos o epicentro da atual crise do catolicismo, mas não porque o abuso sexual clerical não tenha ocorrido em outros países.
Ao contrário, é porque a crise criou um vácuo de autoridade na Igreja dos Estados Unidos. Não é um vácuo de poder, que ainda está nas mãos habituais (pelo menos por enquanto), mas de autoridade, que diz respeito a confiança e credibilidade.
A natureza abomina o vácuo, e esse vácuo está sendo preenchido por aqueles que têm um talão de cheques aberto e uma agenda ideológica muito clara. O dinheiro está falando em alto e bom som.
Os católicos com abundantes recursos financeiros e fortes conexões com as lideranças do episcopado estadunidense estão tentando preencher o vazio com uma agenda que oficialmente diz respeito à reforma. Mas, nos fatos, está corrompendo a Igreja ainda mais, na verdade, embora de um modo diferente.
Recentemente, um autodesignado grupo de vigilância católica veio à tona com o nome “Better Church Governance” [Melhor Governança na Igreja].
Em uma reunião no dia 3 de outubro na Universidade Católica da América, em Washington, o grupo anunciou “planos para obter a ajuda de ex-agentes do FBI para investigar os cardeais que votarão no próximo papa e avaliar como eles lidaram com as denúncias de abuso sexual e se permaneceram fiéis aos seus próprios votos”.
Nessa mesma semana, outro evento – chamado de “Reforma Autêntica” – também ocorreu em Washington.
Ele foi organizado pelo Instituto Napa, um grupo de católicos ricos “conhecidos pelas suas conferências anuais na região vitivinícola da Califórnia” e que “combina teologia conservadora e economia libertária, com ênfase em apologética, ética sexual e antissecularização contracultural”.
Há muito a dizer sobre como as lideranças da Igreja Católica se tornaram insensíveis à ameaça que o dinheiro representa para o caráter cristão da comunhão dos fiéis.
Essa dessensibilização é uma das consequências do abandono de uma teologia que leva a sério o que Karl Marx chamou de “relações de produção” e, ao contrário, adotou a “cultura” e a “identidade” como uma oposição ao materialismo.
Essa teologia pós-materialista da cultura, focada em “valores”, acabou servindo aos interesses daqueles que controlam as “relações de produção” – a influente rede de ricos filantropos católicos de direita, que recentemente construiu fortes laços com os bispos conservadores nos Estados Unidos.
Essa certamente não é a primeira vez que alguém tenta comprar influência na Igreja no momento em que a corrupção na hierarquia criou um vácuo de autoridade.
Na Idade Média, foi a aristocracia das famílias romanas e as famílias reais das novas nações europeias que tentaram subjugar a Igreja controlando o papado. Foi por isso que o conclave foi inventado.
No início do período moderno, foi o nepotismo – oficiais da Igreja que davam posições de autoridade a seus próprios parentes. O Papa Inocêncio XII condenou oficialmente o nepotismo em 1692, apenas um ano após ser eleito ao papado graças ao veto do imperador austríaco ao cardeal Barbarigo, que era considerado um aliado da França.
Inocêncio XII pôs fim ao longo século (1566-1692) da posição oficial do cardeal sobrinho (“cardinal nepote”), o antecessor daquela que mais tarde se tornou a posição de cardeal secretário de Estado – o papel mais importante no governo central da Igreja Católica depois do papa.
No fim do período moderno e contemporâneo, as tentativas de controlar a Igreja e o papado vieram de nações e impérios católicos na Europa.
Até o início do século XX, essas nações e impérios tinham e às vezes exerciam um direito de veto contra um candidato no conclave.
Ele foi usado em 1903, quando Franz Joseph I da Áustria bloqueou a candidatura do cardeal Mariano Rampolla. Um ano depois, Pio X proibiu o direito de veto “sob a ameaça do juízo Divino e a dor da excomunhão latae sententiae”.
E hoje? O recente acordo entre o Vaticano e a China certamente levanta questões sobre a liberdade da Igreja na China e no globo.
É preciso imaginar como o governo chinês reagiria, por exemplo, se um cardeal da China ou de um país asiático que tem relações difíceis com Pequim fosse eleito papa.
A ordem geopolítica de preocupações com a liberdade da Igreja ainda está aí e, em certo sentido, é mais perigosa hoje se comparada com os 50 anos anteriores, quando a ameaça parecia vir apenas da Rússia soviética e de seus satélites.
Mas o perigo muito mais iminente hoje vem da influência do dinheiro. Ao criar uma série de dossiês sobre os cardeais que participam do conclave, um grupo como o “Better Church Governance” está criando uma situação – talvez inconscientemente e sem saber – que é comparável ao “direito de veto” (que carrega a pena da excomunhão).
Tim Busch, fundador do Instituto Napa e organizador da conferência “Reforma Autêntica”, endossou abertamente a agenda do ex-núncio que tentou forçar o Papa Francisco a renunciar, dizendo: “Viganò nos deu uma agenda. Precisamos seguir essas pistas e empurrar isso adiante”.
Ao fazer isso, Busch colocou o seu instituto em uma posição similar à do falecido imperador austríaco, que, em 1903, também queria “reformar” a Igreja Católica.
Agora, ninguém espera que o Papa Francisco excomungue as pessoas envolvidas no “Better Church Governance”, no Instituto Napa ou em outros grupos de vigilância católicos estadunidenses, especialmente porque alguns bispos dos Estados Unidos são muito próximos desses grupos.
Mas é claro que a ameaça de publicar investigações financiadas pelo setor privado sobre os cardeais que estarão no próximo conclave é uma tentativa externa de influenciar a eleição do bispo de Roma.
Se o conclave de 2013 ocorreu sob circunstâncias sem precedentes (após a renúncia de Bento XVI), o próximo poderá ocorrer em uma situação muito mais perigosa e incerta para a liberdade da Igreja.
O influxo de dinheiro orientado por uma agenda tem consequências de longo prazo sobre a trajetória de uma comunidade religiosa e de uma fé.
Basta olhar para os efeitos do dinheiro vindo da Arábia Saudita e da Turquia sobre as escolas de formação das novas gerações de líderes do Islã – não apenas na Arábia Saudita e na Turquia, mas globalmente.
Isso poderia acontecer também na Igreja, em que certos grupos de católicos estadunidenses usam seus recursos e alcance para criar uma cultura eclesial que não está exatamente em sintonia com aquela que foi encarnada pelo papa atual.
Sem ignorar as óbvias diferenças, há certas semelhanças entre o novo instituto católico romano de direita na Itália, criado sob os auspícios de Steve Bannon e do cardeal Raymond Burke, e as madraças financiadas pela Arábia Saudita que ensinam o wahhabismo em todo o mundo.
Isso levanta um desafio ao catolicismo que não é menos perigoso para a liberdade da Igreja do que aquele que vem do governo chinês ou de agendas secularistas agressivas.
Mas é mais sutil do que a interferência estrangeira do Estado, apresentando-se como uma oferta de assistência teologicamente ortodoxa à Igreja. No entanto, trata-se, na verdade, de uma nova versão do antigo princípio jurídico-político de que “a proteção atrai sujeição” (protectio trahit subjectionem).
No século XII, o iniciador do direito canônico “moderno”, Gratian, disse que existem dois tipos de cristãos (“duo genera Christianorum”) – os ordenados e os leigos. Ele não estava se referindo à habilidade de se casar ou de celebrar a missa como aquela que separa os ordenados dos leigos.
Ao contrário, ele estava se referindo à distinção entre aqueles que podem administrar as finanças e os recursos da Igreja (os ordenados) e aqueles que não podem (os leigos).
Nós estamos agora em uma Igreja que está tentando se livrar, por razões teológicas, dessa compreensão dualista da autoridade e do poder na Igreja – à qual Francisco se refere frequentemente como “clericalismo”.
E, na realidade, a linha que separa o clero dos leigos ficou obscurecida por um longo tempo já – o fato de ter se tornado uma distinção canônica diz pouco sobre o que o clero e os leigos têm em comum e o que os separa.
Mas agora estamos testemunhando um novo tipo de “duo genera Christianorum” – aqueles que têm dinheiro (e, portanto, podem influenciar a Igreja) e aqueles que não têm.
Isso está criando um novo clericalismo do dinheiro e até mesmo dividindo a Igreja em uma mesma nação (hoje, os Estados Unidos). Mas isso também ameaça criar uma divisão ainda mais profunda entre as Igrejas ricas e as pobres.
Essa plutocracia católica já é um dos principais fatores da divisão entre o Papa Francisco e alguns setores do catolicismo estadunidense.
De fato, o dinheiro está realmente falando nos negócios do catolicismo hoje. Não está totalmente claro se existe outro tipo de moeda que possa influenciar a Igreja e em uma direção diferente.
Dado tudo isso, a canonização de Oscar Romero no próximo domingo não poderia vir em um momento mais crucial.
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As novas ''duas ordens de cristãos''. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU