30 Novembro 2019
"A continuar com uma economia baseada no uso intensivo de carbono, caminharemos para o suicídio ecológico", alerta a carta final de encontro brasileiro preparatório ao encontro da Economia de Francisco.
Um ponto de partida.
Uma ponte, como as pontes que Santa Clara de Assis desejava construir.
Direto do Brasil, em Encontro Nacional, iniciamos nossa Carta pelo significado do feminino para a mudança de paradigmas na economia. A Economia, substantivo feminino.
Inspirados em Clara e Francisco, expressamos o desejo por uma profunda mudança no enfoque até então estabelecido para as relações econômicas. Olhar a economia do ponto de vista puramente material e produtivista só distorceu o sentido do bem-estar social, produzindo iniquidade e infelicidade. Queremos novos paradigmas: da competição para a colaboração; da exploração para a sustentabilidade; da acumulação para a distribuição; do desequilíbrio nas relações entre pessoas e países para o comércio justo; do consumo desenfreado ao consumo consciente.
Vivemos em uma época de profundas transformações. A começar pelas mudanças climáticas. E o tempo para reverter essas mudanças está se esgotando. Daí, a necessidade da noção de emergência histórica para alcançarmos esses novos paradigmas.
A continuar com uma economia baseada no uso intensivo de carbono, caminharemos para o suicídio ecológico. “Há que mudar essa atitude perversa” de negacionismo sobre os efeitos das mudanças climáticas na vida do planeta, como bem aponta papa Francisco. Nossa proposta, de uma economia baseada no feminino, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nas formas de produção de energia, expressão de um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir. Como nos alerta Francisco: “As gerações futuras vão herdar um mundo grandemente deteriorado. Nossos filhos e netos não tem de pagar o preço da irresponsabilidade de nossa geração”.
Pelos jovens, pelas crianças, pelo futuro dos animais e todos os seres que habitam o planeta, a Economia de Francisco só terá sentido se incorporar firmemente a decisão de manter os combustíveis fósseis no subsolo, reduzindo sua extração até serem plenamente substituídos. A natureza levou milhões de anos para transformar formas vivas em petróleo, capturando carbono e colocando-o no fundo da terra; é ilógico, e criminoso, expeli-lo em menos de duzentos anos, quase que de uma só vez, em termos de tempo geológico.
Essa desfaçatez está afetando irremediavelmente o equilíbrio do planeta. Resta apenas uma década para contermos o aquecimento global, aponta relatório da ONU, avalizado por toda a comunidade científica. Se ultrapassarmos o limite de 1,5 grau centígrado no aquecimento global, os efeitos serão catastróficos.
Já estão sendo!
As secas, as enchentes, as tormentas e os tornados.
A tenebrosa tarde que se fez noite na cidade de São Paulo.
O óleo betuminoso a tomar conta de nossas praias; da costa do Maranhão à foz do rio Doce, no norte do Espírito Santo, já adentrando pelo litoral sudeste do país.
Rio Doce, o rio duplamente assassinado. Primeiro com lama da ganância das mineradoras. Agora com o óleo que vem do mar. Óleo que encarde praias, que mata peixes, tartarugas e mariscos. Óleo que impregna arrecifes e manguezais.
Será que não basta para darmos um basta?
Que tormentas mais estamos a esperar?
Novos rios mortos?
Novas barragens a interromper a vida?
Mais água encardida despejada pelas chuvas?
Mais fuligem a adentrar em nossas narinas?
Mais cólera, asma, bronquite e febre amarela?
E quando os rios secarem e os mares virarem deserto? E quando o ar arder ao entrar por nossas narinas? O que diremos aos nossos netos?
O que os nossos netos dirão sobre nós?
Nossa feminina Economia de Clara e Francisco tem como ponto de partida a produção de energias limpas, renováveis e distribuídas. A energia do sol, a energia dos ventos, e todas as energias boas que se pode descobrir a partir da ciência de boa ética. Queremos praticar o nosso Teko Porã, o “modo bom de viver na Casa” dos povos Guarani, nossos irmãos, que tanto tem a nos ensinar no cuidado de nossa morada e nossa mãe, a Mãe Terra, nossa dádiva.
Mas não basta apenas produzir energia limpa e renovável, há que produzir de nova forma, descentralizada, distribuindo conhecimento e permitindo que todos acessem aos avanços tecnológicos. Placas solares ou cataventos produzidos nas comunidades, pelas comunidades, iluminando e aquecendo casas, ruas, escolas e parques. A produção na escala da vida, produzida com justiça e equilíbrio. A lógica é a mesma para a produção de alimento saudáveis, sem veneno, colhidos pela agricultura familiar ou em hortas urbanas. Ou a atividade industrial descentralizada e ecológica, sem resíduos, em cadeias curtas, aproximando produção de consumo.
Essas formas colaborativas de produzir nos remetem a novas formas de economia. Economias no plural. A circular, a do cuidado, a camponesa, a familiar, a das mulheres, a da festa comunitária, a economia da comunhão. As economias digitais, do trabalho e dos conhecimentos livres. Economias solidárias e populares, criativas, colaborativas. Assim entendemos que tem que ser a base para a Economia de Clara e Francisco.
Do coletivo, do comum. Daquilo que é de todos e que tem que ser repartido entre todos. Na Economia de Francisco não há lugar para a ganância, nem para acumulação infinita. Nem para bilionários.
Sim, um mundo sem bilionários e mega-fortunas; porque, para acumular bilhões (de dinheiros) é necessário deixar outros bilhões (de vidas) sem nada. Quem for bilionário neste momento já poderia começar a repartir, por iniciativa própria, por consciência.
Economia de Clara e Francisco pressupõe defender imposto sobre Grandes Fortunas, artigos de luxo e supérfluos. Os Estados deveriam começar cobrando quatro centavos a cada real que superarem riquezas absurdamente altas, em que o dinheiro, de tanto, é indiferente para a qualidade de vida de uma família, por mais luxos que deseje ter. Cinquenta milhões de reais seria um patamar mínimo razoável para começar a cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas. Cobra-se tanto dos que tem tão pouco, daqueles que perderam tudo; quatro por cento sobre fortunas excessivas é até bem pouco para quem tem tanto. Mas que permitirá um significativo aporte de recursos para uma vida mais humana. E taxações sobre lucros e dividendos, sobre o capital improdutivo, sobre o fluxo internacional das movimentações financeiras e paraísos fiscais. Uma taxa
sobre os trilhões de ganâncias.
Pensar novas formas de tributação, pensar em um mundo menos desigual é Economia de Francisco. Por isso compreendemos que ir da microeconomia à macroeconomia. E isso implica fortalecimento dos Estados e estruturas comunitárias, colaborativas, confederativas e multilaterais para a elaboração e aplicação de políticas públicas. Políticas públicas de qualidade, inventivas, universais. Todas as pessoas merecem, estejam em que canto do mundo for. A boa educação, a boa morada, a saúde integral, o tempo para o lazer, a cultura, o esporte, o direito à comunicação honesta, verdadeira e respeitosa. A livre circulação e mobilidade, o ar limpo, a boa água. O direito à dignidade, enfim. Dos humanos e dos nossos irmãos animais.
As florestas também tem esse direito à dignidade, assim como as flores e todas plantas. E esse ambiente digno só poderá ser conquistado com democracia real.
Do Brasil, reafirmamos a importância e necessidade de consolidação de propostas e experiências iniciadas por aqui, como o Orçamento Participativo e a Renda Básica da Cidadania, primeiro como Bolsa Família, mas que precisa avançar como Renda Universal. Também a educação dos jovens para a Ação Comunitária e Cidadã, com Agentes Jovens da Comunidade, algo que ainda não teve escala necessária, mas que já foi experimentado com bons resultados, como um aprendizado-serviço junto a organizações comunitárias. Há tantas, centenas de milhares de boas organizações comunitárias no Brasil; no mundo, milhões. Vamos valoriza-las transformando-as em potentes espaços de acolhida, aprendizado e experimentação para os jovens da Economia de Francisco.
A Economia de Francisco começa fazendo o necessário; depois, o que é possível; até que, de repente, estaremos fazendo o impossível. Esse é o principal ensinamento de São Francisco de Assis: fazer o impossível a partir das coisas simples.
Partimos das ações simples, do real, de experiências bem sucedidas, idealizadas e construídas no seio das comunidades brasileiras, de norte a sul do país, de leste a oeste, das montanhas às florestas, das favelas aos pequenos municípios, do litoral ao sertão, das grandes cidades às pequenas vilas e aldeias.
Em meio à escassez brotam as saídas e nasce a esperança.
As moedas sociais, incentivando que as comunidades apliquem seus recursos nos negócios gerados na própria comunidade. Os bancos comunitários, a fiança solidária, potencializando pequenos empreendimentos na base da confiança, as compras coletivas. A experiência com a instalação de um milhão de cisternas no semiárido, melhorando a qualidade de vida das famílias em convívio com a seca.
A agricultura familiar e camponesa, agroecológica, as agroflorestas. As cooperativas de produção, o cotrabalho, a revalorização dos ofícios e saberes tradicionais, atualizados nas formas contemporâneas possibilitadas pela cultura digital. Os Pontos de Cultura, os coletivos de artistas, de jovens, de mulheres, de negras e negros, dos lgbt. A cultura quilombola, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais. A troca entre gerações. O ensaio de novos modelos de política e autogestão.
Queremos que esses saberes e experiências, nascidos nas franjas, nas bordas do sistema hegemônico, deixem de ser considerados ações periféricas e passem para o centro do debate sobre economia e desenvolvimento. Joseph Stiglitz, no lançamento do chamado para o Congresso Economia de Francisco, em Assis, Itália, aponta que “o problema de certas formas de economia de mercado é que não colocam os mercados a serviço dos povos, mas, ao contrário, os povos a serviço dos mercados, e exacerbam o comportamento individualista”. Essa ideologia de mercado, agravada pelo neoliberalismo, está levando a humanidade ao suicídio.
A caminho de Assis, entendemos que o maior sentido de nossa ação será “realmar a economia”, conforme palavras do papa Francisco. Queremos pensar e praticar a economia desde o Comum, desde a cotidianidade da vida. Uma “economia com alma”, comunga as pessoas com todos os seres viventes na Terra, nossa Mãe. Medo, frustração e sofrimento, é o que uma economia sem alma, a economia consumista, tem imposto ao nosso tempo. Individualismo, consumismo, desprezo ao próximo, egoísmo, vulgaridade e superficialidade levarão o mundo à ruína e destruição. Timóteo, entre os primitivos cristãos, já apontava: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.
O modelo econômico capitalista e produtivista, tal qual se apresenta em nossos tempos, se contrapõe ao cuidado da Casa Comum. As dimensões de nossa Casa são conhecidas e os recursos esgotáveis. É ilógico e incompatível a prevalência de um modelo econômico que prega a acumulação sem limites e a exploração infinita. É inaceitável um modelo econômico que pretende transformar a última gota de água limpa em liquido pútrido, transfazendo o humano em coisa.
No caminho, nos somamos por Pacto Educativo. Compreendemos que é “fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito da economia circular, que contribuam para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado” (Joseph Stiglitz). Afirmando nosso compromisso por uma Transformação Global, em uma Ecologia Integral, que tem por base cinco palavras, iniciadas em português pela letra E:
Nossa ideia para o surgimento de um novo modelo para o mundo leva em conta de que não mais será “um ou outro”, mas “um E outro”. Um mundo em que caibam outros mundos. Em que a beleza sensível seja uma constante em nossas ações, harmonizando formas e cores, por uma educação transformadora, ecológica, nos orientando a novos modos de obtenção e utilização dos recursos necessários ao bem comum. Esse fluxo, para nós será a síntese ética para a Economia de Francisco. Uma economia que deve ser realizada com beleza e alegria, com arte e cultura. Uma economia com justiça e felicidade para todas e todos.
Propugnamos por mudanças nos currículos dos cursos de economia, mas também pela mudança nos currículos de todos os cursos. Da educação infantil ao ensino superior, passando pela educação do trabalho. Realmar a Economia é alcançar uma educação integral para uma ecologia integral. É trocar os números frios do Produto Interno Bruto para os indicadores quentes da Felicidade Interna Bruta. “A alegria é a prova dos nove!”, disse o poeta brasileiro Oswald de Andrade. A Economia de Francisco, para dar certo, precisará ter como principal indicador a alegria que ela irá proporcionar aos viventes desta abençoada província do universo.
Somos muitos, apenas ainda não nos conhecemos e não nos unimos da forma necessária. Não há mais tempo a perder.
Seremos milhões pela Economia de Francisco.
Bela e radiante,
Louvada sejas, com todas as suas criaturas.
A Economia do irmão Sol e da irmã Lua com as estrelas Louvada sejas, pelo irmão vento, pelo ar ou nublado.
Serena, às tuas criaturas dará sustento.
Útil e humilde, saciará nossa sede.
Os frutos diversos, as coloridas flores e ervas,
Todos somos filhos de nossa mãe Terra.
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças!
A Economia de Francisco, inspirada no Cântico das Criaturas, está chegando e nos unimos a ela!
São Paulo, 19 de novembro de 2019
Teatro de Arena (Tucarena) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)
Subscrevem:
I Encontro Nacional pela Economia de Francisco
Articulação Brasileira pela Economia de Francisco
No próximo período ocorrerão encontros regionais pela Economia de Francisco, e os encontros poderão contribuir com propostas. Veja no link e contribua.
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Carta de Clara e Francisco. Direto do Brasil para o Encontro Mundial em Assis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU