21 Novembro 2019
"Esses números têm a grandiosidade da controvérsia criada em torno do projeto. É inevitável o choque provocado pela elevação do seu custo, que não cabe nem mesmo no 'fator amazônico', responsabilizado pela multiplicação de tudo que se faz na maior fronteira nacional, um espaço que equivale ao da Europa Ocidental, vasto e distante", escreve Lúcio Flávio Pinto, jornalista desde 1966, sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973, e editor do Jornal Pessoal, em artigo publicado por Amazônia Real, 14-11-2019
A hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, é a quarta maior do mundo, a segunda maior do Brasil (é a primeira inteiramente nacional, já que metade de Itaipu, a segunda maior do planeta, é do Paraguai). A última das suas 18 gigantescas turbinas será instalada até o final do ano, completando a sua motorização. Cada uma dessas máquinas é capaz de abastecer uma cidade com mais de 3 milhões de habitantes.
A usina, localizada 1,5 mil quilômetros a sudoeste de Belém, quando operar a plena capacidade, pode suprir de energia 60 milhões de brasileiros, distribuídos por 17 Estados, por uma linha dupla de transmissão de 2,5 mil quilômetros até Minas Gerais e o Rio de Janeiro, também a maior do mundo. Orçada inicialmente em 19 bilhões de reais, o custo de Belo Monte já alcançou R$ 40 bilhões. É uma das maiores obras públicas da história do país.
Esses números têm a grandiosidade da controvérsia criada em torno do projeto. É inevitável o choque provocado pela elevação do seu custo, que não cabe nem mesmo no “fator amazônico”, responsabilizado pela multiplicação de tudo que se faz na maior fronteira nacional, um espaço que equivale ao da Europa Ocidental, vasto e distante.
Há a suspeita de que esse encarecimento se deve à corrupção, semelhante à que foi descoberta no âmbito da Petrobrás. Ela é um dos alvos da Operação Lava-Jato, envolvendo empresários, executivos e políticos. A investigação ainda está em curso, mas parece previsível que ao menos parte das denúncias de superfaturamento e desvio de recursos públicos acabe sendo comprovada.
Há um componente, porém, que costuma ser esquecido ou minimizado. O projeto de Belo Monte é original no conjunto da engenharia de barragens e hidrelétricas em todo mundo. Basta compará-la a outra gigante de energia, instalada 400 quilômetros a leste, a usina de Tucuruí, no rio Tocantins, também no Pará, a quinta maior do mundo.
A casa de máquinas, a barragem e o vertedouro ficam na mesma estrutura de concreto na usina de Tucuruí, que tem potência de 8,3 mil MW contra 11,3 mil de Belo Monte. Na hidrelétrica do Xingu, tudo foi espalhado. Há dois reservatórios, o maior deles no leito do rio.
No projeto original, esse lago deveria conter água suficiente para garantir o máximo possível de energia. Para isso, contudo, teria que inundar uma vasta área, de 1,3 mil quilômetros quadrados e ainda contar com um reservatório maior, rio acima, na barragem de Babaquara, com capacidade para 6,6 mil MW. O Xingu iria produzir o dobro de energia de Tucuruí. O conjunto só seria inferior à hidrelétrica de Três Gargantas, na China.
O complexo de Altamira foi concebido exatamente quando começou a construção da usina de Tucuruí, em 1975. Seguiu a mesma lógica, de permitir o máximo de energia, mesmo com maiores danos ecológicos e sociais, até que, em 1989, um protesto de índios e ONGs em Altamira o paralisou.
O empreendimento foi retomado cinco anos depois, drasticamente modificado para diminuir os impactos do projeto inicial. Assim, o lago formado pelo represamento do Xingu teria apenas 40% da dimensão original. Como não acumularia a água necessária no verão, a usina de energia funcionaria a fio d’água. A água que chegaria à barragem seria a mesma que seria vertida a jusante. Os 18 vertedouros teriam capacidade para 62 mil metros cúbicos por segundo, o dobro da descarga natural.
O esquema seria ótimo para as seis turbinas bulbo instaladas na barragem principal, junto com o vertedouro. Elas precisam de pouca água para gerar 233 mil MW. Essa potência, contudo, é apenas um terço da capacidade de geração de cada uma das 18 turbinas da casa de força principal.
Essa segunda e imensa estrutura de concreto ficaria a 130 quilômetros de distância do reservatório (fica no mesmo corpo em Tucuruí), se o fluxo de água seguisse o curso natural do Xingu, que faz uma grande volta rio abaixo. Para viabilizar a geração maior, os engenheiros decidiram abrir um canal artificial para formar outro reservatório, mais próximo à usina, agora situada 40 quilômetros mais próxima da barragem principal, ainda assim a 90 quilômetros de distância.
Foi uma obra gigantesca, que durou mais de quatro anos. Para abrir o canal artificial, a partir da calha natural do Xingu, foram extraídos 120 milhões de metros cúbicos de terra do local. No piso e nos taludes do canal, com 20 quilômetros de extensão, 360 metros de largura na superfície (e 250 no fundo), com altura máxima de 68 metros (equivalente a um prédio de 22 andares), foram aplicados 7,1 milhões de metros cúbicos de rocha e concreto. Uma obra do porte do canal do Panamá.
O complicador desse esquema, montado para adaptar o projeto à pressão da sociedade sem deixar de alcançar seu objetivo, de gerar o máximo de energia para levá-la a outro extremo do país, onde é maior o consumo, é o regime do rio Xingu. A variação entre o máximo e o mínimo de vazão é de 30 vezes entre o verão e o inverno. No apogeu da cheia, ele pode movimentar todas as máquinas das duas usinas e gerar 11,3 mil MW. No rigor da seca, a falta de água pode ser dramática. Daí a garantia de oferta média ser de 4.571 MW, na maior depleção entre as grandes usinas do Brasil.
Seca na região da Volta Grande do Xingu em
19 de outubro de 2010 (Foto: Verena Glass/Xingu Vivo)
Exatamente às vésperas da plena implantação da hidrelétrica, foi registrada a mais rigorosa estiagem dos últimos tempos, maior do que as previsões baseadas na experiência de quatro anos de operação progressiva e no modelo matemático de simulação.
No dia 11 de outubro, o diretor-presidente da Norte Energia, a empresa concessionária da usina, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, alertou a diretora-presidente da Agência Nacional de Águas, Christianne Dias Ferreira, sobre a necessidade de uma “ação urgente para controle do nível do Reservatório Xingu da UHE Belo Monte”.
Informou que “o atual período de estiagem tem se mostrado bastante crítico, com vazões afluentes baixas no Xingu, sendo nos últimos dias da ordem de 750 metros cúbicos por segundo”. Esse volume de água que chegava à barragem principal estava próximo do limite de vazão mínima estabelecido para dar garantia a todo sistema, que é de 700 metros cúbicos.
Diante da situação, a empresa precisava reduzir a vazão à jusante da barragem para manter a cota mínima de 95,20 metros no reservatório do Xingu, que fora alcançada na véspera. Se o nível da água baixasse, uma “onda negativa que irá se formar atingirá áreas da barragem não protegida por rochas”, que estão acima da cota de 94 metros, “situação que pode resultar danos estruturais à principal barragem do Rio Xingu”. Por isso, seria “absolutamente necessário manter a cota mínima de 95,20 m para garantir a segurança da barragem de Pimental”.
A medida teria que ser adotada urgentemente “por absoluto imperativo” de garantir da segurança das instalações e manter a vazão mínima para o TVR (Trecho de Vazão Reduzida) em 700 metros cúbicos por segundo. Para chegar a esse resultado, seria preciso fazer o imprescindível ajuste emergencial e temporário de redução da vazão afluente ao Reservatório Intermediário para 100 m3/s”.
Com essa vazão, haveria também a redução da geração da usina. O diretor não diz, mas com essa vazão a casa de força principal paralisaria, ficando em atividade apenas as seis pequenas turbinas bulbo. A retomada da normalidade aconteceria quando o fluxo de água do rio voltasse a crescer. Essa vazão será gradativamente aumentada, à medida que a recuperação da vazão afluente seja suficiente para superar a vazão mínima no TVR de 700 m3/s”.
Belo Monte voltou a se tornar polêmica quando uma reportagem de Eliane Brum, revelando o conteúdo da correspondência da Norte Energia com a ANA, foi publicada pelo jornal espanhol El País.
“Diante de uma mudança tão drástica na conclusão de estudos, e num período tão curto de tempo”, a jornalista considerou razoável que “o público atingido possa ter dúvidas consideráveis que os órgãos governamentais responsáveis têm o dever de esclarecer para não gerar pânico”.
Lembrando das críticas e discussões que acompanharam a obra ao longo do seu desenvolvimento, assinalou como uma novidade exposta pelo documento “a precariedade do projeto de engenharia. Belo Monte”, que adotou “uma composição mista”: concreto, enrocamento (proteção com rochas e pedras) e compactação de solo.
“É esta última parte, sem proteção de pedras e rochas, que pode sofrer danos estruturais. A Norte Energia assume, no documento, que cumprir as vazões estabelecidas em períodos de seca mais severa pode levar a uma redução do nível da água capaz de expor a barragem principal. A Norte Energia e os órgãos governamentais precisam responder com urgência e total clareza qual é o nível de risco, inclusive se há possibilidade de a barragem se romper. Também precisam dizer quais as providências que serão tomadas para corrigir o projeto, já que tudo indica que os cenários de seca severa podem se repetir”, escreveu Eliane.
Ela destacou ainda que o Brasil “ainda elabora o trauma das tragédias de Mariana e Brumadinho. Governo e empresas com responsabilidade pública tem o dever da total transparência. Entretanto, ao ser questionada pelo El País, a concessionária se limitou a enviar um comunicado. Esta é a íntegra: ‘A Norte Energia, empresa responsável pela Usina Hidrelétrica Belo Monte, informa que vem cumprindo rigorosamente os compromissos estabelecidos no licenciamento ambiental do empreendimento’”.
Eliane observa que a situação “é ainda mais grave porque Belo Monte não foi construída a partir das necessidades de água da floresta e de seus povos. A partilha da água foi uma decisão arbitrária, que mesmo antes de ser totalmente executada, já condena a Volta Grande do Xingu, onde vivem dois povos indígenas”.
“A barragem de Pimental foi construída com o aterramento – solo constituído por terra e argila – até a cota 94,00 m. Isso significa que, se a cota do reservatório Xingu estiver abaixo de 94 m, a água, ao bater no aterramento, vai provocar a erosão, com a consequente perda da estabilidade do que foi colocado acima desta primeira camada. Se o processo de erosão da camada do aterramento for muito intenso, o risco de cisalhamento da estrutura de concreto (rompimento) da barragem é alto”, explicou à jornalista o engenheiro mecânico e arquiteto Célio Bermann, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.
“A imprevidência fez com que a Norte Energia tivesse de enfrentar a situação de risco de integridade da barragem de Pimental. Que isso sirva de lição à engenharia de barragens que vislumbra a construção de outras na região amazônica”, completou Bermann.
O título da matéria foi dramático, mas não exatamente correto: “Erro de projeto coloca estrutura de Belo Monte em risco”, anunciou o jornal El País. É precipitado fazer essa afirmativa. Há mesmo falhas de engenharia que se revelaram neste período de estiagem extraordinária ou a situação realmente teria que apanhar de surpresa os operadores da usina, como já aconteceu em outras hidrelétricas e ocorre neste mesmo momento em Jurumirim, no rio Paranapanema, entre São Paulo e o Paraná.
A Norte Energia diz que o sistema de segurança de Belo Monte é um dos melhores do Brasil, com quase dois mil instrumentos para monitorar as barragens, com verificação duas vezes ao dia. Por isso, se comunicou com a ANA em tempo real. A empresa assegura também que prevalece a prioridade para a manutenção do volume de água no leito natural do rio Xingu em relação ao desvio de água para o reservatório artificial, que supre as turbinas da casa de força principal.
Apesar da discussão, as informações mais importantes são escassas e demoram a ser fornecidas pelos principais atores desse drama. Como a seca é das maiores de todos os tempos num rio com quase dois mil quilômetros de extensão, drenando uma bacia com mais de 500 mil quilômetros quadrados (6% do Brasil), é o momento certo para esclarecer tudo e impedir que o enredo se torne uma tragédia.
Com relação às informações absolutamente equivocadas veiculadas em matéria no dia 08 de novembro, a Norte Energia, empreendedora da Usina Hidrelétrica Belo Monte, vem a público prestar os seguintes esclarecimentos:
• Não há absolutamente nenhum risco ou erro de projeto na UHE Belo Monte, e definitivamente, não há incertezas sobre a segurança das estruturas que compõem a maior hidrelétrica 100% brasileira.
• A Usina Belo Monte é um empreendimento cujas características técnicas são inovadoras e de atestada qualidade e segurança de estruturas, tanto que a configuração do empreendimento, uma usina a fio d’água, respeitou o importante equilíbrio entre o potencial de geração de energia do rio Xingu e a conservação socioambiental da região.
• A hidrelétrica funciona exatamente como foi dimensionada, para atendimento a critérios hidráulicos que, no âmbito do licenciamento ambiental, impõem que o nível do reservatório formado para a geração de energia permaneça constante.
• Como pode ocorrer em todas as usinas hidrelétricas no período de estiagem, a vazão de saída de água (defluente) do reservatório pode ser maior que a vazão de entrada (afluente). Nestas ocasiões do período de estiagem, a vazão do rio Xingu naturalmente é reduzida. Por conta disso, são tomadas medidas operacionais para o restabelecimento da cota do reservatório.
• Ao contrário do que foi afirmado na matéria, esta manobra de operação do reservatório não traz nenhum risco à segurança das estruturas que compõem o complexo hidrelétrico, bem como às pessoas e ao meio ambiente.
• Aliás, a Usina Belo Monte vem sendo periodicamente fiscalizada pela ANEEL nos procedimentos relativos à segurança de suas barragens e diques.
A Empresa reitera que vem cumprindo rigorosamente os compromissos estabelecidos no âmbito da concessão e do licenciamento ambiental do UHE Belo Monte, aí incluída a segurança de barragens.
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Belo Monte: drama e tragédia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU