19 Novembro 2019
"Após o massacre a historia de Bella Vista é uma historia de dor reprimida. Em 2 de maio de 2002, quando aconteceu o massacre, as vítimas ficaram muito mutiladas no meio do conflito entre as FARC e grupo paramilitar. Houve quem perdeu até 32 familiares. Os sobreviventes e familiares sepultaram os mortos em uma vala comum, fugindo em seguida aterrorizados. O povoado ficou destruído e um tempo depois foram transferidos a outro local que ficou tantos anos em construção que ficou conhecido como Severá", escreve Egydio Schwade, um dos fundadores do Cimi e primeiro secretário executivo da entidade, em 1972.
Semana passada, após 17 anos, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, transferiu em helicóptero, de Medellin para Bella Vista, beira rio Atrato, os restos mortais de 119 mulheres e crianças, afrodescendentes e indígenas, mortos em meio a uma batalha entre paramilitares e guerrilheiros da FARC, no dia 2 de maio de 2002 na cidade de Bella Vista/Bojaya, margens do rio Atrato/Colômbia. Hoje, dia 18-11-19, estes “santos inocentes” como já são conhecidos na Colômbia, receberão sepultura em sua terra natal.
Os corpos dos falecidos em Bojayá/Bella Vista, após o translado em dois helicópteros da ONU de Medellín para o rio Atrato. (Foto: ONU)
Em meio à violência reinante na região do rio Atrato, as comunidades se uniram e tomaram uma iniciativa inédita: aboliram todas as armas de fogo, inclusive, suas armas de caça. Mas no início de maio de 2002 à revelia da lei das comunidades do Atrato, Bella Vista foi ocupada por paramilitares. Na iminência de uma refrega entre estes e guerrilheiros das FARC, por sugestão da igreja católica, às pressas, os homens da comunidade se abrigaram no convento das irmãs religiosas e as mulheres e crianças na Igreja. Seguiu-se a batalha entre guerrilheiros e paramilitares. Um dos lados jogou uma bomba sobre a Igreja que matou na hora, 119 pessoas: afrodescendentes e indígenas e feriu outras 129.
Na foto acima, se podem ver os sarcófagos das vítimas na sua chegada ao Rio Atrato na semana que passou. Os pequenos ataúdes brancos são das crianças e os da cor de café das mulheres. Do aeroporto de Quibdó, capital da Província, os restos mortais destes “mártires inocentes” foram trasladados em lanchas, em meio a cantos, rezas e lamentos do povo até a comunidade onde foram hoje – 18-11-19 - enterrados.
Após o massacre a historia de Bella Vista é uma historia de dor reprimida. Em 2 de maio de 2002, quando aconteceu o massacre, as vítimas ficaram muito mutiladas no meio do conflito entre as FARC e grupo paramilitar. Houve quem perdeu até 32 familiares. Os sobreviventes e familiares sepultaram os mortos em uma vala comum, fugindo em seguida aterrorizados. O povoado ficou destruído e um tempo depois foram transferidos a outro local que ficou tantos anos em construção que ficou conhecido como Severá.
A nova cidade se chama hoje Nueva Bella Vista. É um povoado com casas de cimento, bem diferente daquelas de madeira, características das povoações de afrodescendentes e indígenas do rio Atrato. Foi localizada afastada do rio, o que não agradou à população pois o rio significa para eles a vida. Na chegada o que se vê primeiro é uma homenagem aos mortos. E durante esta semana, na praça principal, ficaram expostos para velório os ataúdes com os restos mortais cobertos de flores brancas e velas.
Este crime do rio Atrato foi pouco difundido pela mídia colombiana e brasileira. Na oportunidade, em 2002, Doroti, minha falecida esposa e eu, estávamos de viagem na Áustria, a convite do Estado de Voralberg e da Cidade de Höchst. No dia do massacre fomos hospedes duma família, que havia trabalhado naquela região da Colômbia. Chocados com os acontecimento, articulamos de imediato uma ação de solidariedade para com este povo tão injustamente atingido: Os amigos da Áustria buscariam recursos financeiros para viagem e nós abrigaríamos aqui na BR-174, um grupo de afrodescendentes e indígenas da área atingida para um intercambio de solidariedade, fraternidade e alívio aos atingidos.
Efetivamente em junho de 2003 vieram 4 afrodescendentes e 4 indígenas que passaram um mês conosco, aqui na beira do Rio Urubuí/Amazonas. Estávamos nas festas juninas, o que tornou a experiencia particularmente animada: Uma troca de experiencias de vida e de festejos tradicionais. Enquanto oferecíamos a eles os nossos conhecimentos sobre criação de abelhas e culturas agroecológicas e os paroquianos organizando festas juninas recheadas de alegria, eles, por sua vez, brindaram a nossa comunidade com danças e alegrias do rio Atrato e nos ensinaram técnicas de captura da caça, por meio de armadilhas, já que lá as armas de fogo foram abolidas. A nossa comunidade saiu animada e enriquecida. E todos guardam gostosas lembranças desta vivencia.
Os guerrilheiros da FARC, durante o diálogo da Paz em Cuba, em 2017, reconheceram a sua participação neste crime e pediram publicamente perdão à comunidade. Os paramilitares por sua vez, como coparticipantes, até o hoje não se manifestaram.
E o rio Atrato continua hoje uma zona em disputa por grupos armados. Uma dissidência da extinta guerrilha com os paramilitares. Os problemas seguem como ha 17 anos atrás. A zona rural continua sob as ameaças.
Mas em meio a estas nuvens escuras os moradores de Bella Vista, enquanto revivem nestes dias intensamente aquele 2 de maio, vivem um novo momento, podendo sepultar suas vítimas com seus rituais, encerrando uma dolorosa etapa ao poderem ter de perto e visitar seus entes queridos e colocar uma flor sobre os seus túmulos.
O acontecimento de Bella Vista sempre me associa a outro semelhante que tive oportunidade de sentir de perto. Graças a um convite de um grupo de missionários jesuítas latino-americanos, em 2005, que se reuniu no interior da Diocese de San Cristobal, no Sul do México, tive oportunidade de visitar o povoado de Acteal, onde 45 mulheres e crianças, “santas inocentes”, foram barbaramente trucidadas, enquanto rezavam numa novena pela paz na região, tumultuada pelas elites da região.
E, finalmente, não posso deixar de referir, neste momento, a nossa paroquia, criada em 1987 e batizada de “santos Mártires e Na. Senhora Aparecida”, pelo Bispo D. Jorge, de Itacoatiara. Uma chamada à memória dos mais de 2.000 Waimiri-Atroari, ou Kiñá, como se autodenominam, mortos durante a construção da BR-174, sem saberem ate hoje, por que os kamña=civilizados, fizeram isto.
Em cada caixãozinho daquelas vítimas de Bella Vista, enterradas hoje consta o nome e a foto da vítima. Todos os falecidos repousam ali, junto ao Cristo mutilado da iglesia de Bella Vista, símbolo marcante do massacre. Em Acteal ao lado da igrejinha de palha onde aconteceu o massacre ergue-se hoje um santuário em memória daqueles 45 “santos inocentes”, cujos nomes estão ali gravados. É hora de exigirmos do Governo Brasileiro, uma real investigação do que ocorreu aos Waimiri-Atroari, durante a construção da BR-174. Conheçamos os nomes das vítimas do lado indígena e recebam resposta à pergunta que os faz sofrer ate hoje, e que nos formulavam insistentemente: Por que = apiyemiyeke, por que kamña=civilizado matou kiña=a nossa gente?
P.S. – Mais informações em El País de 17-11-79.
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Colômbia. Os santos inocentes de Bella Vista, Bojaya - Instituto Humanitas Unisinos - IHU