06 Novembro 2019
"Diante de tão grave crime ambiental, assistimos estarrecidos à patética cena – mostrada em vídeo – em que o secretário de pesca, na presença do presidente da república, tenta engambelar os incautos, afirmando que os peixes são inteligentes e fogem do óleo, o que garantiria à população que os produtos do mar podem ser consumidos sem receio", escreve Solange Maria do Carmo, professora de Teologia na PUC-Minas.
Solange Maria do Carmo possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE/BH e graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas. É mestre em teologia bíblica e doutora em Catequese pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE/BH. É co-autora da Coleção Catequese Permanente, pela Editora Paulus. Atualmente é professora no Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa da PUC-Minas e no Instituto Santo Tomás de Aquino - ISTA.
“Ao ver o anjo do Senhor, a mula empacou.
Balaão, enfurecido, bateu na mula com a vara” (Is 53,7)
“Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram,
os seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos.
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar.
Dá-me a flauta e canta
E esquece a injustiça do opressor.
Pois o lírio é uma taça para o orvalho
E não para o sangue”
(Khalil Gibran)
A Bíblia é um conjunto de livros, com estilos variados e gêneros literários para todos os gostos. Gênero não raro nos relatos bíblicos é a fábula. Desde a história do espinheiro que governou sobre as árvores da floresta (Jz 9,8-15) até a serpente falante que seduziu Eva e a induziu ao pecado (Gn 3,1-7), os relatos bíblicos, por meio de fábulas, trazem-nos ensinamentos preciosos. Árvores que elegem um rei e cobras com linguagem humana são possíveis somente em fábulas.
As fábulas têm muito a nos ensinar. Normalmente são encerradas com a famosa “moral da história”. É o caso da galinha que, ciscando o terreiro à procura de alimento, encontrou um grãozinho de milho. Muito inteligente e trabalhadora, a ave resolveu não comer o milho; ao contrário, achou melhor plantar o grão, pois no futuro daria a ela um saboroso bolo de milho. Chamou os amigos: galinhas, patos, gansos, galos, frangos, marrecas etc. e nenhum deles se dispôs a ajudar. Fez tudo sozinha: plantou, regou, capinou, colheu, debulhou e, ao final, fez o bolo tão sonhado. Sentindo o cheirinho da quitanda, a bicharada se ajuntou para comer. Mas a galinha trabalhadora, logo falou: “O bolo é só meu, pois trabalhei sozinha”. Moral da história: “Quem não trabalha não come”.
Voltando às fábulas bíblicas, elas dão o que pensar. Uma menos conhecida, mas bem oportuna para o tempo presente, é a estória da burrinha de Balaão (Nm 22,1-35). Balaão era profeta de Moab, região vizinha às terras de Israel. Na iminência de serem atacados pelos israelitas, povo mais numeroso e forte que os moabitas, estes – governados por Balac – pediram socorro a Balaão no intuito de que o profeta amaldiçoasse Israel e garantisse a vitória a Moab. Contrariando as ordens de Deus, que se manifestara a Balaão, o profeta venal – montado em sua jumentinha – seguiu no seu intuito maligno. No caminho, um anjo do Senhor lhe apareceu, mas – empedernido em sua perversão – o mensageiro de Deus foi ignorado. A mulinha, percebendo que era o anjo do Senhor que se postava à sua frente com a espada embainhada, empacou e não havia chicote que a fizesse dar um passo à frente. Balaão não se fez de rogado e, repetidas vezes, castigou o animal. Cansada de apanhar, para surpresa de Balaão, a mula falou. Questionou a ignorância de seu dono, mostrando-lhe como era dura sua cerviz. Foi só aí que Balaão se curvou às ordens divinas. Seguiu em frente determinado a abençoar Israel e não mais a amaldiçoá-lo.
Outra narrativa bíblica que se aproxima da fábula é a estória de Jonas, encontrada no livro que traz seu nome. Jonas é um profeta teimoso, cabeça dura, que não é capaz de conviver com a misericórdia divina estendida a todos os humanos. Vivia no mundo fantasioso e irreal da meritocracia. Para ele, a bondade de Deus se restringia aos bons, a Israel, é claro; aos gentios, cabia a punição e a violência divinas, pois eram considerados infiéis. Jonas fora escolhido por Deus para anunciar sua palavra em Nínive, capital da Assíria – povo inimigo de Israel – mas resiste e foge da missão. Pega um barco com destinação contrária à capital da Assíria. Em plena viagem, o mar fica revolto e – identificado como o motivo da tormenta – Jonas é lançado ao mar para aliviar o navio do castigo divino. Não é que um inteligente cetáceo, muito mais atento à palavra de Deus do que o profeta, engoliu Jonas e o levou a Nínive? Três dias e três noites viajou o animal marinho com Jonas em seu ventre até cuspi-lo na praia de Nínive, como Deus havia indicado. Mais uma vez, diante da obstinação do erro dos humanos, o autor atribui ao mundo animal a razão, própria dos humanos.
Já faz vários dias que o Brasil assiste, sem nenhuma ação concreta do governo, à contaminação de nossas águas marinhas com óleo diesel, especialmente no nordeste do país. Praias paradisíacas e verdadeiros santuários ecológicos foram danificados. Pululam na internet vídeos de voluntários limpando as praias e mostrando animais, como tartarugas, completamente sufocados pelo óleo. Mas o estrago ecológico continua ignorado pelo governo, apesar da gravidade do problema. Os ecossistemas marinhos perdem seu equilíbrio; os cetáceos e os peixes fazem ingestão de produto tóxico; e a população sente medo – não sem razão – de consumir os produtos do mar. Resultado: população fragilizada, economia em queda e o planeta em vias de destruição.
Diante de tão grave crime ambiental, assistimos estarrecidos à patética cena – mostrada em vídeo – em que o secretário de pesca, na presença do presidente da república, tenta engambelar os incautos, afirmando que os peixes são inteligentes e fogem do óleo, o que garantiria à população que os produtos do mar podem ser consumidos sem receio. Como era de se esperar, o presidente dá seu aval à ignorância de seu auxiliar, concordando com suas asneiras. Um verdadeiro espetáculo de besteirol e ruindade, que mostram a descompostura e a falta de ética dos dois líderes nacionais.
Não fosse a gente ter visto o tal vídeo, se alguém nos contasse a cena, diríamos: “Peixes inteligentes e homens perversos? É fábula”. Mas não. Triste realidade brasileira! Entregue à liderança de perversos, milicianos e ignorantes, nosso país está condenado ao caos, nossa gente está sujeita à miséria e nossos ecossistemas estão destinados a desaparecerem. No futuro, se sobrar alguém para contar a estória, não será por mérito humano, mas unicamente porque a inteligência divina, cunhada na natureza pródiga, deu seu jeito e resistiu; nossos líderes, ao contrário, fizeram de tudo para acabar com nosso patrimônio humano e natural.
Seria bom a gente não se esquecer da fábula da jumentinha de Balaão, nem do cetáceo que levou Jonas a Nínive. Moral da estória: “quando os humanos são perversos, os animais precisam ser inteligentes”.
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Sobre animais inteligentes e homens perversos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU