25 Abril 2019
“Qual é o modelo neoliberal? Ser um bom empresário de si mesmo, gerir bem as emoções, calcular bem os investimentos emocionais, rentabilizá-los bem. Ter autoestima, ou seja, desenvolver uma imagem de nós mesmos de acordo com este Ideal. Ser competente socialmente, emocionalmente, linguisticamente. Adaptar-se, este é o mantra”, escreve Luis Roca Jusmet, professor de Filosofia do Instituto La Sedeta, de Barcelona, Espanha, em artigo publicado por Rebelión, 24-04-2019. A tradução é do Cepat.
Michel Foucault falou de três tipos de tecnologias: as da produção, as do poder e as do eu. Morreu antes de poder analisar as tecnologias do eu no neoliberalismo, mas abriu um horizonte. Sociólogos como Nikolas Rose o seguiram de uma maneira fecunda sobre o tema. O dispositivo neoliberal do eu é formado por um conjunto de práticas discursivas e não discursivas enlaçadas entre si como um dispositivo. Respondem ao que Gilles Deleuze chamava de a sociedade de controle e que o próprio Foucault chamou de governamentalidade, onde o poder disciplinar se desloca para formas que pressupõem a liberdade individual. Nelas se manifesta o que Michel Foucault chamava de poder pastoral, herança do antigo sacerdote, e que hoje adquire novas formas de condução dos comportamentos: coaching, psicólogo...
Analisarei, aqui, alguns elementos básicos deste aparelho conceitual: as competências, a autoestima, a inteligência emocional e a autoajuda. Todas estas conceitualizações adquirem um caráter normativo e fazem parte do projeto de gestão da própria vida, entendida como se fosse uma empresa.
Comecemos pelo termo “autoestima”. Autoestima quer dizer querer a própria imagem: o eu quer a si mesmo. A imagem própria que nos remete ao perigoso mundo do narcisismo. O eu possui mais autoestima na medida em que se identifica cada vez mais com o seu eu ideal. O que implica um alto narcisismo. Se consideramos a autoestima como um valor absoluto, erramos. O efeito do narcisismo pode ser tão nefasto, que seria o complexo de inferioridade, como o excesso, que levaria à arrogância, soberba e vaidade.
O grande Spinoza, que considerava o amor próprio como um afeto positivo, criticava seus excessos: a vaidade, a soberba. Todos esses produtos de um desejo imoderado de prestígio. O psicanalista Jacques Lacan também já advertia que ficar dependentes do eu como autoimagem nos encerrava em um círculo mortífero. O mesmo fez o sociólogo Richard Sennett, em seu estudo “A corrosão do caráter”. É pelo próprio reconhecimento e o dos outros que passa a aceitação e o respeito. Portanto, saber sair de si e ir até o outro, no âmbito das relações.
Quando passamos à inteligência emocional, continuo me mantendo crítico. Há anos, Martin Gardner concebeu a noção das inteligências múltiplas. A ideia não era ruim porque questionava um conceito monolítico e quantitativo da inteligência. Contudo, depois, tornou-se um novo dogma e uma nova escolástica. Falava da inteligência intrapessoal e da interpessoal, ou seja, da capacidade de se entender a si mesmo e aos outros. Aqui, também entrava a empatia. Sobre esta base, Daniel Goleman elaborou sua noção de “inteligência emocional”. Contudo, Goleman defendeu que era a falta de inteligência emocional que conduzia pessoas brilhantes intelectualmente ao fracasso pessoal.
A inteligência emocional significa entender as próprias emoções, a dos outros, ser empático, controlar as próprias emoções e tomar as decisões corretas. Mas, estão sendo misturadas coisas muito diferentes. O conhecimento de si mesmo não depende da inteligência. Depende, em primeiro lugar, da capacidade de introspecção. Ou seja, do trabalho interno de perceber nossos afetos e da veracidade, de sermos capazes de não enganarmos a nós próprios.
Entender é algo que vamos aprendendo e que deve nos conduzir ao respeito e à solidariedade, mais que à empatia. Às vezes, a empatia nos leva a perder nossa posição e a tolerar o intolerável. O controle de si mesmo depende, por outra parte, do caráter. O que tradicionalmente se chamava o trabalho sobre si mesmo está sendo trivializado e degradado. São os exercícios espirituais da Antiguidade recuperados por filósofos contemporâneos como Michel Foucault e Pierre Hadot. Trabalho e esforço cotidiano de nos adequar às normas éticas que escolhemos. Formar o caráter, o que nos permitirá o domínio das emoções, no sentido spinoziano. É um caminho longo e difícil que cada um deve fazer, ainda que os outros possam nos ajudar, proporcionando-nos caixas de ferramentas para nos emancipar, não criando laços de dependência com um poder pastoral que nos guiará sempre.
Qual é o modelo neoliberal? Ser um bom empresário de si mesmo, gerir bem as emoções, calcular bem os investimentos emocionais, rentabilizá-los bem. Ter autoestima, ou seja, desenvolver uma imagem de nós mesmos de acordo com este Ideal. Ser competente socialmente, emocionalmente, linguisticamente. Adaptar-se, este é o mantra. E aquele que não se adapta bem, quem não tem a competência adequada para isso, que busque auxílio na psicologia ou na farmacologia. Todos somos clientes e consumidores potenciais deste grande mercado dos cursos de gestão emocional, da autoajuda ou dos fármacos.
Observemos como esta linguagem vai se introduzindo nas empresas e nas instituições. Como é a linguagem com a qual estão adestrando todos os gestores desta sociedade liberal avançada.
Politicamente, o que se faz é individualizar e privatizar os projetos e os problemas pessoais. Isto não quer dizer que não devamos assumir a parte de responsabilidade que nos corresponde. Também não se deve construir uma sociedade de vítimas. Contudo, entendo que fazemos parte de uma sociedade e que parte dos problemas são sociais e políticos.
A responsabilidade passa, aqui, por nos comprometer para melhorá-la. Também não quer dizer que tenhamos que renunciar a nossa singularidade, mas sempre entendendo que é com os outros que nós a desenvolvemos.
O fenômeno é complexo e, aqui, destaco apenas pontos de análises. Os estudos de Eva Illouz sobre o capitalismo emocional é outro conjunto de análises que vale a pena considerar para o estudo destas problemáticas.
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A tecnologia neoliberal do eu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU