04 Fevereiro 2019
"Eu não lhe peço para falar diretamente de política, mas eu gostaria que as pessoas que estão nas prisões dos países que mencionei e em outros da região, como também o Marrocos, onde em breve estará em visita, sentissem que o Papa conhece a sua dor e está ao seu lado", escreve Ala al-Aswani, egípcio, um dos escritores árabes mais famosos do mundo, em carta aberta publicada por Robinson. 03-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "Por experiência, porque conheço algumas pessoas que estão nessas prisões, posso dizer que faria uma grande diferença para elas saberem que está ao seu lado".
Santo Padre, enquanto se prepara para visitar o mundo árabe, os Emirados Árabes Unidos antes, e o Marrocos, depois, sinto o desejo de me dirigir ao senhor para expressar a alegria que sua viagem traz ao meu coração e àquele, permito-me dizer, de milhares de pessoas que, como eu nesta região nasceram e tornaram-se adultas. E, como eu, nos últimos anos, sonharam com um mundo diferente. Em primeiro lugar, gostaria de lhe dizer que eu o admiro muito; não muitos pontífices conseguiram manter vivo o contato com as pessoas como o senhor está fazendo. Não muitos outros foram humanistas, como o senhor é: amantes de toda a humanidade, independentemente de suas diferenças e das religiões que professa. Há anos eu o vejo lutar por uma Igreja católica que sirva a humanidade e não por uma humanidade que sirva a Igreja católica. Eu vivi no Egito durante a maior parte da minha vida: há algum tempo, por razões que seriam muito longas e complexas de explicar, estou nos Estados Unidos.
Eu não me surpreendo que em ambos os países o senhor seja muito popular, tanto dentro quanto fora da Igreja. Ao seguir seu Pontificado, não posso escondê-lo, muitas vezes fiquei surpreso: a primeira vez foi quando o senhor decidiu viver em um apartamento pequeno, dividir a mesa com outras pessoas, circular muitas vezes em carros pequenos que não chamam a atenção, em vez dos luxuosos sedãs vaticanos.
Quando entendi tudo isso, me perdoe Santidade, não pude deixar de sorrir: pensei em quantas pessoas ao seu redor não estariam nada felizes. O modelo que propõe, eu não sei o quanto está ciente disso, está deixando embaraçadas muitas pessoas na Cúria Romana. Mas para nós que o observamos de fora é uma novidade revolucionária e entusiasmante. De todas as coisas que o senhor disse ou fez desde que foi eleito, o que mais me impressionou foi o apoio que mais de uma vez ofereceu aos refugiados e aos migrantes: pensei que fosse o fruto de sua experiência, de sua vida.
O senhor é filho de imigrantes e isso provavelmente o tornou sensível ao drama das pessoas que deixam seu país em busca de uma vida melhor, mas isso não é óbvio. Até mesmo o presidente da nação que hoje me acolhe, Donald Trump, tem sangue de imigrantes em sua família: mas ele deve ter se esquecido. Assim como fizeram os representantes do Congresso norte-americano que, diante de seu discurso em 2015 e seu apelo à dignidade do homem, tinham lágrimas nos olhos. Mas depois fecharam a porta na cara daqueles que chegam aos Estados Unidos em busca de esperança e oportunidade.
Conseguirá o senhor tocar os corações dos milhões de jovens árabes que nos próximos dias seguirão sua viagem pela televisão e internet? Não tenho nenhum problema em confessar que, se a mesma pergunta tivesse sido feita sobre um de seus antecessores, eu teria dito não, que teria sido uma visita meramente decorativa. Hoje, Santo Padre, penso em maneira oposta: há muitas mensagens que os jovens árabes esperam ouvir do senhor. Palavras corajosas, que elevam os corações e os ânimos nos anos sombrios que se seguiram a que muitos definiram como a nossa Primavera. Os Emirados Árabes Unidos, país que é etapa de sua primeira visita, são protagonistas de uma terrível guerra no Iêmen. Tenho certeza que o senhor sabe disso, Santidade, não é preciso que eu lhe repita isso. Mesmo assim, deixe-me dizer como seria importante falar sobre isso. Eu descobri lendo artigos de jornais que, como eu, o senhor é um grande admirador de Fedor Dostoievski: estou certo, portanto, que bem sabe que o grande escritor mais de uma vez se perguntou por que algumas crianças tinham de sofrer tanto e por que Deus permitia que tal sofrimento lhes fosse infligido. Uma pergunta que o autor coloca na boca de um dos irmãos Karamazov, Ivan. Se permitir, eu gostaria de lembrar que Ivan falava principalmente de crianças doentes e defendia que, se Deus realmente existisse não deveria ter permitido a existência de algumas doenças e o fato de que sofressem delas em primeiro lugar as crianças: mas aqui, Santidade, nós não falamos de doenças. As pessoas que encontrará estão gastando milhões de dólares em armas que matam crianças, dezenas de milhares de crianças iemenitas.
A pergunta que se faz Ivan Karamazov é muito importante, se colocada no contexto de sua visita e de seu encontro com o príncipe dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Zayed, um dos principais promotores da guerra no Iêmen. Pode parecer-lhe um pouco apelo coerente, este meu: um muçulmano que pede ao Papa católico para falar sobre a dor do mundo árabe. Mas acredito que uma das maiores conquistas de seu papado foi ultrapassar as fronteiras do mundo católico e ser capaz de se dirigir ao mundo inteiro. Criei a ideia de que o Deus de quem o senhor fala não é apenas o Deus dos católicos, mas aquele de todo ser humano. É por isso acredito, e espero, que suas palavras cheguem até dentro das celas do meu Egito, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Iêmen. Todas as pessoas que estão presas precisam de seu apoio e solidariedade. De sua proximidade. De sua palavra. Muitos, muitos daqueles que estão nessas prisões hoje estão lá porque ousaram sonhar: liberdade, democracia, direitos. Eu realmente gostaria que o senhor pudesse dizer uma palavra sobre tudo isso.
Eu entendo que isso possa ser difícil: eu certamente não sou ingênuo. Mas seria importante se o senhor pudesse ver essas pessoas e os sinais de tortura em seu corpo. O senhor certa vez lavou os pés de um refugiado muçulmano em Roma durante as celebrações da Páscoa católica. E em Buenos Aires tinha feito a mesma coisa com um jovem dependente de drogas. São gestos como esses que encarnam a minha ideia de cristianismo e explicam por que tenho tanta admiração pelo senhor. Já disse repetidamente que devemos aceitar todos e todos aqueles que sofrem devem ser consolados. Não se esqueça que está entrando em uma área do mundo onde centenas de milhares de pessoas sofrem a todo momento: e esperam do Senhor uma demonstração de apoio e solidariedade.
Eu não lhe peço para falar diretamente de política, mas eu gostaria que as pessoas que estão nas prisões dos países que mencionei e em outros da região, como também o Marrocos, onde em breve estará em visita, sentissem que o Papa conhece a sua dor e está ao seu lado.
No Marrocos milhares de pessoas foram para a cadeia por ter pedido pão, trabalho e dignidade: aconteceu com o rei anterior e seu filho, o atual soberano, tinha prometido que durante seu governo as coisas teriam sido diferentes. Ele tentou, por algum tempo: mas muitas coisas não mudaram e hoje como então aqueles que protestam acabam presos. No Marrocos, como no Egito, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos. Por experiência, porque conheço algumas pessoas que estão nessas prisões, posso dizer que faria uma grande diferença para elas saberem que está ao seu lado.
Alguém disse que não deveria ir à península arábica: quero dizer-lhe que não concordo. O senhor sabe o que significa estar perto dos últimos desde muito antes de ser eleito Papa: um político deve perguntar-se se é certo visitar príncipes e governantes que têm as mãos sujas de sangue. O Papa não: o Papa, na minha humilde opinião, deve ir onde as pessoas sofrem. E sou grato porque o senhor está fazendo isso.
Tenha uma boa viagem. Esperamos pelo senhor de braços abertos.
‘Ala al-Aswani
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Carta a Francisco do meu Islã ferido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU