15 Janeiro 2019
Liu Guopeng, membro da Academia Chinesa de Ciências Sociais, conta como nos anos 1950 as autoridades da República Popular da China decidiram criar um pontífice próprio. E explica por que, com o acordo com a Santa Sé, deve-se arquivar a ideia de uma “Igreja nacional faça-você-mesmo”.
A reportagem é de Riccardo Cristiano, publicada em Vatican Insider, 14-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 1951, as autoridades de Pequim queriam até criar um “papa chinês”. Agora, com o acordo provisório assinado com a Santa Sé no dia 22 de outubro de 2018, eles reconheceram o papel do sucessor de Pedro também na nomeação dos bispos católicos chineses.
Basta comparar esses dados para mostrar quantas coisas mudaram e para confirmar que o acordo provisório arquivou a ideia de criar uma Igreja chinesa nacional “separada” do papa e da Igreja universal.
Quem documenta isso com a clareza própria dos acadêmicos de nível é o professor Liu Guopeng. E a autoridade dos seus argumentos também está conectada com o seu pertencimento à Academia Chinesa de Ciências Sociais (Cass), definida pela Foreign Policy como o principal think tank em atuação na Ásia.
Liu Guopeng é professor associado do Instituto de Pesquisa das Religiões Mundiais da Cass. Suas pesquisas e suas contribuições acadêmicas se concentram na história moderna e contemporânea da Igreja Católica na China. O acadêmico chinês publicou uma monografia sobre a “indigenização” da Igreja Católica na China durante o período do arcebispo Celso Costantini.
E, na entrevista a seguir, entre outras coisas, define como fora de lugar e enganosa qualquer comparação entre o acordo China-Santa Sé sobre as nomeações dos bispos chineses e os eventos da “Luta pelas Investiduras” que contrapôs o papado e o Sacro Império Romano durante a Idade Média europeia.
A Academia Chinesa de Ciências Sociais é a principal organização nacional de pesquisa acadêmica na República Popular da China para o estudo nos campos da Filosofia e das Ciências Sociais. A academia é filiada ao Conselho de Estado da República Popular da China.
Como historiador do cristianismo na China, como avalia o acordo provisório entre a Santa Sé e o governo chinês sobre as nomeações dos bispos católicos chineses?
O acordo confirma a superação definitiva da ideia de criar na China uma “Igreja nacional” separada do restante da Igreja Católica universal. Essa perspectiva foi arquivada, embora certas frases ligadas a essa ideia ainda possam ser utilizadas na linguagem oficial por algum tempo.
Por que essa perspectiva “separatista” lhe parece objetivamente ultrapassada?
Porque, depois de quase 70 anos de relações difíceis de ambos os lados, o governo chinês reconheceu o primado do papa, e isso é o mais importante. Assim, reconhece-se que a Igreja Católica na China faz parte da Igreja Católica universal. Reconhece-se que todos os católicos chineses estão em plena comunhão com o papa e também com todos os católicos e todas as Igrejas locais do mundo. Enquanto isso, na China, formam-se as condições para restaurar também a plena comunhão entre a comunidade chinesa aberta e aquela definida como “dixia”, que literalmente significa “subterrânea”. São três comunhões. É importante. Sobretudo se levarmos em consideração que, nos anos 1950, havia aqueles que realmente queriam criar uma Igreja nacional chinesa separada. Eles até haviam escolhido quem devia ser o “papa chinês”...
Trata-se de um detalhe que poucos conhecem...
Isso realmente aconteceu. Em janeiro de 1951, o bispo Zhou Jishi, de Nanchang, foi convidado a assumir o cargo de “papa” da China. Ele recusou. Mas realmente havia aqueles que tiveram essa ideia. Enquanto agora afirmam-se publicamente o papel do papa também nas nomeações episcopais e a sua comunhão hierárquica com os bispos chineses.
O que representam as autoeleições dos bispos?
Nos primeiros congressos de católicos chineses convocados pelo governo, dizia-se que a Igreja na China manteria os vínculos de natureza espiritual e religiosa com o papa. Mas depois, de 1958 a 1962, houve mais de 40 “autoeleições” de bispos, consagrados sem o consentimento do papa. Assim, visava-se a cortar o vínculo entre os católicos chineses e o pontífice, tratando-o como um inimigo político. Embora, em palavras, eles se diziam dispostos a reconhecer o papa como líder espiritual.
É útil fazer comparações com a luta medieval das investiduras?
Eu não diria isso. São situações totalmente diferentes. No Ocidente, durante aqueles séculos, a Igreja havia se estruturado como instituição que podia entrar em conflito com o poder civil, movendo-se no mesmo nível. Na China, as instituições religiosas na história nunca tiveram esse tipo de relação, no mesmo campo e no mesmo nível, com o poder político. E não pode haver esse tipo de luta. Quando se escolhe o caminho da luta, o poder político sempre prevalece. Também por isso, parece muito significativo que a China tenha aceitado fazer um acordo sobre as nomeações dos bispos com a Santa Sé, que é uma realidade institucional essencialmente religiosa. É a primeira vez que algo assim acontece.
E o que isso indica, por parte das autoridades chinesas?
As autoridades chinesas não teriam aceitado o acordo se ele lhes parecesse uma pura concessão de poder em benefício de outra entidade política, uma espécie de cedência após um longo braço de ferro, no modelo da luta pelas investiduras. A Santa Sé e a Igreja têm uma natureza própria, diferente das instituições políticas. E a nomeação dos bispos tem a ver com essa natureza. Esses dados, pouco a pouco, abriram o caminho até chegar ao acordo. E, de fato, reitero, é a primeira vez que o governo chinês fez um acordo desse tipo com uma autoridade religiosa. Isso nunca tinha acontecido.
Existe uma relação entre o acordo e o estreitamento de relações diplomáticas?
Não existe um vínculo direto e imediato. Mas, ao fazer o acordo, o governo chinês implicitamente reconheceu também a “soberania” sui generis da Santa Sé. Uma soberania dupla, que implica também a função do Estado vaticano. Assim, por esse caminho, entreveem-se também as premissas que poderão levar, no futuro, ao pleno reconhecimento entre as duas partes e ao estreitamento de relações oficiais em nível diplomático.
Aqueles que criticam o acordo repetem que a Associação Patriótica dos Católicos Chineses é incompatível com a doutrina. Como esse problema pode ser abordado?
O papel da Associação Patriótica, após o acordo, já parece estar redimensionado. E, depois do acordo, certas coisas que se diziam peremptoriamente sobre a Associação Patriótica não valem mais. O acordo mudou todo o quadro.
Em que consiste essa mudança?
Antes, a tarefa exercida pela Associação Patriótica negava de fato o papel do papa. Mas agora que o papel do papa na nomeação dos bispos também é reconhecido pelo governo, de fato, não é mais assim. A função e a finalidade da Associação Patriótica mudaram. A inscrição da Associação Patriótica tornou-se, de fato, um símbolo, uma forma de registro necessário para mostrar que os bispos e os sacerdotes são leais ao governo e respeitam a ordem chinesa. Isso me parece ser muito natural.
Entre os problemas em aberto, está o da Conferência Episcopal (Colégio dos Bispos), órgão não reconhecido pela Santa Sé, até porque ele ainda não inclui os chamados bispos “clandestinos”, não reconhecidos pelo governo e pelas autoridades civis.
Se hoje, na China, os bispos são todos legítimos do ponto de vista canônico, então a legitimação de toda a Conferência Episcopal por parte da Santa Sé me parece ser apenas uma questão de tempo. Assim como a harmonização entre o sistema das circunscrições eclesiásticas ao qual os documentos oficiais vaticanos ainda se referem – correspondente à divisão das dioceses em vigor antes do nascimento da República Popular da China – e o sistema redesenhado nas últimas décadas de acordo com as disposições do governo. Essas são todas questões que poderão ser abordadas de modo profícuo na comissão de trabalho entre a China e a Santa Sé, trabalhando com paciência e encontrando os ajustes necessários, caso a caso, quando preciso.
As chamadas comunidades católicas “subterrâneas” são penalizadas pelo acordo?
Quem acolhe mal o acordo são, sobretudo, grupos mais intolerantes em relação ao governo e aos aparatos e aqueles que identificam a própria contrariedade ao governo como um traço fundamental da própria identidade comunitária.
É uma atitude muito difundida?
Na realidade, entre os católicos chineses das comunidades “clandestinas”, muitos estão contentes ou, pelo menos, esperam ver os efeitos do acordo. A união com todos os outros católicos chineses poderá fazer bem, se virem que podem viver o seu pertencimento à Igreja sem se fechar em pequenos grupos ou sem ter que esconder nada. Entre outras coisas, deve-se levar em conta que a comunidade católica continua sendo um componente pequeno da população e, em nível político, sem relevância. Os cristãos evangélicos, por outro lado, estão crescendo, e muitos empresários e também muitos professores começam a se encontrar entre eles.
José Wei Jingyi, o bispo de Qiqihar não reconhecido como tal pelo governo chinês, disse que estamos vivendo uma situação em que a era da clandestinidade está terminando para a Igreja Católica na China. O que acha?
Também a meu ver, é isso. Não por pressão ou ordem de alguém, mas porque a clandestinidade era uma escolha ligada a situações históricas particulares. Nos anos 1950, quem não queria seguir os bispos autoeleitos se afastava. Durante a Revolução Cultural, todos tiveram que conservar a fé em segredo. Agora, na nova situação, não há mais a necessidade de permanecer clandestinos.
O acordo com a Santa Sé acontece enquanto aumentam os controles e as legislações mais rígidas para regular as atividades das comunidades religiosas. Não é uma contradição?
Isso realmente parece uma contradição. Mas, por outro lado, não se pode imaginar realisticamente um desmantelamento radical do sistema que regula a política religiosa na China. Os problemas devem ser enfrentados e resolvidos em conformidade com as regras. O primeiro interesse do governo continua sendo sempre a estabilidade social. E o acordo com a Santa Sé também foi visto como uma contribuição para a clareza e a estabilidade social. O governo quer que tudo esteja de acordo com a ordem e a lei, não quer grupos religiosos na sociedade que se esquivem da sua relação com as autoridades.
Que efeito têm sobre o governo os grupos que, de fora, atacam-no em nome dos cristãos?
Isso causa irritação. Eles sabem que há aqueles que também querem usar os problemas da Igreja na China para pressionar internacionalmente o governo chinês. Nos contrastes geopolíticos que envolvem agora a China, tudo pode ser usado. Também por isso, os funcionários do governo chinês decidiram trabalhar diretamente com a Santa Sé. Eles sabem que todos podem tirar vantagem das situações delicadas, onde ainda existem controvérsias não resolvidas.
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Quando Pequim queria um ''papa chinês'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU