20 Dezembro 2018
Terceira maior empresa de aeronaves do mundo, com salários três vezes inferiores aos de suas concorrentes, Embraer é tudo o que a Boeing quer para afastar Brasil do jogo e tornar-se líder no mercado global.
O artigo é de Graça Duck, professora titular da Faculdade de Filosofia e C. Humanas/UFBA, pesquisadora do CRH/UFBA e do CNPq, publicado por Outras Palavras, 04-05-2018.
Em 21 de dezembro de 2017, a empresa norte-americana Boeing anunciou a intenção de comprar a Embraer. Os termos dessa negociação não estão concluídos. Ainda assim, já há muito o que dizer, temer e fazer a esse respeito.
O calor dos acontecimentos nem sempre é a melhor temperatura para analisar em profundidade o momento presente, mas a espera por definições é um luxo que os trabalhadores e todos os interessados na soberania e indústria nacionais não podem se dar.
Com urgência, porém muito rigor, três sindicatos de metalúrgicos (de São José dos Campos, Botucatu e Araraquara) e o Dieese reuniram, num site e numa revista, treze artigos de pesquisadores e ativistas sindicais cujas trajetórias estão diretamente ligadas ao tema Embraer ou às questões que afetam os trabalhadores frente às fusões e aquisições em um cenário de crescente precarização e desregulamentação do trabalho.
O assunto será abordado por ao menos três vieses:
a) essa negociação é prejudicial à soberania nacional?
b) qual o futuro dos trabalhadores caso o controle total ou parcial da Embraer seja adquirido pela Boeing?
c) é possível para a Embraer sobreviver, em um mercado altamente competitivo, sem ter seu controle alienado para a Boeing ou outra companhia?
O diálogo entre a academia e dirigentes sindicais está presente a todo momento, a fim de que todos possam desempenhar plenamente suas atribuições ao relacionar de forma viva a pesquisa e a vivência prática.
Por fim, agradecemos profundamente todas as autoras e autores que prontamente contribuíram para fomentar esse debate. Sem eles, não seria possível fazer chegar ao público essa contribuição diversa e de qualidade. (Renata Belzunces, do Dieese)
A globalização e os processos de reestruturação produtiva, em curso há pelo menos quatro décadas, caracterizam o capitalismo flexível e globalizado, no qual as classes dominantes atuam no mercado mundial motivadas pelo retorno dos seus investimentos no curtíssimo prazo, não importando qual o custo para a sociedade.
Vive-se um momento histórico em que o capitalismo revela não apenas os seus limites para solucionar problemas sociais fundamentais, como a pobreza, mas a radicaliza e a faz ressurgir em países que a haviam debelado. É a hegemonia neoliberal, cuja direção econômica e política está nas mãos da fração mais improdutiva e destrutiva da sociedade: o capital financeiro, pautado na acumulação por espoliação (Harvey, 2004), que vem dilapidando as conquistas das classes trabalhadoras em todo o mundo.
Em países periféricos como o Brasil – que se insere nesta (des)ordem globalizada, de forma subordinada aos interesses imperialistas do grande capital, especialmente o financeiro –, manter a capacidade tecnológica e produtiva de setores estratégicos sob o controle do Estado, seja na forma de empresas estatais ou de outros mecanismos, a exemplo da golden share, como é o caso da Embraer, representa, em certa medida, uma resistência à ofensiva do capital no contexto de radicalização neoliberal.
A negociação em curso para a venda da Embraer à Boeing, envolvendo diretamente os respectivos governos do Brasil e dos EUA, é mais um importante indicador da atual conjuntura pós-golpe no país.
Do impeachment da presidente Dilma Roussef até os dias atuais, o governo ilegítimo de Michel Temer – sustentado por um Congresso Nacional desmoralizado por denúncias, prisões e processos judiciais de grande parte de seus membros, auxiliado por um Poder Judiciário também envolvido em corrupção e que passou a atuar aberta e politicamente articulado ora com partidos da base governista, ora com empresas de comunicação – vem desmontando o Estado brasileiro em sua face social, que já era insuficiente, e os direitos dos trabalhadores.
É o que indicam: a “PEC da Morte”, que congelou os gastos públicos por 20 anos, inviabilizando o ensino e a saúde pública no país; medidas provisórias que suspenderam concursos públicos, extinguiram milhares de funções de servidores, congelaram salários e progressões na carreira, dificultando a execução de políticas públicas; a reforma trabalhista que põe fim à CLT e coloca em xeque o Direito do Trabalho; e a proposta de reforma da Previdência, reprovada pela maioria da sociedade, pois representa um ataque violento aos direitos sociais conquistados e estabelecidos na Constituição Brasileira.
Vive-se no Brasil uma grave situação de ofensiva do capital globalizado, expressa nas políticas e medidas tomadas pelo governo Temer contra o que sobrou do patrimônio nacional pós anos 1990, nos governos de Fernando Henrique Cardoso, quando a privatização de empresas estatais já foi profunda. Hoje, a desmoralização da Petrobras, por meio da operação Lava Jato, a entrega do pré-sal e a privatização da Eletrobras compõem o cenário no qual se situa a venda da Embraer.
A Embraer, terceira maior empresa de aeronaves do mundo e primeira em seu segmento, privatizada em 1994, sofreu desde então várias reestruturações, com aumento de produtividade, não sem impor perdas e piores condições de trabalho aos seus empregados. Pois, apesar de lucros crescentes e sua consolidação no mercado internacional, negou sistematicamente reajustes salariais reivindicados pelos trabalhadores, o que levou a uma grande greve em 2014. Cabe observar que a Embraer tem um padrão salarial muito abaixo daquele de suas concorrentes. No caso da Boeing, o salário-hora médio pago aos empregados da produção é de U$ 26,20, enquanto aqui é de U$7,51, isto é, três vezes menos (Nogueira, 2015). Na crise internacional de 2008/9, a Embraer justificou a demissão de 4.000 empregados. Entretanto, em 2009, bateu recorde de produção e readmitiu trabalhadores em 2011, com salários muito inferiores. (idem)
Nesse processo de reestruturações, junto a demissões e rebaixamento salarial, a Embraer intensificou a terceirização, uma prática que virou uma epidemia sem controle em todas as atividades nos setores público e privado e cujos estudos em todo Brasil revelam que terceirizar é precarizar o trabalho. No período de 2001 a 2016, houve um crescimento de 88% no número de terceirizados, enquanto o número de empregados diretos cresceu 45%. Em 2001, os terceirizados eram 17% do total de empregados e em 2016, 21%. Observa-se que a partir de 2010, após o primeiro impacto da crise financeira internacional, há um crescimento de apenas 142 empregados diretos até 2015, enquanto os terceirizados aumentam em 1.950. Só em um ano – de 2015 a 2016 –, há uma diminuição de 1.000 empregados diretos, enquanto os terceirizados aumentam em 445 (Dieese, 2018).
Essa evolução indica as estratégias de gestão da Embraer para enxugar o quadro de empregados, aumentando a terceirização que, com a aprovação das Leis 13.429 (trabalho temporário e terceirização) e 13.467 (reforma trabalhista), estará respaldada legalmente para estabelecer a precarização como regra.
Uma empresa “saneada”, com alta produtividade, lucros crescentes, posição consolidada e de liderança no mercado internacional, com salários três vezes inferiores aos das suas concorrentes e a terceirização liberada, é tudo o que o governo Trump e a empresa Boeing querem para fazer frente à disputa com outros países, tornando-se líder no mercado internacional.
Mas afinal, a Embraer já não é uma empresa privada? Por que essa reação à venda para a Boeing? Porque se trata de um processo de desnacionalização, que se iniciou com a mudança em 2006, quando a empresa pulverizou o seu capital, e todas as ações se tornaram ordinárias sem o acionista controlador; e mudou o nome de Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. para Embraer S.A (Nogueira, 2015).
No atual momento, outra mudança decisiva nesta direção está para ser feita. Trata-se do fim da golden share – ações especiais de propriedade do governo, que lhe dá o direito de agir sobre a empresa, a fim de salvaguardar interesses nacionais. No caso do Brasil, isso vale para a Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. Em julho de 2017, o Ministério da Fazenda realizou uma consulta ao TCU da União para ver como o governo pode se livrar da golden share. Isto significa retirar qualquer limite ou controle do Estado sobre a Embraer e, portanto, entregar uma empresa – que tem papel chave na defesa e segurança nacional – ao governo Trump e à Boeing.
A venda da Embraer – junto à proposta de privatização da Eletrobras, dos processos atuais de reestruturação de natureza privatizante das maiores empresas estatais, a exemplo da Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica e Correios; do desmantelamento das universidades públicas, inviabilizando a produção científica do país – caracteriza uma situação gravíssima, pois são ações para se desfazer de um patrimônio nacional, que é estratégico para o desenvolvimento econômico do país. O desmonte do Estado, do patrimônio nacional e dos direitos dos trabalhadores na forma como vem ocorrendo nestes últimos dois anos é expressão de uma burguesia brasileira que não tem mais nada a oferecer como projeto de nação à sociedade, pois está comprometida até a raiz dos cabelos com o imperialismo, submissa ao rentismo, agindo em benefício próprio, especulando no “mundo financeiro”, sem qualquer compromisso com a nação e seu povo. É o agente principal do aprofundamento da desigualdade econômica e a responsável pela grave anomia social que o país atravessa.
Trata-se de uma burguesia desprovida de qualquer sentimento republicano, que atua para desmoralizar e desmontar as principais instituições da democracia representativa, drena recursos públicos para o capital financeiro através do sistema da dívida pública, entrega o patrimônio nacional, impõe à classe trabalhadora a destituição dos seus direitos, sustenta e justifica o uso do trabalho análogo ao escravo em suas propriedades e quer o fim das universidades públicas.
O golpe contra a democracia, a nação brasileira e os trabalhadores, em curso desde 2016, a partir do impeachment, tem levado a uma violenta regressão econômica, política e social. A reação dos trabalhadores e suas organizações sindicais e políticas, com a ação de diversos movimentos sociais, tem se manifestado nas ruas e nas greves, a exemplo da Greve Geral de 28 de abril de 2017. Mas é preciso ir além.
Diante de uma dura política de classe expressa nas ações do governo Temer e sua base de apoio – no parlamento, no judiciário e na mídia – é necessária a construção de uma grande força política nacional que reúna os mais diversos segmentos e instituições: sindicatos, partidos, movimentos sociais do campo e da cidade, ativistas e militantes das universidades e outras instituições públicas numa rede de contrapoderes que busque a construção de uma alternativa a essa dominação, numa perspectiva classista.
A iniciativa do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, coerente com a sua trajetória de lutas classistas, ao buscar constituir uma força política contra a venda da Embraer, através de iniciativas a exemplo desta publicação, é um indicador de ações possíveis, mesmo que pontuais, pois representa a construção de uma vontade política coletiva, que denuncia e se opõe à entrega do país às grandes corporações e ao governo reacionário de Trump. A venda da Embraer, se consumada, representará mais um ato de renúncia à soberania nacional e de perdas para os trabalhadores. Por isso, é preciso afirmar: em defesa dos empregos, contra a desnacionalização da Embraer!
DIEESE Subseção SindMetalSJC. Número de trabalhadores diretos e terceirizados no Brasil – Embraer – 1994-2016, 2018, mimeo.
Harvey, D. O novo imperialismo. SP. Ed Loyola, 2004.
Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região. Campanha Salaria 2017 – Embraer e setor aeronáutico, 2017, mimeo.
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Embraer: radiografia de uma operação criminosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU