03 Mai 2018
"Que significaria transferir à Boeing a maior empresa brasileira de alta tecnologia. Por que acordo permanece envolto em sigilo. Quais as alternativas para manter controle nacional".
O comentário é de Marcos José Barbieri Ferreira, professor doutor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Laboratório de Estudos das Indústrias Aeroespaciais e de Defesa (LabA&D) da Unicamp, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-05-2018.
Em 21 de dezembro de 2017, a empresa norte-americana Boeing anunciou a intenção de comprar a Embraer. Os termos dessa negociação não estão concluídos. Ainda assim, já há muito o que dizer, temer e fazer a esse respeito.
O calor dos acontecimentos nem sempre é a melhor temperatura para analisar em profundidade o momento presente, mas a espera por definições é um luxo que os trabalhadores e todos os interessados na soberania e indústria nacionais não podem se dar.
Com urgência, porém muito rigor, três sindicatos de metalúrgicos (de São José dos Campos, Botucatu e Araraquara) e o Dieese reuniram, num site e numa revista, treze artigos de pesquisadores e ativistas sindicais cujas trajetórias estão diretamente ligadas ao tema Embraer ou às questões que afetam os trabalhadores frente às fusões e aquisições em um cenário de crescente precarização e desregulamentação do trabalho. “Outras Palavras” passa a publicar uma seleção deste material.
O assunto será abordado por ao menos três vieses:
a) essa negociação é prejudicial à soberania nacional?
b) qual o futuro dos trabalhadores caso o controle total ou parcial da Embraer seja adquirido pela Boeing?
c) é possível para a Embraer sobreviver, em um mercado altamente competitivo, sem ter seu controle alienado para a Boeing ou outra companhia?
O diálogo entre a academia e dirigentes sindicais está presente a todo momento, a fim de que todos possam desempenhar plenamente suas atribuições ao relacionar de forma viva a pesquisa e a vivência prática.
Por fim, agradecemos profundamente todas as autoras e autores que prontamente contribuíram para fomentar esse debate. Sem eles, não seria possível fazer chegar ao público essa contribuição diversa e de qualidade (Renata Belzunces, do Dieese)
O termo combinação — utilizado no comunicado oficial da Embraer, em 21 de dezembro de 2017 (EMBRAER, 2017), para justificar as conversações com a Boeing — é extremamente genérico e pode incluir todo tipo de acordo entre as duas empresas, desde restritos contratos comerciais ou tecnológicos até a completa aquisição da empresa brasileira pela sua congênere estadunidense. Em realidade, a primeira informação pública sobre essas conversas, divulgada no dia anterior ao comunicado da Embraer pelo conceituado Wall Street Journal (MATTIOLI, 2017), indicava que a Boeing tinha por objetivo um “takeover”, isto é, adquirir o controle da fabricante brasileira de aeronaves.
Dada a importância econômica, tecnológica e estratégica que a Embraer possui para o Brasil, é fundamental que a negociação entre as duas empresas seja apresentada, esclarecida e discutida com toda sociedade.
O padrão de concorrência na indústria aeronáutica mundial é marcado pela contínua e crescente introdução de inovações tecnológicas. Por sua vez, esse elevado dinamismo tem resultado em custos e incertezas cada vez maiores, particularmente no que se refere ao desenvolvimento de novas aeronaves.
Essas elevadas barreiras competitivas na indústria aeronáutica têm, continuamente, ampliado o tamanho mínimo exigido dos fabricantes de aeronaves, dado que somente as grandes empresas podem fazer frente aos crescentes desafios — tecnológicos e financeiros — inerentes ao processo de inovação. Como consequência, observou-se uma contínua concentração da estrutura produtiva da indústria aeronáutica mundial, que começou no pós-guerra e, posteriormente, expandiu-se para além da própria indústria aeronáutica. O resultado foi a criação dos grandes conglomerados aeroespaciais e de defesa (A&D) que, além da fabricação de aeronaves, também abrangem os setores espacial e militar. Nas últimas décadas, esses conglomerados tornaram-se a estrutura organizacional predominante na indústria aeronáutica mundial (FERREIRA, 2009).
Contudo, o caráter estratégico desses grandes conglomerados — seja pela posição-chave no fornecimento de produtos de defesa, seja por ser um setor de alta tecnologia (empregos mais qualificados e produtos de alto valor agregado) — fez com que o processo de concentração, que resultara na criação dessas grandes empresas, ficasse restrito às fronteiras nacionais. Ao contrário, a concentração em âmbito local permitiu a constituição de grandes conglomerados nacionais que se enfrentam na esfera internacional. O controle nacional dos grandes conglomerados A&D não apenas permaneceu, mas foi reforçado com o processo de concentração da indústria aeronáutica.
De acordo com dados recentes da consultoria Deloitte (2016), “nenhum” dos grandes conglomerados A&D do mundo tem a sua estrutura de controle comandada pelo capital estrangeiro. Mesmo no caso das operações realizadas dentro de um bloco econômico consolidado, como a União Europeia, o caráter nacional dos conglomerados A&D permanece incólume. Por exemplo, desde sua origem, a “europeia” Airbus tem o seu controle igualmente dividido entre os franceses e os alemães.
Apesar de necessário, esse vigoroso processo de concentração tem se mostrado insuficiente para fazer frente aos desafios impostos pela crescente complexidade tecnológica das novas aeronaves. Desta maneira, os conglomerados A&D de diferentes países vêm estabelecendo alianças estratégicas, que possibilitam a união de esforços de empresas de distintas nacionalidades sem que percam a autonomia, dado que não envolve a aquisição de uma empresa pela outra. Na maioria dos casos, as alianças estratégicas surgiram da crescente necessidade de se associar e integrar os recursos de diferentes empresas — em geral, de diferentes nacionalidades — para desenvolver um projeto específico.
Neste contexto, a discussão sobre a possível aquisição, ainda que parcial, da Embraer pela Boeing está em contraposição ao padrão de concorrência da indústria aeronáutica mundial, pois os países buscam preservar e reforçar o controle nacional dos seus respectivos conglomerados A&D.
Mesmo a aquisição do programa C-Series da canadense Bombardier pela europeia Airbus, que poderia ser apresentada com um contraponto à questão nacional, deve ser melhor esclarecida. Cabe ressaltar que o negócio está restrito ao problemático programa de aeronaves comerciais C-Series que, desde sua origem, apresentou custos elevados e baixas encomendas em razão dos erros estratégicos cometidos pela direção da Bombardier. Além disso, é importante ressaltar que o programa C-Series iniciou suas vendas em 2016 e ainda tem uma participação muito restrita nas receitas da Bombardier. Apesar de envolver um projeto problemático, deficitário e incipiente, a Bombardier manteve uma participação de 31% e a província de Quebec deteve 19% da subsidiária responsável pelo programa, a C-Series Aircraft Limited Partnership (CSALP). A Airbus adquiriu 50,01% das ações dessa unidade de negócios, mas pelo acordo a sede administrativa e a principal linha de produção continuarão no Canadá (Oliveira, 2017). Em realidade, este caso demonstra a importância do controle nacional dos grandes conglomerados A&D, mesmo sobre projetos específicos, ao invés de refutá-lo.
No caso brasileiro, a importância de se manter o controle nacional da Embraer é ainda mais crucial. Primeiro, ela responde sozinha por mais de 80% das receitas do conjunto de empresas que compõem o setor aeroespacial brasileiro (AIAB, [s.d.]). Ademais, o restante da cadeia produtiva da indústria aeronáutica brasileira é muito restrita, formada majoritariamente por fornecedores de segundo e terceiro níveis, altamente dependentes da Embraer (FERREIRA, 2016). Desta maneira, é possível afirmar que a eventual perda de controle da Embraer significaria a perda de controle do conjunto da indústria aeronáutica brasileira, seja pela atuação direta dessa empresa, seja pela coordenação que ela exerce sobre a cadeia de suprimentos.
Segundo, a Embraer é uma marca da exceção dentro da estrutura produtiva brasileira, destacando-se como a única grande empresa nacional com ativa inserção internacional num setor de alta tecnologia, contando inclusive com subsidiárias em outros países, como Portugal e EUA. Em suma, a Embraer é a única global player que o Brasil possui num setor de alta tecnologia e, certamente, seria uma grande perda subordiná-la aos interesses de uma empresa estrangeira.
Os desafios que se impõem à indústria aeronáutica mundial — particularmente aos grandes conglomerados A&D — são crescentes, em decorrência da incorporação de um amplo conjunto de tecnologias inovadoras somado ao acirramento da concorrência internacional, marcada pelo avanço da China. No entanto, a Embraer vem ocupando uma posição de destaque no cenário internacional. De acordo com os dados da Deloitte (2016), a Embraer é o 22º maior conglomerado A&D do mundo, ocupando a terceira posição entre as maiores fabricantes de aviões, com reconhecida competência em todos os mercados que atua: comercial, executivo e militar.
Essa ativa inserção internacional é o reflexo da elevada capacitação tecnológica e gerencial que a Embraer construiu ao longo das suas quase cinco décadas de existência. Além da reconhecida competência no desenvolvimento de aeronaves, a Embraer foi considerada a empresa que mais investiu em processos de manufatura avançada no Brasil, nestes últimos anos. A isto soma-se uma elevada inteligência de mercado que possibilita à Embraer identificar janelas de oportunidade e alcançá-las à frente dos seus concorrentes. Como resultado, a empresa conquistou encomendas de aeronaves que totalizavam mais de US$ 18 bilhões, no final de 2017 (EMBRAER, [s.d.]).
Essas características fazem com que a Embraer tenha um elevado poder de mercado para negociar alianças estratégicas com parceiros internacionais sem a necessidade de transferir o controle da empresa, ainda que parcialmente. Na realidade, desde sua origem, a Embraer vem adotando de maneira muito bem-sucedida a estratégia de parcerias, acordos e alianças com diversas empresas estrangeiras, visando sua capacitação tecnológica e comercial, sem envolver o controle. Destacam-se os acordos com os italianos da Aermacchi e Alenia nos programas Xavante e AMX; com a estadunidense Piper na fabricação de aviões leves; com a Harbin para entrada no mercado chinês e, mais recentemente, com a sueca Saab no programa de transferência de tecnologia do avião de caça Gripen NG. Não faz sentido, dentro da lógica competitiva da indústria aeronáutica, a transferência do controle da Embraer ou de algum segmento ou programa específico, ainda mais agora que a empresa alcançou uma posição de liderança global.
A possível transferência de controle das atividades de desenvolvimento, produção e comercialização de aeronaves civis (comerciais e executivas) para a estadunidense Boeing — como veiculado, recentemente, na imprensa (Adachi & Torres, 2018) — significaria o desmonte da empresa brasileira e vai na contramão do processo de consolidação da estrutura produtiva da indústria aeronáutica mundial, que resultou na constituição dos grandes conglomerados A&D, sendo a própria Embraer um dos casos de sucesso desse processo.
A busca pela atuação dual (civil e militar) visa a robustecer a atuação dos grandes conglomerados por meio da possibilidade de ampliar os ganhos provenientes da sinergia entre os diferentes negócios da empresa, além da mitigação dos riscos proporcionada pela maior diversidade de operações. No caso específico da Embraer, o segmento militar tem sido responsável pela introdução da maioria das inovações tecnológicas. Já o segmento civil (comercial e civil) fornece a escala produtiva, respondendo por mais de 80% das receitas da empresa. A possível execução desta proposta transformaria a área de aeronaves civis da Embraer em uma subsidiária estrangeira com o centro de decisões transferido para o exterior. Por sua vez, relegaria a área de defesa à inviabilidade econômica, implicando sérias dificuldades para execução dos programas estratégicos de defesa sob sua responsabilidade, além de consequências ainda mais negativas para o futuro.
A transferência do controle da Embraer — ou de parte dos seus negócios — para Boeing ou qualquer outra empresa estrangeira seria o fim da Embraer como a conhecemos, seria o fim da global player brasileira. A Embraer pode mais do que isso e solução passa pela construção de alianças estratégicas internacionais que efetivamente preservem a integridade e o controle nacional da empresa.
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Referências:
ADACHI, V.; TORRES, F. Boeing quer ter o controle de até 90% da ‘nova Embraer’. Valor Econômico, 6 de fevereiro de 2018. Disponível aqui. Acessado em: 2018.
AIAB – ASSOCIAÇÃO DAS INDÚSTRIAS AEROESPACIAIS DO BRASIL. Base de dados. [s.d.]. Disponível aqui. Acessado em: 2018.
DELOITTE. 2016 Global aerospace and defense sector outlook. Disponível aqui. Acessado em: 2017.
EMBRAER. Boeing e Embraer Confirmam discussões sobre Potencial combinação. Embraer, 21 dez 2017. Disponível aqui. <>. Acessado em: 2017.
EMBRAER. Informações Instituionais, [s.d.]. Disponível aqui. Acessado em: 2017.
FERREIRA, M.J.B. Dinâmica da inovação e mudanças estruturais: um estudo de caso da indústria aeronáutica mundial e a inserção brasileira. 2009. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas, Campinas, 2009.
FERREIRA, M.J.B. Plataforma Aeronáutica Militar. In.: IPEA/ABDI. Mapeamento da Base Industrial de Defesa. Brasília: ABDI – Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial: Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016.
MATTIOLI, D.; CIMILLUCA, D.; HOFFMAN, L. Boeing Held Takeover Talks With Brazilian Aircraft Maker Embraer. Wall Street Journal, Dec. 21, 2017. Disponível aqui. Acessado em: 2017.
OLIVEIRA, J.J. Airbus e Bombardier se unem para produzir jatos comerciais C-Series. Valor Econômico, 17 out. 2017. Disponível aqui. Acessado em: 2017.
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Embraer: radiografia de uma operação criminosa (1) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU