08 Mai 2018
"A visão religiosa e teológica de Michelangelo sobre a salvação cristã era inclusiva, e não exclusiva, tanto católica como Católica. Como a maioria dos cristãos da época, Michelangelo interpretou figuras do Antigo Testamento como prefigurações das do Novo Testamento. Cristo, no olhar de Michelangelo, fica implícito em suas pinturas de Adão, Noé, Moisés, os profetas e ancestrais de Cristo".
O comentário é de David Tracy, professor emérito de Estudos Católicos na Universidade de Chicago e autor de A Imaginação Analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo, publicado pela Editora Unisinos, 2006, na Coleção Theologia Publica, 7, em artigo publicado por America, 02-05-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Nota do editor: O anúncio da nova exposição do Metropolitan Museum of Art Costume Institute, “Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination” (Corpos celestes: moda e a imaginação católica), que destaca a moda influenciada pela arte religiosa católica e pelo vestuário religioso (principalmente litúrgico), levou a uma mistura de reações, desde calorosa aprovação até forte indignação.
Porém, a nova exposição, que será lançada em Nova York no dia 10 de maio, não é surpreendente nem desrespeitosa. "Heavenly Bodies" não é surpreendente porque a cultura altamente visual do catolicismo é uma influência natural para todo tipo de artistas, inclusive estilistas. E é respeitosa, não apenas graças à erudição geral do Met, mas também porque seus curadores (divulgação completa: consultei-os brevemente) foram altamente sensíveis à sensibilidade católica. Nada menos do que o cardeal Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho do Vaticano para a Cultura, tão reconhecido quanto os representantes do Costume Institute com quem dividiu o palco, como Anna Wintour e Andrew Bolton, no lançamento da exposição em Roma. O Vaticano também emprestou vários itens litúrgicos para a exibição. Na verdade, a única surpresa pode ser por que o Met demorou tanto tempo para organizar a exposição.
A maior surpresa para os católicos pode ser o autor da introdução ao catálogo da exibição: um dos maiores teólogos contemporâneos do mundo, o Pe. David Tracy, professor emérito de Estudos Católicos da Universidade de Chicago e autor do influente livro The Analogical Imagination: Christian Theology and the Culture of Pluralism (o livro foi publicado em português pela Editora Unisinos, coleção Teologia Pública fazer a citação completa. No ensaio seguinte, retirado do catálogo, o professor Tracy situa um artista católico, Michelangelo, dentro da imaginação artística católica mais ampla.
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A história da teologia católica é rica e pluralista. Algumas épocas dão origem a um colosso teológico singular em realizações: Santo Agostinho nos séculos IV e V; Tomás de Aquino na Idade Média. Paradoxalmente, em alguns períodos, os principais pensadores católicos não são os teólogos oficiais, mas os grandes artistas. Nos séculos XVI e XVII, por exemplo, os teólogos católicos mais originais foram os artistas Michelangelo Buonarroti (1475-1564), Raphael, Leonardo da Vinci, Titian, Caravaggio e Bernini.
Certamente, havia muitos teólogos católicos talentosos, inteligentes e eruditos no século XVI: Thomas Cajetan, Francisco Suárez, Francisco de Vitoria, João de São Tomás e outros. Sobretudo, havia os grandes teólogos místicos João da Cruz, Teresa de Ávila e Inácio de Loyola. No entanto, o grande trabalho teológico católico do século foi o de Michelangelo no teto da Capela Sistina (concluído em 1512) e seu companheiro disruptivo, o apocalíptico "Juízo Final" (concluído em 1541) na parede do altar da capela. Ele conferiu a essas obras monumentais complexidade, pluralidade, poder sintético e uma distinta visão teológica católica: encarnacionista, sacramental, metafórica, analógica.
Traje de gala, John Galliano para a casa Dior,
alta-costura Outono/Inverno 2000-2001
A visão teológica de Michelangelo sobre a salvação é baseada, bem como todo o cristianismo, na salvação pelo evento e pela pessoa de Jesus Cristo. Sua teologia também foi profundamente influenciada por seu conhecimento do Antigo Testamento. Por isso a predominância do Antigo Testamento em nove painéis centrais do teto da Capela Sistina: "Separação da luz da escuridão"; "Criação do sol e da lua"; "Separação da terra e da água"; "Criação de Adão"; "Criação de Eva"; "O pecado original e a expulsão do paraíso"; "o Sacrifício de Noé"; " o Grande Dilúvio" e "Noé Embriagado". Adjacente a estes painéis centrais estão o famoso "Ignudi", os nus masculinos inquietos e atléticos cuja presença destaca a influência da Grécia antiga e de Roma no trabalho de Michelangelo e sugere a energia incontida de Deus, o Criador, em toda a criação.
Em uma pluralidade deslumbrante, cada espaço do teto está repleto de imagens bíblicas e figuras clássicas. Os cantos apresentam mais cenas do Antigo Testamento sobre a salvação milagrosa, protótipos para a história de Cristo: "Davi e Golias", "Judite e Holofernes", "Castigo de Haman", "A Serpente de bronze". As lunetas e grutas retratam os ancestrais de Cristo em cores brilhantes; os medalhões apresentam cenas históricas dos livros dos Macabeus. Dominando outras figuras estão os afrescos monumentais de Michelangelo, com sete profetas do Antigo Testamento juntamente com cinco profetas da Grécia e de Roma, as sibilas. Os antigos se unem para aprofundar a visão teológica católica e renascentista de Michelangelo e para transmitir a continuidade direta do cristianismo tanto com o judaísmo como com a cultura clássica grega e romana. A visão religiosa e teológica de Michelangelo sobre a salvação cristã era inclusiva, e não exclusiva, tanto católica como Católica. Como a maioria dos cristãos da época (por exemplo, Martinho Lutero), Michelangelo interpretou figuras do Antigo Testamento como prefigurações das do Novo Testamento. Cristo, no olhar de Michelangelo, fica implícito em suas pinturas de Adão, Noé, Moisés, os profetas e ancestrais de Cristo; Eva é uma prefiguração de Maria e da Igreja. Surgem várias analogias entre os tipos e os protótipos que recobrem o teto.
Vestido de noite, Gianni Versace, Outono/Inverno 1997-98;
Cruz Processional, Bizantino, ca. 1000-1050
O teto da Capela Sistina expressa os símbolos centrais do Cristianismo Católico em toda sua complexidade. Seus painéis centrais sobre a criação transmitem um otimismo e humanismo da Alta Renascença, refletindo sobre a harmonia da natureza de forma graciosa, embora as notas mais trágicas do pecado e da graça apareçam nas imagens do "Pecado Original" e da "expulsão de Adão e Eva", assim como no retrato assustador e cheio de pânico da "Inundação". Porém, em todas as cenas sobre a criação do universo, o ponto-chave de Michelangelo para compreender qualquer clássico é seguir a história da sua recepção em diversas culturas e períodos, ou em diferentes momentos na vida das pessoas.
Por exemplo, vários contemporâneos de Michelangelo — bem como alguns papas, teólogos, outros artistas e um grande satirista (o irritante Pietro Arentino) — contestaram os muitos corpos nus nas esculturas e nos afrescos de Michelangelo. Adriano VI (que reinou de 1522 a 1523) criticou o teto dizendo que era "um monte de corpos nus", e, mais tarde, outro papa, o rigorista de pensamento pequeno Paulo IV (que reinou de 1555 a 1559), declarou que o "Juízo final" de Michelangelo deveria estar em uma taverna ou bordel, não na capela papal. A ideia de apagar todo o afresco (felizmente uma opinião minoritária entre os papas) foi impedida por alguns sábios conselheiros papais e pela reputação internacional de Michelangelo. Mas logo após sua morte outro papa ordenou que um artista menor pintasse tangas em tantos corpos nus quanto fosse possível. Os críticos de Michelangelo não conseguiram entender que o nu era um aspecto importante de suas convicções teológicas e artísticas. Até hoje, a capacidade de esculpir ou pintar o corpo nu masculino ou feminino é uma das formas centrais de um artista retratar os movimentos, as tensões, os ritmos distorcidos e, assim, as emoções de uma figura humana.
Conjunto, Domenico Dolce e Stefano Gabbana para
Dolce & Gabbana, Outono/Inverno 2013-14;
Fragmento do mosaico do chão com uma personificação
de Ktisis, Bizantino, 500-550
Os nus de Michelangelo advinham de uma fonte ainda mais profunda. Teologicamente, uma alma não pode ser pintada como tal — é, afinal de contas, invisível —, mas pode ser pintada ou esculpida como se manifesta num corpo visível e dotado de alma. A respeito desse assunto, como em tantos outros, estava por trás de Michelangelo a linha principal da tradição teológica cristã. O Evangelho de João — o mais espiritual, contemplativo, até mesmo místico dos quatro Evangelhos — começa assim: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (João 1:14). Cristo não se tornou espírito nem mente, mas carne. Em seu "Juízo Final", Michelangelo afirma fortemente a tradicional crença cristã na ressurreição do corpo — não simplesmente na imortalidade da alma (como Sócrates). A alma humana é uma alma com corpo; o corpo humano é um organismo dotado de alma. Em poucas ocasiões essa crença filosófica (Aristóteles) e teológica (Tomás de Aquino) recebeu uma expressão artística e teológica tão forte como nas esculturas, afrescos e desenhos de Michelangelo.
Ainda mais complexo de entender do que a recepção de um clássico por uma cultura ou um indivíduo é o mistério de sua criação. Sugiro que a chave para a criação de qualquer clássico é paradoxal — ou seja, que a realização da universalidade exige a intensificação da particularidade mais profunda de um artista. Houve algum artista do século XVI mais insistente em concretizar sua visão singular do que Michelangelo, que é famoso por desafiar seus patrões ferozmente? No entanto, é apenas através de tal particularidade que suas obras primas ganham uma universalidade que aumenta a cada século.
A teologia de Michelangelo é classicamente católica, porque é tanto uma teologia analógica da criação-encarnação como antecipação da salvação como recriação (descrita no teto da Capela Sistina) como uma profunda teologia da cruz e da escatologia nas imagens dialéticas, às vezes violentas, que figuram no "Juízo Final". Estes dois afrescos monumentais coabitam o mesmo espaço, juntos, um pouco inquietos, em confronto teológico apesar de se complementarem. Na verdade, o Cristianismo não pode ser entendido ignorando a beleza e a bondade em toda a criação ou os elementos trágicos de sofrimento, do mal e do pecado em toda a vida. Esta é a imaginação analógica católica.
Este ensaio foi retirado do livro Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination, de Andrew Bolton, Barbara Drake Boehm, Marzia Cataldi Gallo, C. Griffith Mann, David Morgan, Gianfranco Cardeal Ravasi e David Tracy. Publicado pelo Metropolitan Museum of Art, New York 2018.
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Corpos celestes, de Michelangelo a Dolce & Gabbana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU