22 Outubro 2013
"Antes dos princípios, o anúncio do Evangelho, a ser entendido no contexto de uma renovação da missão da Igreja. Francisco pensa que uma Igreja que quer sair de si mesma e alcançar a todos deve adaptar o modo de pregar. Ele aplica um critério proposto pelo Concílio Vaticano II muitas vezes esquecido e ignorado: a 'hierarquia das verdades'".
A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 21-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Victor Manuel Fernández, reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina, é uma das primeiras nomeações de Jorge Mario Bergoglio, elevado em maio passado à dignidade de arcebispo. Teólogo de prestígio, tem uma ligação direta com o papa, que ele vê como um valioso "consultor". Em 2007, na conferência dos bispos latino-americanos em Aparecida, foi Fernández que o ajudou a escrever aquele documento final que sancionou a ideia de Igreja do futuro papa.
Eis a entrevista.
O anúncio do Evangelho acima de tudo. É aí que reside a revolução de Francisco?
O papa nos convida a reconhecer que, muitas vezes, os preceitos da doutrina moral da Igreja são propostos fora do contexto que lhes dá significado. O problema ocorre quando a mensagem que a Igreja anuncia se identifica apenas com esses aspectos que não manifestam inteiramente o próprio coração da mensagem. Enquanto uma pastoral missionária não pode ser obcecada pela transmissão desorganizada de um conjunto de doutrinas a serem impostas com a força da insistência. Por exemplo, se um pároco, no ano litúrgico, fala dez vezes de moral sexual e apenas duas ou três vezes do amor fraterno ou da justiça, há uma desproporção. Igualmente, se se fala frequentemente contra o casamento entre homossexuais e pouco da beleza do matrimônio. O Evangelho convida a responder ao amor salvífico de Deus, reconhecendo-o nos outros e em si mesmo, a fim de buscar o bem de todos. Esse convite não deveria ser posto em segundo plano por nenhum motivo. Se o convite não brilhar com força e apelo, a moral da Igreja corre o risco de se tornar como um castelo de cartas. É aí que reside o maior perigo.
O o papa Bergoglio lhe lembra?
Ele é diferente de todos os papas que o precederam. Certamente, ele pode ter características de um ou de outro, mas sempre na estrada aberta pelo Concílio. Ele permanece fora das discussões teóricas sobre o Concílio, porque está interessado em continuar o espírito de renovação e reforma da Igreja que vem do próprio Concílio. Nesse sentido, ele se coloca de fora de toda obsessão ideológica, sem medos ou reviravoltas, com a intenção de levar a Igreja para fora de si mesma a fim de chegar a todos.
A relação entre Bergoglio e a presidente argentina, Kirchner, nem sempre foi fácil. É verossímil que o papa deseja um retorno na Argentina de um peronismo moderado que saiba se vincular à Igreja e às suas convicções?
Eu penso que a sua relação com a presidente Kirchner não foi interpretada corretamente. Alguns acreditaram que certas declarações das suas homilias eram ataques pessoais contra ela. Não é assim. Além disso, nenhum político pode dizer que tem ou teve Bergoglio como seu aliado político, seja de esquerda, seja de direita. Porque as suas palavras podem satisfazer hoje, mas amanhã podem ser lidas, ao contrário, como perigosos ataques. Eu penso que qualquer pessoa que tenha alguma forma de poder, mesmo eclesiástico, não pode deixar de sentir sobre si a "espora" de Bergoglio como uma pedra no sapato, porque ele é e será sempre o intérprete daqueles que não têm poder. No ano 2000, ele expressou um grande desejo seu: "Que o poder não seja um privilégio inexpugnável". E isso vale para um presidente, um governador, um homem de negócios, um cardeal e também para os membros da Cúria Romana. No entanto, há uma certa afinidade com o peronismo e isso tem a ver com dois fatos: o peronismo assumiu com força a Doutrina social da Igreja e os seus valores e compreendeu a cultura dos setores mais pobres da sociedade. Mas isso não significa que Bergoglio tenha sustentado algum poder político.
Francisco busca o essencial. E diz ser próximo da corrente mística de Louis Lallemant e Jean-Joseph Surin que prega a necessidade de "despojar-se" para chegar a Deus. É esse o caminho que Bergoglio pede para se seguir hoje?
O seu amor não é pelo sacrifício como fim em si mesmo, nem uma obsessão pela austeridade. Trata-se de um "despojamento" interior, uma renúncia de si mesmo, a ponto de colocar Deus e os outros no centro da própria vida. Isso também tem um significado pastoral, porque implica estar mais próximo dos pobres, dos seus limites, da sua condição social, das suas humilhações. Por isso, Bergoglio não gosta dos sacerdotes príncipes ou dos eclesiásticos que amam as férias muito caras, os jantares nos melhores restaurantes, as joias de ouro e de prata ostentadas nas roupas, as contínuas visitas a pessoas poderosas... Tudo o que é mundanidade espiritual que envenena a Igreja.
Joseph Ratzinger disse que a verdadeira reforma da Igreja não está nas estruturas, mas sim no coração. Roma aguarda a reforma da Cúria. Qual é a ideia de reforma de Francisco?
As duas coisas juntas, porque a sua ideia de reforma não é ideal, mas encarnada. Sem dúvida, ele pensa que uma reforma exterior das estruturas não se sustenta sem um espírito e um estilo de vida adequado. Eu acredito que o mais importante não é a simplificação da estrutura da Cúria, mas sim o desenvolvimento de outras formas de participação (sínodos, conferências episcopais, consulta dos leigos...), que nos últimos anos foram mais formais do que reais. Sem dúvida, esse desenvolvimento requer que alguns setores da Cúria deixem de ser excessivamente jurídicos, inquisidores e ao mesmo tempo majestosos, correndo o risco de se tornarem autorreferenciais. Algumas vezes, eu ouvi personalidades da Cúria dizerem "nós" sem incluir toda a Igreja, nem mesmo o papa, mas apenas a si mesmos.
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''Chega de padres que vivem no luxo. Esta é a revolução de Francisco''. Entrevista com Victor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU