03 Outubro 2017
Jornalista explica por que prevaleceu a percepção de que a desigualdade caiu no Brasil nos últimos anos. Mostra que houve ganhos em todas as classes, em parte derivados da conjuntura internacional, mas que isso não afetou a concentração de renda. Afirma que debate precisa incluir reformas nos impostos, entre outras medidas.
O artigo é de Vinicius Torres Freire, jornalista, publicado por Folha de S. Paulo, 01-10-2017.
Provoca sentimentos ambivalentes a afirmação de que a desigualdade de renda no Brasil deste século, nos anos petistas em particular, não se alterou.
Por um lado, contrasta com pesquisas de opinião pública, estatísticas e estudos segundo os quais a vida material melhorou no país quase inteiro.
De outro, contribui para a tese de que algo se moveu a fim de que o país continuasse o mesmo. Nos anos petistas, de acordo com essa hipótese, o governo se valeu da conjuntura econômica favorável para promover a "pax luliana": o apaziguamento de conflitos e a satisfação de interesses de classes variadas sem bulir com a espinha do esqueleto socioeconômico.
O esclarecimento de um conceito simples dissolve parte da confusão. O rendimento de todas as classes aumentou de modo quase contínuo de 2004 a 2014, algo inédito provavelmente desde a ditadura militar (não há dados precisos anteriores a 1976). O bolo cresceu e, claro, as fatias também, mas na mesma proporção: a renda de cada grupo aumentou, mas a desigualdade permaneceu a mesma.
No entanto, ideias dominantes na política —da esquerda à direita— e no debate acadêmico sugeriam que o Brasil encontrara uma via pacífica de redução da desigualdade.
Tal percepção talvez tenha predominado no debate público porque explicava a queda da iniquidade por meio de fatores social e politicamente menos conflituosos, além de legitimar o partido no poder e grupos associados a ele, de sindicatos a empresários. Deu-se ênfase aos efeitos positivos e incrementais da diminuição da desigualdade educacional entre trabalhadores e do aumento das transferências sociais dirigidas aos mais pobres, como o Bolsa Família.
Ficaram à margem pesquisas e debates sobre a concentração de rendimentos e patrimônio nos grupos mais ricos, sobre a rentabilidade do capital (empresas, aplicações financeiras, imóveis) e sobre as iniquidades provocadas pela cobrança desigual de impostos.
Houve pouco debate sobre os motivos das diferenças de atributos individuais, como o nível de educação, ou de discriminações (por gênero ou cor, por exemplo), fatores de explicação de desigualdades nos estudos predominantes. Por exemplo: que tipo de mercado, relações de poder e de governo produzem diferenças de acesso à educação, a subsídios estatais e ao mercado de trabalho?
Menos ainda se discutiu como o próprio funcionamento desta nossa peculiar economia de mercado produz desigualdade, embora houvesse análises críticas sobre empresas e corporações que se beneficiam de favores oficiais, legais ou não (debate explosivo desde o 2014 da Lava Jato). O esquecimento desses termos do problema contribuiu para disseminar ilusões sobre ricos e pobres nos anos petistas.
Mas houve melhorias. A economia (o PIB) cresceu no ritmo de cerca de 1,3% ao ano entre 1992 e 2002. De 2002 a 2012, a 2,6%. O consumo das famílias per capita crescia bem mais rápido nesse último período, o do auge dos anos petistas: 3,15% ao ano. O rendimento dos 40% mais pobres aumentava em padrão ainda mais acelerado, a 6,4% ao ano. Os domicílios pobres eram 27% das casas do país em 2002 e 10% em 2014.
O salário mínimo elevou não só rendimentos do trabalho mas também o valor do piso dos benefícios da Previdência e da assistência social. Cresceu 4,5% ao ano no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), 5,6% no do petista Lula (2003-2010) e 4,8% ao ano em todo o período do PT (2003-2016). Passou do equivalente a 31% da renda média nacional em 2002 para mais de 40% desde 2010.
O rendimento dos 10% mais pobres mais que dobrou (foi multiplicado por 2,6 vezes) de 2003 a 2014. O rendimento intermediário (da fatia entre os 40% mais pobres e os 40% mais ricos) dobrou. Nesses anos, o crédito bancário saltou de 23% do PIB para 54%.
O consumo de bens duráveis, como eletrodomésticos ou carros, cresceu bem mais do que o acesso à infraestrutura social (como esgoto), processo que ficou plasmado em imagens caricaturais dos anos Lula, como a do "pobre que compra TV de tela plana" e a da "inclusão pelo consumo".
Preços de bens como carros, motos e máquinas de lavar roupa estagnaram ou caíram de 2002 a 2012. Celulares e TVs ficaram cerca de 36% mais caros. Trata-se de aumentos inferiores ao da alta média de preços. Nesses anos, a inflação acumulada foi de 50%, ao passo que os rendimentos médios (medidos pela Pnad) cresceram 70% em termos reais (além da inflação).
O preço médio de serviços como planos de saúde e creche, por exemplo, cresceu mais de 100%. Os serviços pessoais (de salões de beleza a costureiros, passando por cartórios, despachantes e serviços bancários) encareceram 129%.
As razões por trás dessas mudanças de preços relativos e do aumento do consumo se deveram, em parte importante, à conjuntura econômica internacional excepcionalmente favorável.
O tão falado "boom de commodities", derivado do crescimento econômico mundial acelerado, em especial o da China, teve influência forte na expansão da economia brasileira e nos salários.
A alta nos preços das exportações brasileiras provocou mudanças em cadeia na economia. O real se valorizou (o "dólar ficou barato"), as importações aumentaram. Os preços de produtos industrializados baixaram; os serviços ficaram mais caros.
O setor de serviços, que então cresceu relativamente mais depressa, emprega muita mão de obra, de resto de menor qualificação. A conjuntura internacional, portanto, favoreceu o aumento do emprego dos mais pobres.
Enfim, houve aumento da demanda de trabalho menos qualificado, mais oferta de "capital humano" qualificado (pessoas com mais anos de estudo) e, aparentemente, menos demanda relativa desse trabalhador mais treinado. Nesse balanço de oferta e procura, o salário de trabalhadores menos qualificados cresceu mais depressa.
No resumo muito estilizado dessa ópera, a desigualdade caiu devido às transformações no mercado de trabalho —derivadas, entre outros fatores, da conjuntura econômica mundial, de melhorias educacionais e do crescimento menor da população—, à extensão da cobertura das transferências sociais (mais gente passou a receber benefícios sociais) e a aumentos do salário mínimo.
Ou melhor, a desigualdade caiu segundo os estudos prevalecentes até 2014, quando apareceu a nova geração de pesquisas de desigualdade. Tais trabalhos indicam que a redução da iniquidade de renda ocorreu, se tanto, entre os 80% ou 90% mais pobres do país. Isto é, se desconsiderada a concentração de renda no topo, nos 10% mais ricos.
As pesquisas recentes sobre a concentração de renda no topo da distribuição ainda não exploraram a origem dos rendimentos dos mais ricos no Brasil. Não há estudos de peso sobre o patrimônio (imóveis, aplicações financeiras, empresas) nem dados suficientes para destrinchar a relação entre posse do capital e rendimentos.
Mas há estudos parciais sobre outros motivos de desigualdade.
Os impostos diretos (cobrados sobre a renda e o patrimônio, como o Imposto de Renda e o IPTU) são ligeiramente progressivos (reduzem a desigualdade); os impostos indiretos (como aqueles sobre o consumo) aumentam a desigualdade (levam cerca de 30% da renda dos 10% mais pobres e 12% da renda dos 10% mais ricos, pelas pesquisas domiciliares).
A América Latina, Brasil inclusive, é a região que mais cobra impostos indiretos, mais primitivos e regressivos. Além do mais, pagamentos do governo, como salários e aposentadorias de servidores com valores elevados, contribuem para a desigualdade.
Há outros motivos suspeitos e de apuração mais complexa. Quais regras, formais e informais, favorecem a concentração de renda? Grandes empresas e negócios rurais, por exemplo, recebem crédito subsidiado (ou seja, a juros mais baratos que os de mercado). A partir de 2010, em particular, houve redução de impostos para empresas e assalariados com altos rendimentos e que recebem por meio de empresas (ditos pejotizados).
Por que no Brasil os preços dos bens de consumo e o retorno do capital (isto é, as taxas de juros e a rentabilidade das empresas) são ou parecem mais altos do que em outros países? Quanto disso se explica pela concentração da posse do capital e, em geral, pela falta de competição (inclusive com o exterior)?
A desigualdade no mercado de trabalho, por exemplo, não se limita a salários. Há diferenças regionais. No Nordeste, cerca de 50% dos trabalhadores estão no mercado informal ou sem rendimento (sem carteira, por conta própria ou no auxílio familiar); no Sudeste e no Sul, são 34%. No Nordeste, a proporção de pessoas ocupadas em relação à população em idade de trabalhar é de 46%; no Sul e no Sudeste, de 57%. São indícios fortes de exclusão do mercado, um fator de desigualdade e pobreza.
Alterar a composição dos impostos (de indiretos para diretos), tornar mais justas as transferências líquidas do governo (salários e benefícios de servidores, reduções de impostos para mais ricos) e tributar heranças são medidas que podem mudar um tanto o padrão da desigualdade.
No entanto, provocam embate sociopolítico forte (o mero tabelamento dos salários no Judiciário é uma guerra, note-se), e talvez por isso sejam negligenciadas no debate e na política.
Deve-se lembrar, contudo, que mudanças na tributação (na composição ou no total da carga tributária) raramente são um jogo de Robin Hood, mera transferência automática sem consequências econômicas negativas (por exemplo, variações indesejáveis nos estímulos econômicos para conseguir uma renda mais elevada; variações nos preços, no nível de poupança e investimento, na eficiência).
É preciso mais do que reformas nos impostos, na iniquidade dos pagamentos do Estado, no acesso ao mercado de trabalho, na oferta de oportunidades sociais iguais, na competição econômica. As economias dos países hoje ricos cresceram muito com aumento contínuo, acelerado e progressivo da carga tributária, entre os anos 1940 e 1970 –é verdade que ao custo da lembrança de guerras e sob ameaça de revoluções sociais.
Afinal, o grupo dos mais ricos do país, com apenas 1% dos brasileiros, leva em torno de 25% dos rendimentos, de acordo com estudos independentes dos pesquisadores Pedro Souza (Ipea) e Marc Morgan Milá (do instituto liderado pelo francês Thomas Piketty ).
Se fosse possível reduzir a concentração de renda nesse topo a um nível japonês ou francês em favor dos 50% mais pobres, o rendimento dessa metade da população quase dobraria.
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Debate superficial ajudou a disseminar ilusões sobre queda da desigualdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU