06 Setembro 2017
Em 5 de novembro de 2015 aconteceu o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão em Mariana (MG), gerida pela mineradora Samarco. O desastre deixou 19 mortos, centenas de desabrigados e um rastro de destruição química ao longo de mais de 600km por toda a bacia do Rio Doce, chegando ao litoral capixaba. Pouco antes, no último dia 7 de agosto, de se completarem dois anos do maior desastre ambiental da história brasileira, a Justiça Federal suspendeu o processo criminal contra mineradora e acionistas.
A reportagem é de Raphael Sanz e publicada por Correio da Cidadania, 04-09-2017.
O processo em questão envolve a Samarco e suas proprietárias (Vale e BHP Billiton), e ainda inclui 21 pessoas ligadas ao projeto acusadas de homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) pelas 19 mortes produzidas. Entre estes 21 acusados estava o engenheiro responsável pelos estudos da barragem do Fundão, contratado da VogBr – a mesma empresa que fez os estudos relacionados ao empreendimento da Belo Sun, próximo da usina hidrelétrica de Belo Monte, como veremos a seguir.
A decisão não interrompe processos civis, que tratam de reparações ambientais e indenizações, mas vale para os processos criminais supracitados. O juiz do caso, Jaques de Queiroz Ferreira (da comarca de Ponte Nova, MG) afirmou para a imprensa que “graves questões podem implicar na anulação do processo criminal”.
Segundo informações também divulgadas na imprensa, podemos supor quais seriam essas “graves questões”. Diz a tese de defesa do então presidente da Samarco, Ricardo Vescovi e seu braço direito, Kleber Terra, que foram usadas provas ilícitas durante o processo, entre elas o uso de escutas telefônicas fora de prazo autorizado pela Justiça, feito pela Polícia Federal e Ministério Público Federal. Por sua vez, o MPF afirmou em nota que as acusações “não procedem” e que as escutas foram feitas dentro do prazo estipulado.
O jornalista Altamiro Borges classificou como “cínica” a decisão da Justiça Federal em acatar aos pedidos da defesa. “As incontáveis provas sobre a ação criminosa da mineradora não foram suficientes para convencer os juízes, que preferiram acreditar nos advogados de Ricardo Vescovi e Kleber Terra, chefões da Samarco à época da tragédia. Com isso, os dois executivos, acusados de homicídio com dolo eventual, seguirão impunes”, escreveu em seu blog no dia 8 de agosto.
Também o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) desaprovou a decisão da Justiça Federal. Em entrevista a Agência Brasil, o movimento criticou o Poder Judiciário que “se preocupa cada vez menos com causas populares e escancara para qual lado pende sua seletividade”. Nos dias subsequentes à decisão, em Governador Valadares (MG), cidade onde vivem pessoas afetadas pela tragédia, ainda ocorreu uma manifestação com centenas de participantes, apoiada pela OAB local, em repúdio à decisão judicial.
Entrevistada pelo Correio da Cidadania, Maria Júlia Andrade, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, afirma que a notícia foi recebida com muita tristeza por sua organização. “O que vemos é que as negociações, e mesmo as decisões, estão sendo mediadas pela empresa. Sobre o que despontou como contraponto, que foi a atuação do Ministério Público Federal, tanto na parte ambiental quanto na criminal, percebemos que pode não dar em nada”, lamentou.
Andrade afirma que a decisão não entra no mérito de discutir nada do que o MPF apresentou e ainda ignora questões já comprovadas como o histórico de pequenos acidentes das barragens e os inúmeros indícios de negligência.
“A barragem do Fundão apresentou problemas por anos a fio, inclusive tendo leves rupturas em outros momentos e liquefação acima do permitido – o que gerou uma série de diligências no Ministério Público do Trabalho, pois muitos trabalhadores denunciavam aquilo. O MP acompanhou e gerou condicionantes. O que vimos foi uma barragem que por muitos anos já apresentava problemas e seu rompimento não foi uma surpresa para os trabalhadores, o que gera uma dúvida ainda maior se não houve negligência. E nesse contexto, temos de lembrar que são 19 mortos – há ainda uma mãe que demanda que sejam 20 os mortos, já que estava grávida e sofreu um aborto em decorrência do acidente. E para não entrar na complexidade da discussão do Rio Doce e do comprometimento com essa bacia hidrográfica, é preciso pensar o que significam essas mortes. Vão completar dois anos do desastre e a sensação é que as coisas estão paradas ou andando pra trás”, declarou.
Ela pondera que a decisão de suspender o processo criminal não afeta diretamente os processos civis por estarem andando em paralelo, mas sinaliza preocupação quanto ao efeito na correlação de forças dessa disputa. “De toda forma isso dá poder e legitima a empresa e seu discurso, de que não há como condená-la por conta de um suposto abuso ou distorção do MPF, e reforça o discurso de que eles não queriam que isso tivesse acontecido e assim por diante”.
O discurso da empresa é algo que marca esta tragédia desde o início. Logo nos primeiros dias do rompimento das barreiras, a disputa narrativa estava em torno de o evento haver sido um “desastre natural” ou algo “provocado pela atividade mineradora”. O discurso da Samarco, muito bem encaixado nos grandes meios de comunicação, dava conta de um “acidente”, enquanto organizações como a de Maria Júlia e pesquisadores independentes como os biólogos do grupo GIAIA (entrevistados por este Correio 8 meses após o desastre) diziam ser uma “tragédia provocada por ação humana” e pediam a devida investigação para o caso.
Maria Júlia acusa a Samarco de dissimulação. “Essa frase (estamos fazendo todo o possível) é o que eu escuto desde que houve o rompimento”, afirma. Ela conta que a empresa diz isso para a população, especialmente em Mariana, no epicentro da tragédia.
“Vejo como isso deixa a população na condição de refém desse modelo econômico em uma região que é completamente dependente economicamente da mineração e agora está desesperada para que a empresa volte, uma vez que o município de Mariana vive situação de colapso econômico”, argumenta. Sua tese é que este poder econômico bruto sobre a região, somado a facilidades judiciais, pode fortalecer a mineradora de tal modo a fazer com que tudo acabe em pizza.
Apenas 16 dias depois da decisão judicial favorável a Samarco e comparsas, em 23 de agosto o Governo Federal anunciou a extinção da Reserva Natural do Cobre, conhecida como Renca, e não se preocupou em ocultar a razão desta ação. Devido ao mal recebimento da notícia pela opinião pública, o Governo recuou e novamente, na segunda-feira (28), soltou novo decreto nos mesmos termos do anterior.
A área com quase quatro milhões de hectares, porção territorial correspondente ao estado do Espírito Santo, localizada entre o sudoeste do Amapá e o nordeste do Pará, será destinada à atividade mineradora. Rica em ouro, manganês, ferro e tântalo, a reserva natural e indígena teve sua extinção proposta pelo Ministério de Minas e Energia em março passado.
Na ocasião, a extinção da Renca foi apresentada pelo ministro de Minas de Energia do Governo Temer, Fernando Coelho Filho, de antemão, em Toronto (Canadá). Curiosamente, por conta deste evento, investidores e empresas de mineração canadenses souberam da medida antes da sociedade civil brasileira e outras que compõem o famigerado “pacotão da mineração” – que ainda inclui a criação da Agenda Nacional de Mineração e outras iniciativas para a ampliação do setor.
Entre as empresas canadenses advertidas com antecedência está a Belo Sun, exposta neste Correio, ainda em 2015, logo após a tragédia de Mariana (MG), como uma potencial “Samarco do Pará” pela professora Simone Pereira, coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará, além de praticamente ter sido descoberta pela colunista Telma Monteiro, quando tentava entrar no mercado brasileiro “às escondidas” .
“Eu me referi à implantação dessas bacias na Volta Grande do rio Xingu, que é o empreendimento chamado Belo Sun, no qual uma mineradora canadense vai usar cianeto na exploração do ouro na região. Há a possibilidade de um desastre similar ao de Mariana acontecer lá também. No estado do Pará, em todo o seu território, há uma intensa atividade de mineração. É o segundo em exploração mineral do país, atrás apenas de Minas Gerais. Temos aqui a maior mina de ferro do mundo, a de Carajás, onde existem várias barragens como esta que rompeu em Mariana. É uma preocupação constante”, denunciou a professora em 17 de novembro de 2015 a respeito do empreendimento que fica a 11km da usina hidrelétrica Belo Monte.
Empreendimento este que, como vimos no início desta matéria, também contou com o aval da VogBr, empresa de engenharia que prestou os mesmos serviços a Samarco no empreendimento de Mariana (MG). Os dados são do Movimento de Atingidos por Barragens.
Mas para além do empreendimento na Volta Grande do Xingu, a Belo Sun também está de olho no ouro e no ferro da Renca e de acordo com apuração da BBC Brasil o coordenador da comissão canadense reafirmou este interesse. Também afirmou que a “mineração faz bem ao meio ambiente” e atacou artistas e meios de comunicação que se puseram críticos ao modelo extrativista que está sendo discutido.
Ainda de acordo com apuração deste jornal, também na bacia do rio Tapajós (entre os estados do Pará e do Mato Grosso) é possível encontrar coincidências como essas: empreendimentos hidrelétricos em áreas antes protegidas por reservas naturais e indígenas, cuidadosamente situados próximos de zonas com potencial minerador. Zonas estas que de antemão já estariam sendo loteadas entre grandes mineradoras, segundos denúncias de comunidades, estudiosos e movimentos que atuam na região.
Maria Júlia Andrade explica a conjuntura a partir do atual momento que vive o Brasil e que traz como ingrediente principal uma sistemática perda de direitos e garantias, entre eles a aprovação de uma legislação ambiental mais frágil.
“Essa notícia ainda veio poucos dias depois de o Temer apresentar três Medidas Provisórias que vão regular todo o Código da Mineração, em 25 de julho. Um dos pontos mais absurdos dessa proposta está presente na emenda 790, do Código de Minas propriamente dito, em seu artigo 81b, que trata da questão da fiscalização; e acrescenta um novo artigo que diz que a fiscalização dos empreendimentos de mineração têm de ser feita com prioridade – o que é importante – mas que poderá ser feita a partir de amostragem. Ou seja, após o rompimento da barragem do Fundão, 19 mortos, incontáveis impactos ambientais e assim por diante, eles estão dizendo que a fiscalização pode ser feita por amostragem. E pensando ainda em toda esta gama de empreendimentos, o que vemos é a mostra de que não aprendemos nada”, concluiu.
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Enquanto Samarco fica impune governo só pensa em liberalizar Código de Mineração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU