20 Julho 2017
“O Papa emérito foi deliberadamente instrumentalizado. Com essa frase, não fazia referência a nada específico; referia-se à situação da situação da Igreja de hoje e do passado com a imagem de uma barca que não navega por águas calmas. O próprio Francisco chegou a dizer isso. Eu compreendo que esta imagem possa originar alusões ou despistes, mas por trás destas palavras não há nenhum ataque”. Com estas palavras dom Georg Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia e secretário de Bento XVI, tratou de esvaziar, em uma entrevista ao jornal italiano Il Giornale, as polêmicas provocadas pela mensagem enviada pelo Papa emérito ao funeral do cardeal Joachim Meisner, que faleceu há poucos dias.
A reportagem é de Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 19-07-2017. A tradução é de André Langer.
Nessa mensagem, para recordar o seu amigo, Joseph Ratzinger escreveu: “O que mais me comoveu é que o cardeal Meisner viveu, neste último período de sua vida, com uma certeza cada vez mais profunda de que o Senhor não abandona a sua Igreja, embora às vezes a barca tenha se enchido até quase naufragar”. Palavras que foram imediatamente interpretadas como um ataque ao seu sucessor, o Papa Francisco.
As referências à barca no mar agitado e do Senhor que parece dormir em vez de guiá-la atravessam dois mil anos de história da Igreja. O episódio evangélico é contado por Marcos (4, 35-41): os discípulos, aterrorizados, encontram-se em uma barca em meio a uma tempestade no mar, e Jesus, que está com eles, está dormindo profundamente na popa, tranquilo. Os discípulos acordam-no e quase lhe repreendem a sua atitude. Ele ordena que o mar e o vento se acalmem e imediatamente vem a bonança. O objetivo do milagre não é tanto ressaltar o poder do Filho de Deus, mas suscitar a fé em seus seguidores, reprovando neles o medo, mesmo que o Mestre estivesse na barca.
É possível recordar, a esse respeito, as palavras de Paulo VI, pronunciadas em dezembro de 1968 aos membros do Seminário da Lombardia. Isso aconteceu poucos meses após a publicação da Encíclica Humanae Vitae, que representou o momento de maior isolamento para o Papa Montini, que era atacado até mesmo por seus amigos. Ele disse: “Muitos esperam do Papa gestos clamorosos, intervenções enérgicas e decisivas. O Papa não considera dever seguir outras linhas senão a confiança em Jesus Cristo, que se preocupa com sua Igreja mais do que ninguém. Será Ele quem vai acalmar a tempestade. Quantas vezes o Mestre repetiu: ‘Condidite in Deum. Creditis in Deum, et in me credite’. O Papa será o primeiro a seguir este mandamento do Senhor e que se abandona, sem angústia ou ansiedades inoportunas, ao jogo misterioso da invisível mas certa assistência de Jesus à sua Igreja. Não se trata de uma espera estéril ou inerte, mas de uma espera vigilante na oração”.
Esta mesma concepção de que não é o protagonismo do Papa que guia a Igreja surgiu muitas vezes durante os oito anos do Pontificado de Bento XVI. Basta recordar as palavras de Ratzinger em seu discurso durante a última audiência na Praça São Pedro, no dia 27 de fevereiro de 2013, pela manhã, um dia antes do início da sede vacante após sua renúncia: “Vejo a Igreja viva! A Igreja não é minha, não é nossa, mas do Senhor, que não a deixa afundar: é Ele quem a conduz...”.
O mesmo olhar de fé encontra-se no Papa Francisco, que, durante o Angelus de 10 de agosto de 2014, ao comentar a passagem evangélica de Marcos, disse: “Quantas vezes acontece conosco a mesma coisa! Sem Jesus, distantes de Jesus, nos sentimos com medo e pouco adequados a ponto de pensar que não vamos conseguir. Falta a fé! Mas Jesus sempre está conosco, às vezes escondido, mas presente e pronto para nos sustentar. Esta é uma imagem eficaz da Igreja: uma barca que deve enfrentar as tempestades e que, às vezes, parece a ponto de afundar. O que a salva não são as qualidades ou a coragem dos seus homens, mas a fé, que permite caminhar inclusive na escuridão, em meio às dificuldades. A fé nos dá a segurança da presença de Jesus sempre ao nosso lado, da sua mão que nos segura apesar das nossas limitações e das nossas fragilidades”. Palavras quase idênticas àquelas que agora repetiu o Papa emérito a propósito da barca que está quase se afundando.
Compreende-se, então, a instrumentalização das palavras utilizadas pelo Papa emérito na mensagem para o funeral de Meisner, como se fossem contra o seu sucessor. E, sobretudo, compreende-se que esta instrumentalização revela uma falta de conhecimento sobre o magistério de Bento XVI, assim como, no fundo, a falta de um olhar de fé. E parece, além disso, pouco confiável a hipótese de que o Papa emérito não seja o autor daquela mensagem para o seu amigo cardeal.
Surgiu nas últimas horas mais uma instrumentalização, mas agora de seu irmão Georg, que tem 93 anos e foi diretor do coro de Regensburg. Para evitar equívocos, devemos afirmar que o resultado da investigação feita pela diocese durante os últimos anos são terríveis: 547 crianças foram vítimas de maus-tratos e 67 delas sofreram abusos sexuais, em alguns casos repetidos. Os episódios referem-se a um arco temporal que vai desde os anos 1950 até a década de 1990. Os abusos foram verificados na escola em que estudavam os meninos do coro.
O caso surgiu em 2010, no auge do escândalo da pederastia no país, e o que suscitou muita agitação foi que o irmão do então Pontífice tivesse dirigido durante 30 anos o coro Regensburger Domsplatzen. Agora, a comissão de investigação concluiu seus trabalhos e, na terça-feira, 28 de julho, publicou o resultado final. Nenhuma das acusações de abusos sexuais foi contra Georg Ratzinger que, em 2010, pediu perdão por algum excesso de raiva, admitindo que havia dado algum tapa, assim como por não ter percebido a gravidade do que acontecia dentro da escola. O advogado das vítimas disse que Georg Ratzinger não podia não saber, razão pela qual teria de alguma maneira acobertado o que estava acontecendo. Será preciso esperar para ler atentamente as declarações das vítimas, mas em 2010 o irmão de Bento XVI declarou que não sabia de nada sobre abusos de natureza sexual.
Seria preciso, portanto, ter maior cautela: é evidente que tanto em 2012 como agora o nome de Georg Ratzinger represente uma notícia. Mas associar esse nome a abusos sexuais nas manchetes (embora sejam formalmente corretas) dos meios de comunicação parece sugerir que ele teve alguma responsabilidade nos mesmos abusos. Responsabilidade que, pelo contrário, não existe.
É risível (e indica o nível a que se chegou com a instrumentalização) a patética intenção daqueles que destacaram a “coincidência” temporal entre a mensagem de Bento XVI para o funeral de seu amigo Meisner e a publicação dos resultados da investigação sobre os abusos em Regensburg. De acordo com o típico estilo ‘complotista’ estes dois fatos têm relação, embora ninguém tenha apresentado nenhum indício real de que exista algum nexo. Eles dão a entender que o segundo acontecimento está relacionado com o primeiro, como se se pudesse tratar de uma “contra-ofensiva” de caráter “bergogliano” contra os resistentes “ratzingerianos”.
Também devemos remover as intenções daqueles que pretendem (com frequência nos últimos dias) enfatizar o alcance dos casos relacionados com supostos abusos de que é acusado o cardeal George Pell e a suposta falta de atenção dada ao fenômeno de Regensburg em 2010 por parte do cardeal Gerhard Ludwig Müller, para utilizá-los nas lutas intestinas da cúria romana.
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Os irmãos Joseph e Georg Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU