03 Julho 2017
Eles se dedicam a encontrar padrões nas novas tecnologias que vão ditar nossa forma de viver daqui a algum tempo. Nessa área de trabalho, não há espaço para falhas. Eles são os futuristas.
“Então você realmente acredita que alguém saudável, em sã consciência, vá querer arrancar seu próprio braço para implantar um robótico?”, pergunto sem querer parecer debochado ao entrevistado do outro lado da linha. O jovem tem 34 anos, voz vibrante e, vez ou outra, busca no português a tradução para uma expressão em inglês. “Claro. E vão trocar também olhos, ouvidos e outras partes do corpo. Isso vai acontecer em 10, 15 ou 20 anos. Vamos estar vivos para ver”, diz ele, com a animação de quem talvez cogitasse implantar um braço cibernético, mais forte que nosso de carne, osso e músculo. “Uau”, digo. “Isso é tão Black Mirror”.
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O tema é quase ficção científica, como a série futurista da Netflix. Mas o trabalho de Michell Zappa, um sueco que roda o mundo em busca de inspiração, e aprendeu um ótimo português no Brasil, tem os dois pés calcados na realidade. Ele prevê o futuro. Ou, em suas palavras, procura “padrões nas tecnologias emergentes que apontem como será a realidade no curto, médio e longo prazos”. Ele é um futurista, uma classe de profissionais (ou seriam pensadores?) que se dedicam a projetar a sociedade de amanhã com abordagem científica – nada de esotérico.
E para quê? De Milão, onde mora atualmente, Zappa mantém uma empresa que é uma espécie de consultoria – ele prefere chamar de plataforma. Outras companhias o contratam para fornecer estudos de tendências futuras, não imediatas, em segmentos específicos. “Estamos realizando pesquisas para um hospital de Toronto, no Canadá. Eles querem montar uma unidade e precisam saber o que existirá de equipamentos de saúde no futuro para que calculem melhor o aproveitamento de espaço”, exemplifica. “Já fizemos trabalho relacionado a pagamentos para a Visa”.
Assim, ele ganha a vida – afinal, pelo menos no curto prazo, todo mundo tem contas para pagar. Mas há um sentido muito mais profundo em enxergar o amanhã. Talvez quem o melhor tenha definido seja o psicólogo norte-americano Philip Zimbardo, autor de The Time of Paradox (algo como “A era do paradoxo”): devemos viver um presente levemente hedonista e ter uma noção de futuro altamente responsável. “Saber para onde o mundo vai é fundamental para criar estratégias para o que chamamos de ‘consequências inesperadas’ da tecnologia. [Henry] Ford previu a popularização do carro, mas ninguém previu o trânsito”, conclui Zappa. Zimbardo assinaria embaixo.
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Pensar no amanhã não é uma exclusividade dos millennials, essa geração forjada na cultura de internet e para quem a tecnologia é simbiônica. Em 1970, o sociólogo norte-americano Alvin Toffler escreveu Choque do Futuro, livro em que compara o futuro a uma viagem de férias – porque se deparar com uma cultura diferente pode causar desconforto. O termo que ele usou foi future shock. A preocupação já estava lá. Só que tudo começou a ganhar uma aura mais pop na última década. Parte pelos temores do astrofísico Stephen Hawking sobre a destruição da humanidade pela inteligência artificial, parte pelo talento de Steve Jobs e sua Apple em estar um passo à frente de todo mundo e muito, mas muito mesmo, pela figura do inventor, escritor e futurista nova-iorquino Raymond Kurzweil.
“Ray Kurzweil? Pelo amor de Deus! Quando esse cara morrer vão construir uma estátua para ele. Seus seguidores são quase uma seita”, criticou certa vez Luli Radfahrer, professor-doutor em Comunicação Digital da USP e consultor de inovação, quando falávamos de transumanismo (a possibilidade de o homem se fundir com a tecnologia). Curiosamente, essa crítica lhe define bem. Kurzweil é esquisito, fala de um jeito engraçado, tem uma postura errada e perturba. Se os irmãos Coen ligassem uma câmera na sua frente, teriam um novo “Grande Lebowski”. Mas ele prevê o futuro como ninguém.
Em 1990, quando você nem sonhava em ter um smartphone, Kurzweil disse que gadgets como os celulares iriam ajudar a derrubar governos autoritários. Foi assim com a Primavera Árabe. Disse também que os computadores iriam bater os humanos no xadrez – Deep Blue, software da IBM, venceu o campeão russo Garry Kasparov em 1997. No fim da década de 1990, o engenheiro de formação apostou que nos comunicaríamos por voz com nossos aparelhos – Siri (da Apple), Alexa (Amazon) e a pesquisa oral do Google estão aí. Um levantamento de seu instituto diz que 89 de suas 108 previsões se concretizaram. As outras, ele defende, não estão erradas. Só não aconteceram ainda. Ninguém contestou muito.
Creia-se ou não em suas ideias, Kurzweil é o maior futurista da história. Por isso fez sentido o engenheiro, físico e escritor greco-americano Peter Diamandis tê-lo escolhido, em 2008, como sócio em uma escola que se dedicaria exclusivamente a “estudos futuros”, a Singularity University (SU), no coração hi-tech do mundo: o Vale do Silício, na Califórnia. Parece uma grande viagem, mas é coisa séria. O projeto conseguiu juntar o dinheiro do Google, a expertise da Nasa e o endosso de Kurzweil – seria uma espécie de Messi, Suárez e Neymar da pesquisa científica. Kurzweil é o Messi.
No prédio modernoso da SU, 80 sortudos participam do principal programa de estudos, o Global Solutions Program: projeto de dez semanas, com aulas das 9 horas às 22h30, seis dias por semana. São aulas sobre inteligência artificial, robótica, biotecnologia, nanotecnologia, engenharia espacial. Mas esquentar uma dessas 80 cadeiras é tarefa pesada, como entrar em Harvard ou no MIT. Os interessados passam por uma seleção rigorosa. O principal critério: capacidade de impactar positivamente um bilhão de pessoas em até dez anos. O candidato precisa ser aprovado unanimemente pelo corpo diretor da SU. Um brasileiro conseguiu. E foi além.
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O gaúcho Tiago Mattos, de 37 anos, é um gênio. Ele comanda a Perestroika, uma escola de atividades criativas, e a Aerolito, uma espécie de laboratório de futurismo e novas tecnologias. Em abril, deu um passo importante para se tornar o futurista de maior renome no Brasil. “Fui oficializado como faculty (professor) da Singularity University. Dentre os 110 nomes dessa categoria, sou o único sul-americano. E mesmo quando adicionamos os guest speakers [convidados para palestrar], há pouquíssimos nomes fora do eixo Estados Unidos—Europa”, diz.
Mattos luta ferrenhamente pela cultura do futurismo no Brasil. E para que ela chegue aqui da forma correta. “Apesar do crescente número de interessados em futurismo, temos um universo muito restrito de profissionais estudando o assunto com profundidade. Mas é importante dizer: isso tem muito menos a ver com a seriedade dessas pessoas – e muito mais com a falta de organismos que deem suporte a esses novatos. Por exemplo: há uma enorme confusão entre as diversas future studies [disciplinas que estudam o futuro]”, diz. Ele destaca que termos como coolhunting, pesquisa de tendências e futurismo são a mesma coisa. “Definitivamente não são”, destaca.
Ainda assim, Mattos vê gente daqui se destacando: Silvio Meira, Jacques Barcia, Francisco Barreto Araújo. “Sem dúvida, o maior futurista brasileiro se chama Miguel Nicolelis. Ao liderar projetos de interação homem-máquina, ele obrigatoriamente exerce também o papel de futurista, imaginando cenários e acelerando soluções para o amanhã”, explica. Nicolelis é médico. Ele e sua equipe mantêm um projeto chamado Andar de Novo. É quase sci-fi: desenvolvem implantes cerebrais que conversam com um computador e transmitem impulsos nervosos à roupa – um exosqueleto, na verdade – de pacientes com paralisia. Oito voluntários já recupararam parcialmente o movimento das pernas e tato graças ao projeto. Isso derrubou o queixo da revista “Scientific American”, que o elegeu um dos 20 cientistas mais influentes do mundo.
É uma linha. Há muitas outras. “Tenho o maior respeito, admiração e gratidão pela SU. Mas acho perigosíssimo esse viés monoteísta. A Singularity é apenas uma das muitas escolas que tratam do assunto”. Embora pensemos no Havaí apenas como um lugar legal para pegar ondas, a Hawaian Research Center for Futures Studies, por exemplo, é mais antiga (de 1971) que a SU e até mais respeitada no mundo. Também há iniciativas de peso em Israel, Canadá, Alemanha e Taiwan.
Ainda assim, imaginar o futuro é uma tarefa que escapa dos bancos de escola. Há algum espaço para o feeling. “Você observa um padrão que a tecnologia parece seguir, projeta isso com base nas necessidades da sociedade e pronto, tem uma receita? Nada disso. Tem um trabalho que é muito mais psicológico e cognitivo. E é aí que cabe o feeling do futurista. O humano nem sempre é lógico”, disse por e-mail Tim Wilterford, futurista docente na Ontario College of Art and Design. Lembrei novamente de Luli Radfahrer; “a mente humana tem muitas variáveis, Carlos”.
Não sejamos tão pessimistas: talvez você passe fácil dos mil anos. É o que garante o britânico Aubrey de Grey, um cientista que se especializou em estudar o envelhecimento. Com um visual de hippie setentista, ele decreta que o homem não morrerá mais “de velho”. Ou, pelo menos, terá um milênio para chamar de seu. “As terapias que estamos desenvolvendo para atacar os danos que levam ao envelhecimento não serão desenvolvidas nos próximos 20 anos e, sozinhas, não eliminarão o problema. O que elas provavelmente farão é nos dar uns 30 anos a mais, porque não serão perfeitas. Assim vamos ganhar tempo até uma nova versão das terapias, e por aí vai”, disse De Grey à “Folha de S.Paulo”. Para Mark Zuckerberg, o dono do Facebook, praticamente todas as doenças sérias terão cura até o fim do século 21.
“Na medida em que ciência e tecnologia avançam, temos uma chance de fazer até melhor”, postou Zuck no fim do ano passado. O tratamento será bem mais fácil. Talvez você imprima seus medicamentos em casa. “Em agosto de 2015, a FDA [órgão regulador sanitário nos EUA] aprovou um medicamento de epilepsia chamado Spritam e que é feito com impressoras 3D”, escreve Bertalan Meskó, médico, escritor e futurista húngaro, em seu blog de saúde.
Lembra o papo dos braços biônicos no início desta reportagem? O futurista mexicano Juan Enriquez diz acreditar em uma evolução programada: o Homo evolutis, que surgirá em 100 anos, poderá se adaptar a qualquer ambiente.
“Poderemos ter humanos modificados vivendo em Marte ou em um exoplaneta”, disse em um TedTalk de 2014. “Quando você esquece o celular em casa, você se sente angustiado (como se tivesse deixado um pedaço do seu corpo)? Tudo isso prova que já há uma conexão psicológica entre você e seu smartphone. Ela ficará ainda mais intensa, pois se transformará num wearable [dispositivo vestível, como relógios e óculos]. No médio prazo, esse wearable dará lugar a um implante (lente de contato, chip). E, mais para frente, numa vastidão de nanotecnologia que circulará pela nossa corrente sanguínea”, aposta futurista brasileiro Tiago Mattos.
Ray Kurzweil fala numa versão híbrida do cérebro humano. Em 2030, diz, teremos robôs minúsculos que entrarão pelos folículos capilares, chegarão ao cérebro e serão capazes de conectar o neocórtex cerebral com a nuvem. O seu cérebro acessará a internet. “Em 2030 estarei andando por aí e direi: ‘oh, ali está o [físico norte-americano] Chris Anderson; preciso pensar em algo inteligente para falar’. Meus 300 milhões de módulos no neocórtex não darão conta. Preciso de mais um bilhão. Eu poderei acessá-los na nuvem. Nosso pensamento será híbrido”.
Põe na conta: pessoas que vivem (e bem) até mil anos. Inevitável não pensar em cidades mais lotadas dos que um Inter 2 às 18 horas. Óbvio que elas, as cidades, precisarão ser bem mais inteligentes. “Os sistemas vão se integrar. Você usará um bilhete único que funciona no ônibus, metrô ou Uber [autônomo]. Esse sistema multimodal sabe para onde você está indo, qual forma de transporte será mais rápida. É uma combinação de ferramentas existentes. As cidades poderão aproveitar toda essa informação para se planejar melhor”. É a visão de Michell Zappa.
Mas não se decepcionem, fãs de Jetsons: os carros voadores e sem motorista estarão lá – na verdade, já até estão aqui. Para o futurista norte-americano de cabelos platinados e, por ironia, nome Gray Scott, em 2035, viajar será uma “experiência mágica”. Os carros autônomos servirão como cafés ou pequenos escritórios. “Você entrará em um carro autônomo e haverá alguns estranhos esperando por você”, diz. Além de aproveitar melhor a comutação, você estará mais seguro, já que algoritmos farão cada veículo conversar com o outro, zerando a quantidade de choques – o único risco será, basicamente, ter um veículo hackeado.
Muito trânsito em terra? Scott visualiza uma solução pelo espaço aéreo. “Em 2035 não estaremos falando de um carro voador, mas, sim, de um veículo mais leve do que o ar, que não terá asas. Esses veículos serão feitos de fibra de algodão e serão capazes de levantar voo na vertical. Talvez usem energia solar. Terão propulsores que permitem subir e descer e se movimentar em diferentes direções”, diz em um vídeo em seu site.
E, claro, há o hyperloop. Bilionários, via de regra, não curtem perder dinheiro. Do ponto de vista dos futuristas, faz sentido o sul-africano Elon Musk levantar algumas dezenas de milhões e investir outras no sistema de túneis de transporte de alta velocidade, seu Hyperloop One. Scott é um dos que acreditam na eficiência destes trens, capazes de percorrer longas distâncias a velocidades de centenas de milhas por hora. Ir de uma cidade a outra vai ser um pulinho.
No Go, a inteligência artificial já provou que é bem melhor do que os humanos. Mas a cognição humana é algo bem mais complexo do que o jogo de tabuleiro chinês, ainda que ele exija realmente raciocínio complexo. E é daí que surge uma cisão. Embora boa parte da comunidade científica rechace que os robôs terão capacidade de se emocionar ou pensar como os humanos algum dia, é quase unanimidade entre os futuristas de que isto acontecerá um dia.
Mude Ian Pearson de profissão e você terá o cineasta Spike Jonze. É que o futurista desenha é quase a reprodução do que o diretor criou no filme Ela, em que o protagonista (interpretado por Joaquin Phoenix) se apaixona por um programa de computador. “Muitos [dos robôs e sistemas de IA] serão pensados apenas como servos, mas muitos terão níveis avançados de inteligência e as pessoas formarão vínculo emocional com eles”, descreve Pearson em seu blog de apostas sobre o futuro, o Futurizon.
Na visão do norte-americano, os robôs terão sentimentos comparáveis aos humanos e, portanto, faz sentido uma discussão sobre escravidão das máquinas – que ele diz já ter começado, mesmos estas máquinas nem existindo hoje. “Esses robôs serão tão avançados que terão relações um com o outro, terão sua própria cultura. É bom estar preparado, mas não sabemos com certeza o que essas máquinas inteligentes e emocionais vão querer. Elas podem não querer o que nossa mente preconceituosa acha que irão querer”, filosofa.
Anote na agenda para cobrar depois: para Pearson, é provável que em 2050 os robôs tenham direitos e deveres legislados. E muito provavelmente com representação nos governos.
Para isso, não precisa de aposta de quem esquentou os bancos da Singularity ou que passou pelo MIT. O próprio Fórum Econômico Mundial ligou o alerta para milhões de empregos humanos substituídos por máquinas no curto prazo – 7 milhões até 2020. A tecnologia é exponencial e, dessa forma, é compreensível pensar em um cenário pior no futuro.
Ou, talvez isso nem importe tanto. “Pode ser que tenhamos uma renda universal. E, realmente, acho que pode ser uma boa ideia. Mas vamos continuar nessa trajetória de inventar novos postos de trabalho e vamos continuar nos tornando mais inteligentes, não apenas por meio da educação, mas iremos melhorar com a tecnologia”, diz Ray Kurzweil em um vídeo da série “Pergunta & Resposta” no canal da Singularity University no Youtube.
“Mas, nós vamos chegar a um ponto em que não vamos precisar de muito dinheiro. Teremos impressoras 3D que por centavos podem imprimir todas as coisas físicas de que você precisa. Não vamos precisar trabalhar para produzir estes produtos”, completa.
O futurista sueco Michell Zappa tem uma posição semelhante. Ele teoriza sobre novas formas de troca de trabalho e valores que não são ligadas necessariamente ao dinheiro. Para ele, a tecnologia pode levar a um futuro em que características como reputação sejam a moeda de troca oficial.
Com a Terra superpovoada, na visão de futurista como Gray Scott, e a capacidade de modificação humana para se adaptar a qualquer ambiente, teoria de Juan Enriquez, há que se pensar no espaço como uma barreira a ser quebrada (novamente ele, Elon Musk, já está na jogada com a sua startup espacial SpaceX).
“Até 2050, o espaço será um grande negócio em várias indústrias. O turismo espacial incluirá viagens suborbitais curtas até longas estadas em hotéis espaciais. Ou talvez na lua. Pelo menos para os ricaços”, escreve Ian Pearson. “Alguns destes veículos e destas estações espaciais serão utilizados para a ciência, alguns para o turismo, alguns para fins militares. O espaço será mais militarizado. Não esperamos que seja usado na guerra real, mas isso, honestamente, não dá para prever”, completa.
É uma posição muito semelhante a de Michell Zappa, que acredita ser “inevitável” o homem chegar a Marte, por exemplo. “Faz parte do imaginário e o homem sempre vai perseguir isso. Vejo a barreira mais como uma questão econômica e tecnológica – no passado era política e tecnológica”, defende. Mas, se a questão é grana, como resolver? “Minerando asteroides”, diz Zappa, botando um ponto final na conversa.
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Os homens que preveem o futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU