19 Junho 2017
Quando o Papa Francisco se encontrar com a chanceler alemã Angela Merkel, alguns poderão se surpreender com a ironia da mulher mais poderosa do mundo ao lado do chefe de uma igreja por vezes vista como dominada por homens. No entanto, para o próprio Francisco, lidar com mulheres poderosas não é novidade, desde a sua experiência na Argentina até os anos de papado.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 15-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando o Papa Francisco e a chanceler alemã Angela Merkel se encontrarem no sábado, será a quarta vez que os dois se veem em Roma. Para um líder a quem frequentemente se recomenda colocar mais mulheres em postos de comando dentro de sua própria casa, este encontro cimenta o fato de que, quando se trata de lidar com mulheres poderosas, o atual pontífice já tem uma longa experiência.
Como acontece entre o Vaticano e a maioria dos governos ao redor do mundo, às vezes Francisco e Merkel discordam em questões de política. Já quando o assunto é personalidade, o papa tem uma longa vivência em ver mulheres em cargos de comando.
Uma chefe de Estado não é novidade na terra natal de Francisco, que teve duas mulheres à frente do governo nas últimas cinco décadas. Ambas foram, antes, primeiras-damas.
Em 1974, depois da morte do marido, Juan Domingo Perón, Maria Estella Martínez – também conhecida como Isabelita Perón – tornou-se a primeira presidenta do mundo.
Durante o terceiro mandato de seu marido, iniciado em 1973, a ex-dançarina de cabaret era muito mais do que a terceira esposa do então presidente: os dois dividiram os votos nas eleições, com ela na qualidade de vice-presidente. Por esse motivo, quando o marido presidente faleceu em 1974, ela assumiu o poder, servindo até março de 1976, quando o comandante em chefe do exército, Jorge Rafael Videla, com uma junta militar, a derrubou.
A segunda esposa de Perón, Evita, nunca se candidatou, apesar das intenções do general, e morreu quando estava com 33 anos durante o segundo mandato dele.
O papa não chegou interagir diretamente com nenhuma deles: era apenas uma criança na época de Evita, e um jovem provincial jesuíta nos tempos de Isabelita. Mas, para o bem ou para o mal, gerações de argentinos, incluída a de Francisco, cresceram vendo os rostos delas nos jornais, e as políticas subsequentes do país foram influenciadas por ambas.
Em 2007, uma outra primeira-dama sucedeu o marido na presidência, mas dessa vez foi eleita para o cargo como o principal nome impresso nas cédulas: Cristina Fernández de Kirchner, que tomou as rédeas do país após Néstor Kirchner.
Fernández foi reeleita para um segundo mandato em 2011, administração concluída em 2015.
Durante essa presidência, Francisco era o arcebispo de Buenos Aires, e os dois tiveram uma relação tensa, em parte herdada da época de Néstor quando era presidente. Este rotulara o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio como o “líder da oposição”.
Frequentemente Fernández e Bergoglio entravam em colisão, e ela muitas vezes considerava as homilias do sacerdote, em que denunciava as crescentes desigualdades econômicas e sociais, a corrupção generalizada, o crescimento do crime organizado e a impunidade, como críticas abertamente dirigidas ao seu governo.
Os dois também tiveram opiniões diferentes sobre questões de moral, como o casamento homoafetivo (legalizado no país durante o primeiro mandato Cristina Kirchner), a contracepção e educação sexual nas escolas.
Todavia, quando ele se tornou papa, ambos puseram de lado as diferenças. Ele, porque temia a democracia da Argentina. Ela, em grande parte devido ao fato de que o seu inimigo de longa data de repente se transformara no líder mais querido do mundo.
Apesar de a América Latina ser frequentemente chamada – e não sem motivos – de uma região patriarcal (machista), com diferenças marcantes entre os sexos quanto a igualdade salarial e violência de gênero, isto não impediu de as mulheres alcançarem cargos de poder.
Em 2013, quando Francisco se elegeu papa, países vizinhos como Brasil e Chile também elegeram presidentas.
Desde então, Francisco vem lidando com mulheres poderosas, entre elas Angela Merkel, com quem já se esteve em maio de 2016, fevereiro de 2015 e maio de 2013, em particular para falar sobre o futuro da Europa e a atual crise migratória.
Há também Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, que viajou duas vezes para o Vaticano para ver o pontífice, em 2014 e 2016.
Ainda que faça, na verdade, parte de seu quintal, por assim dizer, desde o começo Francisco tem mantido um diálogo com a primeira prefeita de Roma, Virginia Raggi, do partido Movimento 5 Estrelas. Os dois se viram por duas vezes também no Vaticano, e depois de novo no centro de Roma em dezembro passado, quando Francisco se dirigia para a Piazza Mignanelli, em direção à extensão sudeste das Escadarias da Praça da Espanha recentemente renovadas, onde abençoou uma coroa de flores pendurada sobre a Coluna da Imaculada Conceição.
O tempo já mostrou que o pontífice argentino está disposto a pôr as diferenças de lado em favor daquilo que considera o bem comum, ou em um espírito de reconciliação. Ele é conhecido por construir pontes, e pelo que chama de a “cultura do encontro”.
Exemplos nesse sentido abundam, mas só para citar o mais recente com as mulheres: em maio do ano passado, o papa se sentou com um de seu (ex) críticos ferozes, no caso, Hebe de Bonafini, fundadora do movimento de direitos humanos Mães da Praça de Maio.
Em novembro passado, Bonafini teve uma reunião privada com a líder política italiana Emma Bonino, que na década de 1970 foi uma das principais vozes no movimento que levou à legalização do aborto no país.
A pauta deste bate-papo? Migrantes.
Seguidamente o pontífice fala sobre duas mulheres em particular que marcaram sua carreira durante os seus anos de formação.
Por um lado, há a Nona Rosa, sua avó por parte de pai, geralmente descrita por Francisco como o motivo pelo qual a família precisou emigrar da Itália para a Argentina. Antes de sair do país, ela se envolveu com o movimento leigo italiano Ação Católica.
Em 2015, nas audiências semanais às quartas-feiras, Francisco revelou que ainda guarda, em seu livro de orações diárias, a carta que a avó lhe escreveu na ocasião de sua ordenação. Dois anos antes, durante a Vigília de Pentecostes, o papa disse: “Recebi o primeiro anúncio cristão precisamente desta mulher, da minha avó! Tudo isso é muito belo! O primeiro anúncio em casa, com a família”.
Uma segunda mulher, não de sua infância mas de sua juventude, é Esther Ballestrino de Careaga, chefe de Jorge Mario Bergoglio, à época com 17 anos, em um laboratório onde ele trabalhava como químico antes de entrar para o seminário.
Natural do Paraguai, onde foi secretária do Partido Revolucionario Febrerista, Esther era uma socialista fortemente engajada, tendo fundado o primeiro movimento feminista do país nos anos 40.
Ela acabou sendo forçada a se exilar na Argentina, onde encontrou aquele que viria a ser o futuro papa.
Em conversa com Javier Cámara e Sebastián Pfaffen, autores de “Aquel Francisco”, o religioso reconheceu ter sido Esther Ballestrino quem lhe apresentou alguns livros do Partido Comunista.
A pedido dela, Bergoglio chegou a esconder alguns destes livros durante o golpe militar que tirou do poder Isabelita. Se tivesse sido encontrado com estas obras, Bergoglio teria sido morto pelo regime.
Quando o papa foi ao Paraguai em 2015, ele se encontrou com as duas filhas de Ballestrino, Ana María e Mabel Careaga. Falando sobre o encontro com o papa, elas disseram que ficaram surpresas, pois Francisco teria dito: “A mãe de vocês me ensinou a pensar”.
Ana María, que tinha apenas 16 anos na época da Guerra Suja da Argentina, foi sequestrada pelos militares, mas com a ajuda de Bergoglio sua mãe conseguiu libertá-la. A jovem se exilou, mas a ex-chefe do papa ficou para trás e a acabou sendo levada e morta.
“Ele nos contou que muitas das suas lutas e muitos dos seus compromissos são os mesmos que os da nossa mãe”, disse Mabel ao jornal local La Voz. “O compromisso com os pobres, os sem-terra, a luta contra a exclusão, contra o tráfico de drogas e a luta pela esperança (...) isso tudo é ‘fazer um estrago”.
Resta saber como a relação entre o líder da maior potência religiosa do planeta e a “Nova Líder do Mundo Livre”, como estão chamando Angela Merkel, irá se desdobrar.
A experiência mostra que quando se trata de lidar com mulheres em cargos de poder, Francisco as vê como iguais.
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Papa Francisco já mostrou não temer mulheres em cargos de poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU