16 Junho 2017
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o deputado Jeferson Fernandes (PT) coordenava uma audiência pública no início da noite de quarta-feira (14) sobre a Lanceiros Negros, ocupação por moradia localizada no Centro de Porto Alegre e sobre a qual pairava uma decisão de reintegração de posse autorizada pela Justiça. No início do evento, não havia qualquer informação sobre quando a Brigada Militar iria realizar a operação de despejo. Pouco antes das 19h, porém, chega ao Plenarinho da Casa a informação de que a ação da polícia já estaria em andamento. Jeferson decide então transferir a audiência para a ocupação, localizada a menos de 300 metros da Assembleia, na esquina entre as ruas General Câmara e Andrade Neves. Na manhã desta quinta-feira (15), em conversa por telefone, o deputado relatou ao Sul21 o que vivenciaria nas horas que sucederam essa decisão.
A reportagem é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 15-06-2017.
“No meio do caminho, começaram a chegar vários policiais militares, acho que um grupo de mais ou menos 200 policiais. Eu estava descendo ao lado de crianças, de mulheres. Mas o que eu imaginei: ‘Os caras vão cercar a área, vão criar um clima de negociação, como é de se imaginar que num protocolo civilizado se faça e, buenas, amanhã, na luz do dia, se faz a desocupação, se necessário. Daí tudo bem, se não der a negociação, talvez usem da força. Mas como a própria ordem judicial dizia, protegendo as crianças através do conselho tutelar, lendo o mandado e assim por diante'”.
Na prática, aconteceu justamente o contrário, prossegue Jeferson. “Eu estava descendo a lomba, quando de repente desce um batalhão com escudos. Tentei gritar, até estou com dificuldades na voz de tanto que eu clamava para aparecer o oficial de justiça, aparecer o comandante da tropa. Não apareceu. Como eu continuei ali, na frente da ocupação, me jogaram muito gás no rosto, tiros nos meus pés, nas minhas pernas, tentando de todas as formas que eu saísse da frente sem que eu soubesse, ninguém sabia ali, o que eles efetivamente iriam fazer”.
Jeferson relata que só depois de a operação já ter iniciado, dele e de outros apoiadores da Lanceiros Negros exigirem que os protocolos mínimos fossem seguidos, apareceram dois oficiais de justiça no local.
“Mal e mal me mostraram o mandado, não admitindo, não fazendo nenhum autocrítica da ação que eles tinham autorizado até o presente momento e dizendo que eu tinha que sair da frente. Como eu disse que não sairia enquanto todo um protocolo civilizado de respeito às mulheres e às crianças fosse apresentado, o oficial deu o ok para a Brigada. Aí me atropelaram, me arrastaram pelas pernas. Torceram o braço, me deram gravata, me algemaram, torceram minhas mãos, meus dedos, fui xingado, cassetete na cabeça e por aí a fora”.
Jeferson foi então colocado dentro de um camburão junto com duas mulheres. “Transitaram comigo no Centro fazendo movimentos bruscos com o veículo, certamente para me intimidar, eu e mais duas mulheres dentro da gaiola da viatura. Ficou estacionado uns 20 minutos na frente do Palácio Piratini, pelo que eu via por uma frestinha que eu podia enxergar para fora.
Acredito que, em virtude da repercussão que as mídias devem ter dado, as mídias sociais, eles resolveram então me levar até a frente do Theatro São Pedro e lá me soltaram. Simplesmente me soltaram. Um troço louco, porque, se eu estava preso, o procedimento adequado é levar o sujeito para a delegacia, como levaram os demais. E aí me soltaram na frente do Theatro São Pedro”.
Uma vez liberado, o deputado foi para o Palácio da Polícia para registrar o ocorrido e fazer um exame de corpo de delito e solicitou que todas as pessoas presas durante a reintegração, ao menos oito, fossem encaminhadas para o local. As duas mulheres que estavam ao lado dele no camburão não haviam sido liberadas ainda.
“Não há nenhuma vírgula fora do que eu estou falando. Tudo está comprovado, tudo gravado”, diz. A assessoria do deputado transmitiu ao vivo, via redes sociais, as ações.
A todo o momento, desde que chegou diante do prédio da ocupação Lanceiros Negros, que pertence ao Estado e estava há anos sem uso antes de virar moradia para entre 100 e 150 pessoas, em novembro de 2015, Jeferson Fernandes informou os policiais militares que era deputado e que estava ali representando a Assembleia Legislativa. Em alguns momentos, inclusive, informou que também atuava na defesa dos interesses da corporação. Isso não o impediu de ser alvo da repressão da Brigada Militar. No entanto, relata que, após a repercussão do fato, a prisão de um deputado, o tratamento dos policiais e dos oficiais dado a ele subitamente mudou.
“Eles ignoraram que eu era deputado. Mas como repercutiu o fato, e isso que me entristece, se fossem só pessoas pobres, lideranças de vila que ali estavam, certamente a prisão arbitrária teria outro desfecho e talvez muito mais agressões do que ocorreu comigo, estranhamente, até o tom comigo daí era amistoso. O oficial de justiça mudou o tom. Os agentes da Brigada Militar mudaram o tom. Tudo por causa da repercussão, mas ninguém respeitou a instituição Assembleia Legislativa antes do ocorrido. Ninguém. Porque eu não sou do movimento, eu estava ali para fazer a mediação”.
Ainda abalado pelos acontecimentos da noite passada, Jeferson conta que, desde que foi liberado, recebeu a solidariedade de diversos apoiadores do movimento de Direitos Humanos, como juízes, promotores, delegados, agentes da Susepe, lideranças políticas e até policiais militares. Mas, do governo do Estado e do Tribunal de Justiça, não recebeu nenhum contato até por volta das 11h desta manhã.
O deputado fala que sua preocupação, neste momento, é acompanhar a situação das famílias que foram retiradas da ocupação. Porém, diz que irá cobrar do governo do Estado e do Judiciário uma posição sobre os diversos abusos de força e violações de protocolo que presenciou.
“Eu quero uma posição do presidente do TJ, em especial. É esse o padrão de orientação que eles dão para os oficiais de justiça? E o governador, secretário de Segurança, comandante da Brigada, é esse o padrão de orientação para despejo? À noite, com crianças, com mulheres, desvirtuando a ordem judicial”.
Jeferson salienta que a ordem judicial dava margem para que a operação fosse realizada fora do horário de comércio, em feriados ou finais de semana, mas não falava que deveria ser realizada durante a noite.
Ele também questiona a falta de respeito aos protocolos que existem para operações de reintegração de posse e para lidar com a retirada de pessoas. Salienta, por exemplo, que não havia policiais mulheres para abordar as mulheres presas, relatando que viu duas serem arrastadas.
“Foram nitidamente constrangidas, porque o aprisionamento se deu por homens. Como arrastavam os nossos corpos, puxa para cá, puxa para lá, tu imagina quanto é constrangedor para uma mulher, e certamente isso também é um elemento de tortura na hora, porque também podiam ter se utilizado, sendo que isso é o mínimo de uma polícia civilizada, de mulheres para abordar as mulheres que ali estavam. Tudo, absolutamente tudo que foi feito, não obedeceu nenhuma regra de direito, desrespeitou todos e quaisquer protocolos que são preconizados pelas boas práticas das polícias e do próprio judiciário”.
Os abusos da Brigada Militar durante este tipo de operação, no entanto, não são novidades para o deputado. Desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, no início do ano, tem acompanhado a situação de várias ocupações. Na audiência que conduzia sobre a Lanceiros Negros, uma das preocupações era justamente quanto a isso. “Há mais ou menos uns 20 dias, a Brigada Militar também fez um despejo violentíssimo na comunidade Alto da Colina. O povo todo veio ali na comissão mostrando marcas de tortura, de abusos. Nós temos feito documentos sobre isso. Inclusive ontem pela manhã, vários deputados que compõem a comissão assinaram um documento direcionado ao Ministério Público, ao Judiciário, ao Executivo, para que tivessem cautela na hora da desocupação. Inclusive o deputado Bombeiro Bianchini (PPL), que é da Brigada Militar, eu pedi para ele contatar o comando. Ele disse até para nós, para nos tranquilizar, que o protocolo seria respeitado, que jamais teria violência. Isso que eu estou falando está documentado”.
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Porto Alegre. ‘Me atropelaram, me arrastaram, cassetete na cabeça’, deputado narra violência da BM em desocupação da Lanceiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU