27 Mai 2017
Tô sim com dó. Mas não das pessoas com dependência. Muito menos da população em situação de rua. Tô com dó de gestores de São Paulo e de parte dos seus habitantes que compactuam com saídas fáceis para problemas complexos, escreve Leonardo Sakamoto, jornalista e cientista social, em artigo publicado por Uol, 26-05-2017.
Enquanto o governo estadual desce a porrada para expulsar pessoas que sofrem com dependência de drogas na principal Cracolândia de São Paulo e a prefeitura municipal passa a demolir imóveis do local com gente dentro, ferindo pessoas, hordas internéticas alucinadas ressuscitam a frase que representa a falência da civilização: ''Tá com dó? Leva pra casa!''
A sentença é usada à exaustão quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o Centro da pujante São Paulo – locomotiva da nação, vitrine do país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas patéticos e naftalínicos caindo de velhos.
É só falar da necessidade de encarar a questão da dependência das drogas como um assunto de saúde pública antes de qualquer outra coisa que grupos vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder quem diz o contrário.
Como não acredito no ''mal'' como algo inato, creio que isso decorre da incapacidade do indivíduo de entender o que são políticas públicas e como elas são desenvolvidas, implementas e monitoradas. O que é triste, porque também prova que a sociedade não percebe o Estado como ator que deveria garantir a qualidade de vida de sua população através de ações de curto, médio e longo prazos. Para eles, políticas de Estado não existem. O que existe é a sucessão de ações de governos, sem conexões entre si, muitas com objetivo midiático e que precisam durar até a eleição ou a reeleição.
A ação desastrosa do poder público na região da Cracolândia tem como efeito espalhar pessoas com dependência e vendedores de drogas para outros pontos da cidade e transferir moradores que viviam em cortiços e pensões para barracos em calçadas. Essa não é a primeira vez que o poder público opera uma ''Operação Guardanapo de Boteco'' (que só esparrama e não resolve), outras semelhantes já tiveram resultados parecidos.
Elas tentam remover (ainda que com sucesso temporário) aquilo visto como ''lixo humano'' dos arredores da Sala São Paulo, da Pinacoteca, do Museu da Língua Portuguesa, preparando o espaço para o empreendimento imobiliário conhecido como Nova Luz.
Ou seja, a cada mata-leão em usuário de crack, o metro quadrado sobe de preço.
''Essa ação tem como objetivo 'liberar' a região para que seja reconstruída, expulsando quem lá mora, sendo ou não usuário de crack'', explica Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Detesto a expressão ''revitalizar o Centro''. Pois significa que a vitalidade de uma região depende do tipo de pessoa ou de atividade que nele se encontram. Infelizmente, revitalizar têm sido construir museus e praças e mandar o ''lixo humano'' para longe. Não apenas expulsando pessoas com dependência, mas também a população pobre e que não cabe nos planos do governo e das construtoras.
Melhor tirar da vista do que aceitar que, se há pessoas que querem ocupar o espaço público por algum motivo, elas têm direito a isso. A cidade também é delas, por mais que doa ao senso estético de alguém. Ou crie pânico para quem acha que isso é uma afronta à segurança pública e aos bons costumes.
Enxotar é mais fácil que implantar políticas de moradia eficazes – como uma reforma urbana que pegue os milhares de imóveis fechados para especulação e os destine a quem não tem nada. Ou repensar a política pública para pessoas com dependência de drogas, hoje baseada em um tripé de punição, preconceito e exclusão e, portanto, ineficaz.
Retirar à força qualquer grupo de pessoas dependentes de drogas que estejam vagando pela cidade, poder que a Justiça garantiu à Prefeitura, nesta sexta (26), contribui ainda mais para sumir com os ''estorvos'' ao invés inseri-los na sociedade.
Encarar a questão como um problema de saúde pública significa reservar tempo para construir coletivamente soluções dialogadas com especialistas, autoridades, médicos e com a própria população afetada. O poder público municipal chegou a iniciar um processo nesses moldes, como afirmam instituições como a Defensoria Pública, mas que foi abortado. Pois tempo é algo que Geraldo e João, pré-candidatos à Presidência da República, não têm.
Tô sim com dó. Mas não das pessoas com dependência. Muito menos da população em situação de rua. Tô com dó de gestores de São Paulo e de parte dos seus habitantes que compactuam com saídas fáceis para problemas complexos.
Até levaria essa patota do ''Tá com dó?'' para casa a fim de bater um papo. Mas temo não ter a quantidade de uísque e outras drogas vendidas na farmácia a que alguns desses cavalheiros e damas estão acostumados.
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A cada porrada em dependente de crack, o metro quadrado sobe de preço em SP - Instituto Humanitas Unisinos - IHU