27 Mai 2017
“A cidade que se expande devorando a paisagem, ao mesmo tempo, se fragmenta, expressa, a partir do seu seio, duas formações opostas e complementares: a favela e o condomínio fechado.”
A opinião é do arqueólogo e historiador da arte italiano Salvatore Settis, ex-diretor da Scuola Normale Superiore di Pisa, em artigo publicado por La Stampa, 21-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As transformações da paisagem, em todas as partes do mundo, são tão radicais e súbitas que nos levam a repensar profundamente a nossa relação com ela. Enquanto as cidades se expandem, transformando-se em aglomerações de periferia, e devoram, ao mesmo tempo, o seu coração antigo e os campos circundantes, deve ser reafirmada a sua ligação com as paisagens extraurbanas.
Cidade e paisagem forma, juntas, não um espetáculo “para ver”, mas um espaço “para viver” sem rebaixá-lo a mosaico de interesses individuais, porque diz respeito à comunidade. Isso diz respeito à ideia de cidadania e, portanto, à democracia: por isso, envolve a responsabilidade daqueles que modificam as suas coordenadas, do político, ao cliente, ao arquiteto.
Novas pesquisas de sociólogos, psicólogos, antropólogos definem o espaço em que vivemos como um formidável capital cognitivo, que fornece coordenadas de comportamento e de memória, constrói a identidade coletiva das comunidades. A estabilidade da paisagem que nos cerca está em direta proporção com um senso de segurança que melhora a autopercepção, favorece a produtividade, desencadeia a criatividade. Por outro lado, a fragmentação dos espaços, a modificação das paisagens, a difusão de periferias desencadeiam uma espécie de “angústia territorial” (De Martino) e outras patologias individuais e sociais.
Para descrever o desordenado crescimento urbano, usa-se a fórmula inglesa urban sprawl (cidade espalhada): um desenvolvimento que tende a saturar todos os espaços disponíveis, muitas vezes, subtraindo da agricultura de qualidade os terrenos mais férteis. O modelo implícito, que se impôs no século XX, é a megalópole.
Em torno de 1850, apenas 3% da população mundial vivia em cidades, enquanto que esse percentual já atingiu hoje 54%, e prevê-se que, em 2030, vai se aproximar de 70%. A essa ocupação do espaço horizontal, acrescenta-se a crescente verticalização das arquiteturas.
O novo destino dos arranha-céus, que começou nas megalópoles chinesas e nas neocidades do Golfo Pérsico, tem agora uma onda de retorno nos Estados Unidos e em algumas cidades europeias (como Londres): é uma espécie de vertical sprawl (Vittorio Gregotti chamou-o de “grattacielismo” [de “grattacielo”, arranha-céus]), que “representa muito mais do que um movimento arquitetônico; é a manifestação de um fenômeno financeiro generalizado, as especulações da bolsa que movem investimentos para a construção” (assim afirma um relatório do Yale Center for Finance, 2010).
A fronteira da cidade foi, por muito tempo, clara e definida, como nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti em Siena (1338-1340), em que os muros que servem de dobradiça entre cidade e campo são um elemento ordenador de uma visão geral do mundo. Hoje, a mercantilização do espaço gera novos espaços de exclusão, que são outras tantas bombas-relógio no horizonte da democracia. A cidade que se expande devorando a paisagem, ao mesmo tempo, se fragmenta, expressa, a partir do seu seio, duas formações opostas e complementares: a favela e a gated community [o condomínio fechado].
Os muros da cidade se tornam muros na cidade. Um sétimo da população mundial (um bilhão de seres humanos) vive em favelas que, de cidade, não merecem nem mesmo o nome. No polo oposto, as gated communities, bairros para ricos defendidos por cinturões de muros.
Estamos, portanto, diante da tendência de impor em todo o planeta um único modelo de desenvolvimento urbano, cujos componentes inseparáveis são a verticalização das arquiteturas, a megalópole e a segmentação interna das cidades, com novas formas de apartheid social e novas fronteiras intraurbanas.
Mas é possível reagir. De acordo com o manifesto How to Build a Fairer City [Como construir uma cidade mais justa], lançado em 2014 por alguns arquitetos europeus, “o sucesso de uma cidade não deveria ser medido pela grandeza, nem pela capacidade de competir com outras cidades, mas pela capacidade de distribuir em seu interior bens e serviços que possam garantir a vida civil do maior número possível de cidadãos”.
E o Papa Francisco, na sua encíclica Laudato si’, sublinhou que “não é suficiente a busca da beleza no projeto arquitetônico, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e a ajuda mútua” (n. 150). É de reflexões como essas que vem um pouco de esperança para o futuro.
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A democracia em tempos de megalópoles. Artigo de Salvatore Settis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU