02 Setembro 2015
“A liberdade da cidade é muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações”. David Harvey no artigo “A Liberdade da Cidade” – publicado no livro Cidades Rebeldes – reflete que, além de usufruir de bens e serviços indispensáveis à vida, a população urbana deve ter o direito de decidir os rumos do desenvolvimento das cidades.
A reportagem é de Thales Schimidt e Vinicius Martins, publicada por Outras Palavras, 31-08-2015.
Desde 2001 algumas ações do governo federal têm apontado nessa direção: aplicação do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), criação do ministério das Cidades, obrigatoriedade da elaboração de Planos Diretores Participativos para municípios com mais de 20 mil habitantes – e a implantação do programa Minha Casa, Minha Vida.
O objetivo dessas iniciativas é definir a função social da cidade e da propriedade, além de buscar soluções para problemas crônicos causados pelo crescimento desordenado e excludente das áreas urbanas. Os principais atingidos desse quadro são as populações de baixa renda, afetadas, principalmente, pela falta de acesso aos equipamentos e serviços públicos essenciais como praças, escolas, hospitais, transporte e segurança.
Apesar da criação desses mecanismos de regulação, a direção do solo urbano ainda não pertence aos interesses da sociedade civil. O mercado imobiliário e as empreiteiras são os responsáveis por determinar a finalidade da cidade e por expor a crise prática da legislação de terras nos municípios.
A disputa pela cidade
“O que está comandando as cidades não é interesse público, não é interesse coletivo, não é justiça social, não é sustentabilidade. Tudo isso é discurso, todas as grandes cidades brasileiras têm ótimos planos diretores, a nossa legislação é muito avançada, conhecimento técnico nós temos, mas nós estamos perdendo na correlação de forças, estamos levando uma surra na disputa com aqueles que têm lucro com as cidades, com o crescimento das cidades”, analisa Ermínia Maricato, professora titular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e autora da proposta de criação do ministério das Cidades do Brasil.
O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra que 84% da população brasileira vivem em áreas urbanizadas. Estima-se que existam no país cerca de 6329 aglomerados subnormais – ou favelas -, de acordo com o último Censo do IBGE. O número engloba um total de 3.224.529 domicílios e 11.425.644 pessoas.
Segundo Juliano Costa Gonçalves, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Especulação imobiliária na formação de loteamentos urbanos: um estudo de caso, a prática acarreta em conflitos na organização espacial das cidades. “O processo de urbanização costuma ser bastante caro, como levar saneamento e energia a novos bairros, por exemplo. Quando essas áreas ficam presas no processo de especulação, aumenta-se a área urbana. Então, você obriga que algumas pessoas morem nas regiões mais periféricas da cidade, que muitas vezes não têm bons processos de urbanização nesses lotes”, ressalta Gonçalves.
O pesquisador lista outras consequências da especulação, como a falta de acesso à infraestrutura pública básica: iluminação, ruas asfaltadas, escolas e hospitais. No rol de problemas produzidos pelo mercado de terras estão os vazios urbanos e o alargamento do tecido urbano, a segregação sócio-espacial – provocada pela alta no preço dos aluguéis – e complicações na configuração do transporte público. Ou seja, os pobres não frequentam os mesmos parques, escolas e hospitais que os ricos.
Gislene Pereira, professora da Universidade Federal do Paraná, analisa que esse processo é cíclico dentro do sistema capitalista, portanto está presente em outros países do globo. “A cidade que temos é resultado da forma pela qual ela é produzida, ou seja, dentro das regras de produção de um sistema capitalista. Esse modelo de cidade, portanto, é o mesmo em todos os países capitalistas. E os problemas – segregação espacial, periferia, carência de infraestrutura, etc – estão presentes em todas as cidades capitalistas; não é, portanto, uma exclusividade do Brasil”, explica.
Para lidar com déficit de habitação no país, o governo federal criou em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Atualmente, o programa encontra-se em sua segunda fase e promete entregar mais 1,6 milhões de moradias até o fim do ano. No entanto, o projeto costuma receber críticas de especialistas em urbanismo. “O maior déficit habitacional no Brasil está na faixa de 0 a 3 salários mínimos, faixa que praticamente não é atendida pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Nessa situação, o deficit deve aumentar, como efetivamente está ocorrendo”, aponta Gislene Pereira.
Gislene complementa que: “o problema do deficit habitacional deveria ser enfrentado de modo articulado com a questão do uso da terra urbana. Não falta terra, o que falta, de fato, é terra urbanizada a preço acessível. Dessa forma, somente se pode pensar em atender às demandas por habitação se houver uma política de controle do uso do solo de forma a garantir a oferta de terra urbanizada a preços acessíveis para a população de menor renda”.
Empreiteiros: os senhores da cidade
O Minha Casa, Minha Vida é um dos programas dos programas federais que vêm garantindo uma poderosa fonte de recursos para as empreiteiras nacionais – empresas responsáveis por empreendimentos vitais para a cidade como obras rodoviárias, túneis, pontes e até a construção dos edifícios e casas em que habitamos. Nesse setor, a unidade usada para calcular projetos, valores e lucros é a dos bilhões.
Boa parte do fluxo de dinheiro que alimenta o caixa dessas empresas vem do Estado brasileiro por obras dos governos federal e estaduais. Segundo levantamento da revista O Empreiteiro, referência do setor de engenharia, em 2013 a União foi responsável por investir R$ 12,416 bilhões em obras e serviços por meio de licitações públicas; todavia, o valor ainda é menor que o investido pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco no mesmo período: R$ 18,415 bilhões.
Os eventos esportivos sediados pelo Brasil – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro – têm garantido contratos gordos para o setor. De acordo com reportagem da Agência Pública, os dez maiores contratos dos dois eventos chegam a quase R$ 30 bilhões. Programas federais com grandes investimentos em obras de infraestrutura econômica e social, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – iniciado em 2007 e já na segunda edição – também fazem a festa das corporações.
O casamento entre poder público e empreiteiras, contudo, é de longa data. O historiador Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, analisou a formação das principais empreiteiras brasileiras durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) em sua tese de doutorado. “Os empreiteiros já eram importantes no país antes da ditadura, eles crescerem muito na década de 50, em especial nas obras de Juscelino Kubitischeck (1956-1961). Naquele período eles começam a se organizar em nível nacional, criaram organizações de empreiteiros e a partir dessas organizações passam a ter um papel político e uma atuação junto ao aparelho de Estado muito decisiva”.
Durante o regime ditatorial, a situação melhorou ainda mais para as empreiteiras nacionais. Por meio do decreto 64.345, o militar e então presidente Artur da Costa e Silva (1964-1966) determinou que obras de infraestrutura no Brasil só poderiam ser feitas por empresas nacionais. A medida ajudou o estabelecimento das empreiteiras brasileiras em áreas com forte concorrência internacional, como a construção de hidrelétricas, engenharia industrial, de petróleo e outras obras urbanas. A decisão fez com que as empreiteiras nacionais fossem as únicas beneficiadas pelos grandiosos projetos desenvolvimentistas dos militares. A restrição a empresas estrangeiras só foi revertida em 1991 pelo presidente Fernando Collor (1990-1992).
“Existia um cenário ideal para o desenvolvimento dessas empresas, tanto é que elas se desenvolveram de maneira bastante expressiva ao longo do regime. E no final da ditadura o que a gente tinha eram grandes conglomerados econômicos, aquelas empreiteiras que já eram grandes e importantes na ditadura no final eram multinacionais que atuavam em vários lugares do mundo”, aponta Pedro Campos.
As grandes empreiteiras nacionais são superlativas em todos os seus números. A maior delas, a construtora baiana Norberto Odebrecht, teve em 2013 uma receita bruta de R$ 10,149 bilhões e conta com mais de 125 mil funcionários. Segundo ranking das maiores empresas do setor realizado pela revista O Empreiteiro, 40% da receita no período se deve a contratos com o setor público.
Levantamento do Estadão Dados apontou que a mesma Odebrecht foi responsável por doar R$ 47,7 milhões para a campanha eleitoral de 2014. Outra gigante do setor, a Andrade Gutierrez doou R$ 93,6 para o mesmo pleito. Ainda assim, nenhuma doadora supera o grupo pecuarista JBS, com R$ 357,3 milhões aplicados. Na legislação atual, as empresas podem doar até 2% do faturamento bruto do ano anterior ao da eleição.
O fim das doações empresariais foi um dos pontos das mudanças políticas votadas pela Câmara dos Deputados. Embora a extinção das doações de empresas tenha sido aprovada em primeira votação, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) conseguiu reverter a decisão por meio de manobra regimental no dia seguinte; procedimento repetido durante a votação da redução maioridade penal. Os temas ainda serão votados novamente por Câmara e Senado.
“O grande problema urbano no Brasil hoje é o financiamento de campanha. Está tudo absolutamente comprometido com o financiamento de campanha. Nas nossas grandes cidades, e pequenas e médias também, grande parte da orientação do crescimento urbano é dada por interesses de proprietários de uma elite local, das grandes empreiteiras, do capital imobiliário e dos parlamentares e prefeitos de plantão. É assim que se dá a decisão, por exemplo, de ao invés de construir metrô, você construir viaduto, ponte, túnel, para transporte rodoviário e não transporte sobre trilho”, indica Erminia Maricato.
O historiador Campos também aponta o financiamento privado como um grande problema do sistema político atual: “Se uma empresa que presta serviços ao Estado pode (financiar campanhas), é obvio que isso vai dar problemas. Se uma empreiteira que faz obra pública para um governo pode financiar campanha, isso é realmente algo que vai gerar problemas, distorções e uma rede de propinas”. Para o historiador, as doações são uma espécie de “investimento” para conquistar “protagonismo e poder politico”.
Desde 2014, a Polícia Federal e Ministério Público Federal investigam uma rede de corrupção e distribuição de propinas na Petrobras, os investigadores acreditam que o esquema ocorra há pelo menos 10 anos. A chamada Operação Lava Jato apura o desvio de bilhões de reais de licitações e contratos da maior estatal brasileira, dinheiro usado para pagar altos funcionários corruptos e políticos. PT, PMDB, PP, PSDB e PSB abrigam 47 políticos alvos de investigação por participação no esquema. A lista de suspeitos inclui os presidentes da Câmara Federal e do Senado: Eduardo Cunha e Renan Calheiros – ambos do PMDB.
O processo se notabilizou por ir além das operações policiais mais costumeiras no Brasil ao prender não só agentes políticos e públicos corruptos, mas também os corruptores. Altos dirigentes de empreiteiras como OAS, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, UTC, Engevix, Iesa e Galvão Engenharia estão respondendo pelos desvios praticados. Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira nacional, e Otávio Marques de Azevedo, chefão da Andrade Gutierrez, estão em prisão preventiva.
Regulação urbana
Ainda que o Brasil tenha mecanismos de regulação do tecido urbano que são referências mundiais – como edificação compulsória, o IPTU progressivo, a Desapropriação para Fins de Reforma Urbana, o Direito de Preempção, a Outorga Onerosa e outras ferramentas – os interesses das empreiteiras costumam prevalecer na decisão da política urbana das cidades brasileiras. No meio do caminho da efetivação do direito à cidade estão a política e o jogo de correlação de forças que traça os rumos do desenvolvimento e emprego de verbas públicas.
A aplicação de tais instrumentos legais seria vital no atual contexto de forte especulação imobiliária das médias e grandes cidades brasileiras. Entretanto, há uma crise prática que impede o efeitos da legislação no espaço urbano. “O que você tem agora é uma politica que é regressiva do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, da justiça social e territorial, do direito à cidade. Atualmente, as nossas cidades, com raras exceções, estão em um caminho regressivo”, analisa Ermínia Maricato.
“O planejamento tem que atuar sobre a lógica de produção do solo urbano, o que significa utilizar os instrumentos legais existentes para interferir na lógica de produção urbana individual, priorizando a questão coletiva. O Brasil, apesar de avançado na legislação, ainda está engatinhando na aplicação desses instrumentos. Como referência, citaria as cidades de Bogotá e Medellin, na Colômbia, que têm obtido bons resultados nas políticas urbanas”, aponta Gislene Pereira.
As cidades de Bogotá e Medellin têm priorizado os cidadãos para guiar o desenvolvimento urbano. Em pouco mais de oito anos, os municípios investiram em mobilidade urbana planejada e sustentável, segurança cidadã com a remodelação das polícias e um novo ordenamento do espaço público. As melhorias colocam como foco as populações de baixa renda, dispondo para esses estratos sociais equipamentos públicos como escolas, bibliotecas, hospitais, praças e espaços de convivência, além de corredores para ônibus e ciclovias. Todas as obras fazem parte de uma política integrada de desenvolvimento urbano. Os resultados diminuíram os índices de violência urbana e colocaram as duas cidades entre as melhores indicadores de qualidade de vida da Colômbia.
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Que torna nossas metrópoles insustentáveis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU