Por: João Flores da Cunha | 26 Abril 2017
No Brasil, a esquerda assumiu para si própria nos últimos anos uma identidade rígida, e se afastou do centro no processo. Para sair dessa situação e voltar a dialogar com os moderados, seria preciso adotar uma nova estratégia política. Essa foi a avaliação de Moysés Pinto Neto, professor do curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, em sua palestra intitulada A desidentificação da esquerda como possibilidades na política brasileira.
Sua conferência, que ocorreu no dia 24 de abril, faz parte do ciclo A reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Nela, o professor propôs pensar a esquerda não a partir de uma identidade, mas como um campo de força política.
Em sua fala, Moysés apresentou uma interpretação de fatos históricos desde 2002, ano em que Lula foi eleito presidente pela primeira vez. Para ele, esse fato marca o início de um ciclo – que se encerrou em junho de 2013, quando houve uma série de mobilizações em diversas cidades brasileiras.
“2013 não foi um levante da esquerda. Foi um levante híbrido”, assinalou o pesquisador. Para ele, junho de 2013 “é um acontecimento” que desestabilizou o arranjo composto até então, e a partir do qual “as forças políticas nunca mais voltaram para onde estavam” antes dele. Ainda hoje, estamos em processo de reorganização, segundo o professor.
Com as eleições de 2014, houve uma organização da política em dois polos, um a favor do Partido dos Trabalhadores e outro anti-PT. Essa polarização “já existia, mas nunca tinha sido tão forte”, assinalou Moysés.
Naquele contexto, “a esquerda dobrou a aposta na própria esquerda”, para se diferenciar do projeto de Marina Silva, que chegou a liderar as intenções de voto para a presidência. Assim, houve uma “construção enrijecida da identidade de esquerda”, com um discurso que apontava que não seria possível ser de esquerda e votar em Marina.
No entanto, logo após ser reeleito, o governo de Dilma Rousseff perdeu sua base social, com contradições como a nomeação de um ministério conservador após uma campanha eleitoral de esquerda. A partir daí, houve uma “série de decisões ruins, muito mal pensadas”, que enfraqueceram a posição de Dilma, de acordo com a visão do pesquisador.
Com o governo fragilizado, o centro se moveu para a direita, e a esquerda se voltou para seus quadros clássicos, o que aumentou o seu isolamento. “É negativo que uma força do campo político se transforme em um enclave insular”, ponderou Moysés.
Segundo ele, a esquerda, ao se voltar para si própria, esqueceu do centro, “como se não existisse um ‘meio-de-campo pragmático’”. Para ele, a maioria da população vota não por uma “ideologia de fundo”, mas com base em “quem está fazendo uma boa gestão”. Assim, “o centro é altamente empirista”.
A esquerda deve “se permitir dialogar com o senso comum”, para Moysés (Foto: João Flores da Cunha/IHU)
O pesquisador citou alguns pontos em que, em sua visão, a esquerda está afastada do centro. Um deles é o de que a esquerda atribui uma conotação negativa ao empreendedorismo.
No entanto, para Moysés, “não se pode desprezar o desejo das pessoas de quererem ser chefes de si mesmas”, bem como sua rejeição ao emprego fordista. Segundo ele, a esquerda ainda manifesta um apego excessivo ao emprego típico da sociedade industrial do século XX.
Outro erro estratégico da esquerda seria o de tratar o combate à corrupção como um moralismo excessivo, de acordo com o pesquisador. Para ele, o “saque das elites” não pode ser legitimado, sob pena de que, “se todos pensam em saquear, é impossível construir um projeto” de sociedade.
Ou seja, “não há apenas um aspecto moralista no combate à corrupção, mas um aspecto de construção” de sociedade, segundo o professor. “A corrupção captura a própria democracia”, bem como a própria noção de deliberação pública, e enfraquece a possibilidade de o cidadão decidir os rumos da sociedade, afirmou Moysés.
Como proposta para enfrentar esse problema de afastamento do centro, ele sugeriu o que chamou de pragmatismo radical: uma estratégia de tradução de pautas radicais, “para além de emblemas identitários”, em uma tentativa de trazer o centro para a esquerda. Esta deve “se permitir dialogar com o senso comum”, segundo Moysés, para “estabelecer pontes e traduções” com o centro.
Para esse efeito, seria preciso encontrar uma linguagem que dialogue com o senso comum do centro. Hoje, a esquerda “fala para dentro”, o que é um problema de estratégia, segundo ele. Há uma postura de que “o fundamento está comigo, o meu lugar está certo”, e por isso não haveria necessidade de desenvolver uma estratégia política. Porém, “as pessoas não querem escutar um jargão carregado do ponto de vista ideológico”, afirmou.
Pautas relativas ao espaço urbano “têm toda a condição de ganhar batalhas, porque são pautas majoritárias”, de acordo com Moysés. Outro tema em que haveria possibilidade de avanços seria o livre compartilhamento de arquivos na internet. O pesquisador assinalou que o “discurso demonizador da pirataria” não encontrou aceitação popular.
Para ele, mesmo uma pauta radical como o fim da proibição às drogas poderia ter sucesso, desde que as pessoas sejam informadas dos problemas dessa política – como o fato de que a guerra às drogas tem um custo bilionário e “efeito zero” em termos de redução do consumo.
Assim, seria mais produtivo para a esquerda se ver não a partir de uma identidade fixa, mas como uma “confluência de forças que produzem transformações” na sociedade. Nesse sentido, é possível propor mudanças sistêmicas, mas a partir de uma linguagem que não seja a da valorização de quem seria “verdadeiramente de esquerda”. “O problema do esquema identitário é que aderir a um projeto comum não pode ser um processo de conversão”, disse.
Em relação ao cenário para 2018, Moysés afirmou que a volta de Lula, “para a democracia brasileira, não é tão interessante”. O pesquisador disse que uma eventual vitória de Lula seria possível por conta da lembrança do período de bonança econômica, mas ponderou que, se perguntados sobre o tema em junho de 2013, mesmo apoiadores do lulismo seriam contrários ao retorno de uma liderança carismática como Lula para as eleições de 2018.
Segundo ele, um possível embate entre Ciro Gomes e Marina Silva seria interessante por opor o desenvolvimentismo, de um lado, à sustentabilidade e ao social-liberalismo, de outro. Ele disse ainda que “não há nada escondido, nada que não estejamos vendo. Os atores são esses”.
Sobre a estratégia da esquerda para 2018, Moysés alertou para a necessidade de ocupação de espaços no Parlamento. “O que para mim é essencial, ninguém está falando: o que fazer para ocupar o Congresso Nacional?”, disse. Em sua visão, trata-se do mesmo erro de 2014, quando as urnas deram a vitória à esquerda no Executivo, mas também elegeram a legislatura mais conservadora da história – e o Congresso acabou aprovando o processo de impeachment de Dilma no segundo ano de seu novo mandato.
Moysés da Fontoura Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do RS (2010-2013) com período-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy (Kingston - UK). É mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006-2007), especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998-2003). Atualmente é Professor da ULBRA (2009-).
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Como a esquerda se afastou do centro – e o que fazer para retomar o diálogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU