Por: Vitor Necchi | 18 Abril 2017
A complexidade do momento político e a situação da esquerda após os escândalos envolvendo o Partido dos Trabalhadores pautaram a palestra Reconstruir em campo minado. Ideias para uma esquerda pós-PT, proferida por Rodrigo Nunes na última quarta-feira (12/4), dentro do ciclo de palestras A reinvenção da política no Brasil contemporâneo, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Nunes começou lembrando que o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, completa meio século neste ano, e isso se trata de uma alegoria bastante adequada ao momento que o país vive desde 2015. “A sensação de irrealidade com que assistimos acontecer, em velocidade crescente, uma sequência de coisas que pensávamos que jamais aconteceriam é selada agora com a facilidade com que nós vemos um governo de legitimidade escassa e baixíssima popularidade fazer reformas que dificilmente teriam sido escolhidas nas urnas e que representam não apenas um desmanche dos frágeis avanços da última década, mas de alguns elementos fundamentais do projeto, contraditório, mas necessário, de estado de bem estar social registrado na Constituição Federal de 1988”, afirmou Nunes, que é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.
Da alegoria, ele passou para a metáfora, ao dizer que, “como num pesadelo, em que acordamos em um lugar estranho, é impossível não nos perguntarmos como chegamos aqui, mas é igualmente difícil decidir qual parte é sonho e qual parte é vigília”. Os questionamentos incidem sobre o país: “Qual é o verdadeiro Brasil?”. Nunes ensaia uma reposta que amplia os questionamentos: “É aquele país que lentamente se democratizava, onde a maioria da população apostou, ao longo de uma década, em um programa de distribuição de renda, expansão de direitos e acessos a oportunidades, ou é essa república bananeira governada de forma cínica e sem subterfúgios pela mesma elite de sempre, onde a maioria acompanha em silêncio, ou mesmo comemora, uma série de retrocessos cujos efeitos vão se fazer sentir por muitos anos?”.
Na visão de Nunes, ainda no sentido de entender o que se passa atualmente sobre os escombros da crise política, os brasileiros acordaram de um sonho, “de um breve interlúdio de esperanças e promessas para voltar à dura realidade de quem nós realmente somos, ou nós entramos em um pesadelo que, apesar de todo o seu horror, está destinado a não ser mais do que um soluço, um percalço, um curto episódio de restauração em meio a um movimento lento, mas inexorável, em direção a mais democracia, mais igualdade, mais direitos”. Ele salienta, no entanto, que na busca de respostas a essas questões, é preciso “reconhecer o quanto do pesadelo já estava presente no sonho, isto é, o quanto que aquilo que veio à tona com o impeachment nunca tinha deixado de estar lá”. Esta compreensão é importante porque, conforme Nunes, “o impeachment, embora tenha sido efetivamente uma ruptura, não veio do nada”.
Este processo impacta diretamente a esquerda brasileira. O quanto de continuidade ou ruptura decorre do impeachment “é um eixo ao longo do qual se distribui hoje todo o espectro de posições disponíveis à esquerda brasileira”. Para Nunes, a questão não deveria ser a discussão sobre a natureza do que ocorreu, se foi golpe ou não, pois essa questão serve apenas para demarcar posições, “sem nenhum ganho cognitivo colocar o problema nesses termos”. Ele afirma que importa é saber o quanto há de ruptura e quanto há de continuidade, e apresente algumas questões que deveriam ser feitas: “Como chegamos aqui? Onde foi que nós erramos? Qual foi o nosso pecado? Excesso de radicalismo ou excesso de realismo?”.
Nunes recorre a outra caricatura para demonstrar o quanto considera exageradas e falsas as duas hipóteses: “Quanto mais perto da hipótese da continuidade absoluta, maior a ênfase vai ser no excesso de realismo, até chegar à tese de que não houve avanço nenhum nos governos do PT. E quanto mais perto da ruptura total, maior a ênfase no excesso de radicalismo, até chegar à tese de que vivíamos no paraíso até que um bando de baderneiros foi para a rua em 2013 e despertou a direita”.
A tese que ele acata é a de que “fomos vítimas do excesso de realismo”. Neste caso, a solução é “voltarmos a ser radicais”. Reconhece que pode soar estranho, na medida em que realismo for considerado uma virtude. “O problema, claro, está em que ao dizermos realistas implica que nós supomos que nosso acesso à realidade é seguro. Nós temos uma imagem confiável e exata daquilo que é real, e é de acordo com ela que nós agimos. Nós só somos objetivamente realistas quando uma imagem que temos da realidade de fato corresponda a ela”, explica.
Nunes lembrou que “2016 foi o ano em que o impossível não parou de acontecer”. Para corroborar a afirmação, lembrou alguns fatos do ano passado. O Brexit, “tão impensável até pouco tempo atrás, que o primeiro-ministro David Cameron acreditou que não haveria risco nenhum em convocar o referendo porque considerou que não haveria chance de ganhar”; nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump, “um aventureiro”, eleito “à revelia das lideranças tanto dos democratas, quanto dos republicanos, apoiado por uma versão repaginada do supremacismo branco”; o impeachment de Dilma Rousseff, “por meio de uma chicana, uma gambiarra parlamentar que, ainda no início de 2016, parecia uma possibilidade remota”. Sobre este conjunto de fatos, ele afirma que “as coisas mudaram de tal maneira que aquilo que antes seria tomado por impossível, agora é tratado como uma possibilidade merecedora de preocupação”. Por exemplo: o apoio expressivo que a revigorada Frente Nacional de Marine Le Pen tem tido na campanha presidencial na França, bem como no Brasil o crescimento das intenções de voto naquele cujo nome não deve ser dito”, em referência irônica a Jair Bolsonaro. “Que o impensável se torne possível ou venha a se materializar, é o indício de que uma realidade morreu, e com ela, uma certa maneira de ser realista.”
Nunes durante o evento no IHU (Foto: Vitor Necchi | IHU)
Ao tratar de temas relevantes e que devem pautar o debate sobre o futuro, Nunes abordou a questão da renda social, também chamada de renda universal ou renda básica. “É um caso perfeito de ideia um dia descartada completamente como utópica que não só tem recebido cada vez mais atenção, como já tem sido implementada em alguns programas pilotos pelo mundo”, salienta. Sobre o transporte coletivo, lembrou que a revogação do aumento do valor das passagens de ônibus em junho de 2013 deu visibilidade ao debate sobre a gratuidade da tarifa. Este tema era pautado há anos pelo Movimento Passe Livre, sem amplitude. As manifestações fizeram com que o assunto fosse discutido a sério em todo o país, mesmo que por um breve momento. “Também não podemos esquecer que foi um dos maiores quadros do PT, o então prefeito de São Paulo, uma das vozes mais proeminentes a desqualificar a proposta como utópica e irreal”, destacou.
Se o antídoto contra o excesso de realismo é a radicalidade, Nunes afirma que ela precisa ser definida. “Não me parece que a definição literal de ir até a raiz nos sirva de muita coisa. Não apenas porque ela não diz o mais importante, ou seja, onde está a raiz, que é a questão que justamente vem a ser o objeto de qualquer disputa política, mas também porque desejar ir à raiz não nos diz nada sobre como fazer para chegar até lá”, explica. “Eu acredito que o contraste de posições em torno da janela de Overton [conceito elaborado por Joseph P. Overton], entre uma extrema direita que se organiza para mover a janela, e uma centro esquerda cujo único plano é permanecer dentro dela, nos oferece uma pista mais segura.”
Nunes acredita que a tentativa de explicar fenômenos próprios de uma grande guinada à direita em escala mundial não é relevante. “As condições criadas pela crise global que se iniciou em 2008 poderiam justificar guinadas tanto à esquerda, quanto à direita, de modo que temos aí uma causa necessária, mas não suficiente, para entender o que se passa.” Para ele, é imperativo reconhecer que alguns setores da direita tiveram a perspicácia de se revelarem mais radicais do que os grandes partidos de centro-esquerda. Por radical, ele entende “uma prática política que age para transformar o campo do possível, ou seja, para expandir o leque de possibilidades que lhe são disponíveis”. A definição de radicalidade que ele adota revela que, se é radical, “envolve necessariamente uma relação com o atual, com uma situação concreta”.
Sobre o momento atual, considera que ele se caracteriza “pelo encurtamento dos horizontes, pela diminuição das possibilidades de qualquer alternativa progressista”. A leitura é pessimista, pois reconhece que a conjuntura é muito desfavorável, com escassas possibilidades imediatas. No entanto, destaca que era em uma situação assim que parte da direita se encontrava há pouco. “E o sentido de tudo o que foi dito até aqui é justamente o de que nós não podemos permitir que a conjuntura desfavorável sirva como motivo para não pensarmos a longo prazo, para seguirmos nos contentando em fazer o possível, para não nos colocarmos seriamente a questão do que, afinal de contas, nós queremos ver acontecer e o que devemos fazer para que isso aconteça”.
A questão é que nada mudará enquanto determinadas perguntas não forem feitas, pondera Nunes. “E se não as fizermos, seguiremos de recuo em recuo, de mal menor em mal menor, e o problema de escolher o mal menor – como dizia Hannah Arendt – é que logo a gente esquece que era o mal”. Não basta apenas assistir “ao agravamento da conjuntura e nos acomodando a um horizonte de possibilidades cada vez mais restrito dentro do qual só nos restará buscar conciliações cada vez mais indignas”.
Um dos problemas do excesso de realismo, e que deve ser evitado, é a superlativização das tendências negativas da conjuntura, pois tal postura elimina tudo o que ela tem de potencial latente. “Não se trata de negar que as coisas vão mal, mas de observar que elas também são contraditórias, logo não têm apenas um sentindo, nem caminham em uma única direção”, aponta. “É bem verdade que os bons realistas tendem a ser pessimistas, mas ser pessimista não faz de ninguém um bom realista.”
Nesse tipo de análise criticada durante a palestra, Nunes identificou alguns erros cruciais. O principal deles é “projetar categorias que expressam as posições disponíveis no sistema político sobre a realidade social”. O erro decorre do fato que isso “supõe aquilo que deveria provar, e é justamente aquilo que nós não podemos absolutamente supor hoje”. Ele lembra que “estamos vivendo uma crise de representação, e numa crise desse tipo, o que está em questão é justamente o fato de que o sistema político não representa fielmente a sociedade, de modo que é impossível interpretar a segunda nos termos do primeiro”. Em uma crise de representação, “a última coisa que se pode fazer é tentar ler as posições da sociedade a partir do quadro político disponível, pois esse quadro está em descompasso com a sociedade”.
“O Brasil é um país em que a grande maioria das pessoas não tem opção ideológica definida e está menos preocupada com identidades e discursos políticos do que com resultados, e não deve gratidão eterna a ninguém”, considera Nunes. Isso ocorre porque julgam seus representantes sobretudo pelos resultados, por isso a maioria avalia seus representantes como maus, por conta do descompasso entre interesses e desejos. A descrença é ampla e atinge instituições e o sistema político. O nível mais agudo desse fenômeno é recente e foi ampliado “pela implosão do PT, pelos escândalos de corrupção, que é o que tenho chamado de crise de representação”. Conforme a sua leitura, ainda não foi avaliado “o quanto o PT era a fantasia que sustentava o sistema partidário da Nova República como um todo, porque era o partido que tinha a função de representar tudo aquilo que não estava representado nos outros partidos, assim como o PT tinha a função de ser o partido que era honesto, enquanto todos os outros não eram”. Se isso desmorona, o mesmo acontece com todo o sistema, “porque são todos desonestos, e todos representam as mesmas coisas”.
Neste cenário de descrença na política e de desmobilização, Nunes acredita que justamente agora, “porque vivemos com o nervo exposto da crise aguda de representação, e essa insatisfação com o sistema político é transversal a qualquer sistema binário que se pudesse fazer entre direita e esquerda, talvez exista uma oportunidade história e ímpar de mobilizar mesmo esta camada mais profunda, onde o descrédito vira desalento”. No entanto, reconhece que não tem a receita. Ao mesmo tempo, propõe um primeiro passo, que seria listar as coisas para as quais é preciso oferecer algum tipo de resposta. Por exemplo, a questão dos serviços, da universalidade e da qualidade.
Partindo do que Nunes chama de empreendedorismo popular, pode-se chegar a uma defesa da universalidade e da qualidade dos serviços públicos e de mecanismos que maximizem uma rede de segurança e a igualdade de oportunidades. Na prática, isso é obtido por meio da tributação. “Esse acordo aponta necessariamente para uma grande reforma tributária progressiva, a grande reforma que ninguém consegue fazer.” No seu entendimento, essa reforma será viável apenas se a sociedade se mobilizar e pressionar. “E se nós não fizermos esta pressão, a Fiesp fará, e a reforma tributária que eles querem não é a mesma que nós gostaríamos”, comenta.
Para tal intento, ele considera que teria que ser feito “a única coisa que o PT jamais cogitou fazer em prol de todas as reformas que pretendeu um dia fazer, que era botar gente na rua”. Na sua avaliação, esse seria momento dessa mobilização ocorrer, pois reconhece “a transversalidade da insatisfação generalizada com o sistema político e com as instituições”, similar ao que ocorreu em junho de 2013. Um pacto dessa natureza apontaria, “via reforma tributária, para a direção da qualificação e da universalização dos serviços públicos por meio da articulação de um discurso e de uma prática antielitista”. Mas é preciso ir adiante e, mais à frente, se pensar em renda social. “Cada vez mais está se tornado irrealista achar que a questão da renda social é irreal.” Assim como é necessário lidar com o déficit democrático e fazer, além da reforma tributária, a política.
“É o tipo de coisa que se a sociedade não se organizar para elaborar uma proposta, como diziam em maio de 68 na França, se você não cuida da política, a política vai cuidar de você”, destaca Nunes. “Se nós não elaborarmos uma proposta, a proposta que aparecer vai ser, certamente, bastante ruim, mas tem alguns passos que se pode começar a dar desde já para transformar a participação política.” Em primeiro lugar, “organização, organização, organização, e estudar, estudar, estudar”. Também destaca que deveria ser rompido o monopólio da representação. “Os movimentos sociais deveriam entrar em uma fase de promiscuidade virtuosa”, defende. Ao resumir a situação, reconheceu que “o problema do PT é ele saber que os seus eleitores não têm outro lugar para ir, e sempre que o representado depende do representante mais do que o representante depende do representado, a relação de representação se desvirtua”.
Assista à conferência na íntegra:
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Brasileiros acordaram de um breve interlúdio de esperanças e promessas para voltar à dura realidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU