04 Abril 2017
É um problema tão grave que, de acordo com um destacado historiador da Igreja, nem mesmo o Papa Francisco se arrisca a falar sobre.
É o modelo ultrapassado do sacerdócio católico e, de um modo mais significativo ainda, de como os candidatos ao ministério ordenado são selecionados e preparados para o serviço ao Povo de Deus.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por Commonweal, 27-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Recentemente o professor Alberto Melloni, da Fundação João XXIII para as Ciências Religiosas (Bolonha, Itália), apontou que o arquétipo de padre atual remonta a mais de 400 anos atrás e às reformas decorrentes do Concílio de Trento (1545-1563).
“Esta formidável invenção do século XVI, que moldou a cultura e a política, a psicologia e a vida interior, a arte e a teologia do Ocidente e das suas antigas colônias, não desapareceu (são cerca de 420 mil padres no mundo), mas, há mais de três séculos, está em crise, observou Melloni em artigo publicado no jornal romano La Repubblica em 22-03-2016.
“Em noventa anos passamos de 15 mil para cerca de 2.700 seminaristas”, destacou.
Mas essa queda nos números não é o sinal mais preocupante deste modelo ultrapassado de formação sacerdotal.
Diferentemente, Melloni diz ser “a queda das qualidades intelectuais” dos homens que escolhem se juntar ao sacerdócio e os bispos que os ordenam. E, além disso, há o fato de que o atual sistema continua a ser terreno fértil do “vício” que o professor corretamente identifica como “clericalismo”.
Melloni, a principal voz da chamada “Escola de Bolonha”, sustenta que a “perda do papel e a negligência afetiva” dos padres têm levado à “exaltação do celibato que aprisiona a sexualidade em busca de sublimação até atrair ao presbiterado pessoas não resolvidas, ou mesmo doentes”.
O Papa Francisco disse o mesmo nas numerosas ocasiões em que falou sobre a seleção e formação dos candidatos ao ministério ordenado.
Em novembro de 2013, num encontro a portas fechadas com os superiores de ordens religiosas masculinas ele contou que padres com uma formação precária acabam sendo “pequenos monstros” que, depois, “formarão o Povo de Deus”. Segundo o papa, isso lhe dá “arrepios”.
Em seguida, o pontífice passou a advertir os superiores sobre a tendência dos seminaristas que “seguem as regras sorrindo demais” apenas para concluir as etapas de formação e serem ordenados.
“É essencial evitar todas as formas de hipocrisia e clericalismo através de um diálogo franco e aberto sobre todos os aspectos da vida”, disse Francisco.
Em 2015, advertiu os bispos e formadores a manterem cautela diante de candidatos a padre que são “rígidos” ou, porque “não estão conscientes” de que encontram-se psiquicamente doentes, “e procuram para a sua vida estruturas fortes que os defendam, de maneira a poder ir em frente”.
Sempre que falou sobre a seleção e formação sacerdotal, o papa deu a entender que conhece os graves problemas existentes. E não é segredo algum que encontramos a oposição mais obstinada em seus esforços para renovar a Igreja entre os seminaristas, padres e, mais recentemente, entre aqueles bispos que os ordenaram.
Porém, como o professor Melloni mostrou, o papa não pode sair por aí dizendo claramente a causa originária do problema – o sistema de formação nos seminários horrivelmente inadequado e o modelo ultrapassado de sacerdócio que tem se perpetuado.
Na verdade, segundo comentários feitos menos de quatro meses após a sua eleição, Francisco parece convencido de que o atual sistema deveria permanecer intacto.
“Penso sempre nisto: é melhor o pior seminário do que nenhum seminário! Por quê? Porque é necessária esta vida comunitária”, disse ele num encontro com os seminaristas, os noviços e as noviças de ordens religiosas.
Isso talvez desdiga a sua formação na Companhia de Jesus. Como a grande maioria das ordens religiosas, é regra geral (embora haja exceções) que os jesuítas continuem a viver juntos em comunidades unissex de vários tamanhos, mesmo depois do noviciado e na formação inicial.
Os padres diocesanos, por outro lado, tendem morar em pares ou, o que é mais frequente, sozinhos. A comunidade primeira deles é a paróquia, composta de homens e mulheres que, normalmente, formam famílias com filhos. Não é o presbiterado local todo composto por homens (estes são os seus padres irmãos na diocese).
E, mesmo assim, o sistema seguido pelos seminários, a mando do Vaticano e que data de meados do século XVI, continua a dar aos futuros padres diocesanos uma formação toda masculina, quase monástica. As mulheres, por exemplo, e os homens que não são padres em geral constituem uma presença minoritária nos seminários.
É de surpreender a quantidade de seminários que ainda hoje regulam, cuidadosamente, quase sempre a hora de acordar dos seminaristas, num regime que se assemelha a um “horarium” monástico. Estes lugares de formação simplesmente não formam homens para a vida que estarão liderando após a ordenação. Apenas durante as férias de verão é que os seminaristas de fato têm a oportunidade de viver em um ambiente paroquial.
E mesmo aí eles estão entre homens com o mesmo fundo cultural de seminário, em que a mentalidade de compor um grupo (uma casta) à parte do resto do Povo de Deus é fomentada e cria raízes.
Eis um enigma que precisa ser estudado de perto. E talvez este trabalho possa começar no Sínodo dos Bispos, quando Francisco o convocar em 2018. O tema pare este encontro – “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional” – pode ser uma oportunidade singular para expandir o debate sobre as vocações religiosas e para ter um olhar mais amplo e corajoso sobre os ministérios na Igreja.
No começo de março, o papa reconheceu em entrevista ao jornal alemão Die Zeit que pouquíssimos eram aqueles que entravam para os seminários – pelo menos nos países desenvolvidos. Disse que, em parte, esta situação devia-se ao baixo índice de natalidade.
“Se não há crianças, não haverá sacerdotes. Acredito que este é um problema grave que devemos enfrentar no próximo Sínodo sobre os jovens”, disse.
“Hoje, temos muitos jovens que depois arruínam a Igreja, porque não são sacerdotes por vocação”, continuou o papa.
“A seleção é decisiva, mas também o é a indignação das pessoas”, completou Francisco.
Perguntam-se por que não há padre na paróquia para celebrar a Eucaristia, ao que o papa falou: “A falta de padres enfraquece a Igreja, porque uma Igreja sem Eucaristia não tem força”.
A conclusão de Francisco: “As vocações sacerdotais são um problema, um problema enorme”.
Este problema vem crescendo, mesmo nas décadas imediatamente anteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Mas como notou Alberto Melloni no artigo acima citado, trata-se de um problema a que os homens na Igreja “fecharam os olhos, especialmente aqueles que estão sob as mitras episcopais”.
Isso vale para a quantidade e para a qualidade.
O Vaticano II procurou pôr a Igreja e suas estruturas e mentalidade tridentinas dentro da era moderna. Mas basicamente nada fez para atualizar a doutrina e a praxis dos ministérios na Igreja, assim como nada fez para com os tipos de candidatos ao sacerdócio ordenado e o modo como eles deveriam ser preparados e formados.
Houve discussões sobre estes temas nos primeiros anos após o Concílio, mas não muito depois de João Paulo II se eleger em 1978 anularam-se os esforços para concretizar o impulso reformista do Concílio.
“Com efeito, a partir de meados da década de 1980, até a primeira década deste século, sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, temos testemunhado a prevalência de uma – não de maneira uniforme, porém ainda sim pesada – forte descontinuidade com o Vaticano II”, destaca Andrea Grillo, leigo casado que leciona teologia e liturgia na Pontifícia Athenaeum de Sant’Anselmo em Roma.
Ele diz que o Papa Francisco reconectou a Igreja com o Vaticano II ao reconfirmar que o “caminho do Concílio” é o caminho a ser seguido.
“À luz de mais de 30 anos de ‘falta de recepção’ do Concílio, o avivamento que Francisco realiza inevitavelmente parece uma aceleração súbita”, disse o professor.
Porém Grillo diz também que isso só acontece porque os dois últimos papas apertaram o botão do “stand by” ou “slow motion” na implementação do Vaticano II. Diferentemente, afirma que o Papa Francisco apertou o botão “play” e, ao assim fazer, continuou um processo interrompido décadas atrás.
“O clima que Francisco criou inquieta somente os que temem a nossa mais profunda tradição e que querem se agarrar exclusivamente às estruturas do passado”, escreve Grillo.
Então, aonde isso tudo nos leva com a questão urgente destacada por Melloni; isto é, a necessidade de radicalmente repensar a figura, o papel e a preparação dos padres?
A primeira coisa a notar é que o papa que disse ser melhor ter seminários ruins do que não ter seminário algum é o mesmo papa que tem mostrado uma capacidade surpreendente de escutar, aprender e mudar de ideia.
Nos quase quatro anos desde que proferiu estas palavras, Francisco teve uma oportunidade muito maior de ver e ouvir sobre o real estado da formação seminarista ao redor do mundo. E podemos imaginar que ele não encontrou uma vista muito bela.
Mas o papa não é inconstante. Ele não muda de ideia ou de convicção apenas por capricho. Há indícios de que o seu processo de pensar é guiado de perto por um exercício contínuo de discernimento orante e prolongado.
E isso inclui consultas, discussões e debates com pessoas de pontos de vistas diferentes, vindas de experiências variadas dentro da Igreja.
Francisco entende que a Igreja e o mundo onde ela encontra a sua morada estão passando por uma transformação massiva que deve ser vivida com ousadia e criatividade.
“Pode-se dizer que hoje não vivemos uma época de mudança mas uma mudança de época”, disse ele a lideranças (leigos e do clérigos) da Igreja italiana em 2015.
“Portanto, as situações que vivemos hoje apresentam desafios novos que para nós às vezes são até difíceis de compreender. Este nosso tempo exige que vivamos os problemas como desafios e não como obstáculos”, disse.
Em seguida, Francisco convidou a um “aprofundamento da Evangelii Gaudium, a fim de haurir dela critérios práticos e atuar as suas disposições”.
Nas páginas deste documento – a visão do papa para renovar e reformara Igreja –, podemos encontrar a razão pela qual o papa pode considerar difícil reformar os seminários (embora ele não diga explicitamente isso).
No começo de Evangelii Gaudium, ele admite que “Há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador” (EG, 26).
Mais adiante, afirma sonhar com uma “opção missionária” que seja “capaz de transformar tudo”, incluindo “os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial” (EG, 27).
Transformar significa mudar. E se decidirmos crer exatamente nas palavras que o papa diz, então as estruturas como os seminários podem obviamente ser transformadas.
Além disso, ele parece pensar, mais que a maioria dos bispos, que os católicos mais propensos a exigir o tipo de mudança que a Igreja realmente necessita são os membros mais jovens.
“Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida no mundo atual” (EG, 108).
Francisco pediu que os jovens católicos acrescentem suas vozes – esperanças e inquietações, alegrias e críticas – à fase preparatória hoje em curso para o próximo Sínodo dos Bispos.
Serão estes jovens ousados o suficiente para levantar os problemas urgentes que sequer ele, o papa, se atreve a falar a respeito? E se eles os levantarem, os bispos lhes escutarão?
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O problema dos seminários católicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU