21 Março 2017
Via de regra, o cinema autoral praticado no Ocidente desde a virada do século XXI tem primado por uma aproximação da linguagem documental, um despojamento e naturalismo que marca obras dos celebrados irmãos Dardenne, por exemplo, e também boa parte da produção independente na América Latina atual.
A entrevista é de Diego Olivares, publicada por CartaCapital, 15-03-2017.
Eugène Green vai na contramão desta tendência. Em seus filmes as situações e atuações são propositadamente “artificiais”, dando a impressão por vezes de estarmos diante de uma peça de teatro. O cineasta, porém, rejeita a comparação: “O cinema é o contrário absoluto do teatro: no teatro, tudo o que se vê é falso, é disso que nasce a verdade; no cinema, tudo o que se filma é verdadeiro”, define.
Nascido em Nova York em 1947, ele foi para Paris durante os anos 60 e lá se estabeleceu. Naturalizou-se francês e desde então só se refere ao país natal como “Barbaria”, um nome que parece ainda mais apropriado em plena Era Trump. “A pessoa que a dirige atualmente é um perigo para o mundo inteiro”, alerta. “Mas talvez graças a isso, o mundo possa compreender o perigo e buscar se libertar da dominação da Barbaria.”
Enquanto o mundo vai sendo tomado por discursos de ódio e violência, os filmes de Green tentam um diálogo com a espiritualidade. O Filho de Joseph, que chega esta semana ao Brasil, é o mais recente deles e foi inspirado na história bíblica do Sacrifício de Abraão. De acordo com a Bíblia, Abraão teve de provar sua obediência a Deus ao sacrificar o filho Isaac – a passagem também serviu de base para uma famosa obra de Caravaggio, que aparece durante o longa.
A ideia de paternidade é, portanto, predominante na obra. Vincent (Victor Ezenfis) é um adolescente solitário, que se ressente da mãe (Natacha Régnier) por nunca ter conhecido o pai. Um dia, no entanto, o menino descobre a identidade do sujeito e vai atrás dele, deparando-se com o arrogante e egoísta agente literário Oscar Pormenor (Mathieu Almaric).
Frustrado, Vincent acaba sendo “adotado” por acaso pelo tio, Joseph (Fabrizio Rongione). É a partir da relação entre os dois que o protagonista se sente finalmente acolhido.
“É uma questão muito atual, primeiro, porque existem muitos meninos que, como Vincent, não conhecem o seu pai ou que vivem com vários pais. Depois, porque a transmissão foi interrompida na minha geração”, explica Green, referindo-se ao costume da troca de experiências e conhecimento entre pais e filhos. “A transmissão pode fazer tão bem, muitas vezes melhor, por pais espirituais, do que por pais ‘biológicos’.”
Eis a entrevista.
O filme pode ser interpretado como uma versão moderna de uma parábola bíblica. Para você, qual é o papel fundamental da religiosidade no mundo de hoje?
Para mim, a espiritualidade é um elemento essencial da humanidade. O mundo contemporâneo é profundamente materialista, e muitas pessoas ressentem a necessidade de uma vida espiritual, a buscam fora de uma religião. Isso é possível, mas não é possível fora de uma tradução religiosa, porque a verdade da espiritualidade não tem nome nem forma. E precisamos de imagens e de metáforas para atingi-la. Todas as traduções religiosas nos dão estas, e a minha é a europeia, quero dizer a judaico-cristã. É por isso que utilizo estas referências bíblicas.
Seus trabalhos são marcados pelo tom barroco e uma certa teatralização da mise en scène e das atuações. O que te leva a fazer este tipo de experiência, normalmente restrita aos palcos, também no cinema?
Para mim, o cinema não pode ser barroco, porque é um período histórico. Nem teatral, porque o cinema é o contrário absoluto do teatro: no teatro, tudo o que se vê é falso, é disso que nasce a verdade; no cinema, tudo o que se filma é verdadeiro. Os elementos pessoais da minha linguagem cinematográfica têm como fim tornar visível uma realidade escondida. Se existem modelos antigos disso, se encontram nas obras de grandes cineastas, como Bresson ou Ozu, e não no teatro.
O tipo de cinema que você faz vai numa contramão ao naturalismo de autores, por exemplo, como os irmãos Dardenne [produtores de O Filho de Joseph]. O que você acha destes filmes de ficção que se aproximam da linguagem de documentários?
Os filmes dos irmãos Dardenne são verdadeiras ficções, com muitas referências cristãs (mas são mais “escondidas” que as minhas). Mas geralmente não gosto das ficções que querem ser documentários.
O Filho de Joseph carrega também uma sátira ao mundo dos falsos intelectuais, no caso entre agentes e críticos literários. Acha que existe muito disso atualmente?
Eu sou também escritor, já publiquei quinze livros e conheço este meio. A parte satírica do filme é… quase documentário.
O filme também discute as relações familiares, principalmente a paternidade. De onde surgiu seu interesse em tratar desta questão?
É uma questão muito atual, primeiro, porque existem muitos meninos que, como Vincent, não conhecem o seu pai ou que vivem com vários pais. Depois, porque a transmissão foi interrompida na minha geração, e a transmissão pode fazer tão bem, muitas vezes melhor, por pais espirituais, do que por pais “biológicos”.
Você nasceu nos EUA, mas está radicado na França há muito tempo. É verdade que você se refere a seu país natal apenas como “Barbaria”? Existe algo que você gostaria de comentar sobre o atual presidente de lá?
É verdade. Eu chamo esta entidade, desde sempre de Barbaria. A pessoa que a dirige atualmente é um perigo para o mundo inteiro! Mas talvez graças a isso, o mundo possa compreender o perigo e buscar se libertar da dominação da Barbaria.
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“Precisamos de imagens e metáforas para atingir a espiritualidade”. Entrevista com Eugène Green, diretor do filme 'O Filho de José' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU