16 Dezembro 2016
Uma percepção dos porto-alegrenses que vivenciam a rotina da Capital está confirmada em números: a população de rua aumentou — e muito. Conforme pesquisa divulgada nesta quinta-feira pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), o número de pessoas adultas que moram nos logradouros de Porto Alegre cresceu 75% nos últimos oito anos.
Em 2008, quando foi realizado o último levantamento qualitativo desse grupo, 1.203 pessoas viviam nas ruas. Em 2016, o número subiu para 2.115. E, se considerados somente os últimos cinco anos, o aumento foi de 57%.
A reportagem é de Bruna Scirea, publicada por Zero Hora, 16-12-2016.
O raio X, realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), traz a instabilidade familiar e o uso de drogas e de álcool como os principais motivos da ida para a rua. Um quarto dos entrevistados pelo grupo afirmou estar a menos de um ano vivendo em espaços públicos da cidade. E a pesquisa mostra que o tempo de permanência em situação de rua não é curto: quase metade dos moradores estão nessa condição há mais de cinco anos — 30% deles já contabilizam mais de uma década e 10% mais de 20 anos fazendo de marquises e viadutos suas residências.
A pesquisa mostra ainda que a maior parte da população abordada pelo estudo (52,1%) dorme cotidiana e prioritariamente em lugares de risco, improvisados e com forte exposição a condições climáticas. E é pequena a tendência de crescimento do uso dos serviços oferecidos, bem como a procura por albergues e locais de pernoite disponíveis.
— Eles adquirem um senso de liberdade própria. Para eles, morar na rua passa a ser uma normalidade. São necessárias políticas mais específicas. As experiências são poucas até agora e não deram resultados. Se eles estão há tantos anos nessa condição social, sair dela passa a ser um processo mais lento. E os poderes públicos querem resultados mais imediatos, e aí é que encontram dificuldades — afirma o sociólogo Ivaldo Gehlen, um dos responsáveis pela pesquisa.
De acordo com a Fasc, a ampliação da população de rua mostra que o órgão está "estrangulado" em seus serviços, que não devem apenas ser melhorados, mas também ampliados. Em relação a estratégias futuras, a fundação limitou-se a dizer que os dados serão analisados por técnicos de diversas áreas da rede de atenção: a ideia é descobrir os caminhos que funcionam e aqueles que não têm mostrado resultado.
— O que temos hoje aqui (a pesquisa) é um passo que esperávamos há bastante tempo. Agora, vamos dissecar cada uma das questões que estão colocadas e, ao lado dos movimentos sociais, tomar decisões, pensar estratégias e trabalhar — disse o presidente da Fasc, Marcelo Soares, lembrando que apenas uma parte da rede de atenção à população em situação de rua é formada por assistentes sociais.
As secretarias municipais de Saúde e de Habitação, áreas que abrangem boa parte das demandas dessa população, não enviaram representantes para a reunião de divulgação dos dados.
Para movimentos sociais e especialistas no assunto, o aumento da população de rua reflete a ineficácia das políticas públicas voltadas para esse grupo — marcadas, segundo eles, por práticas "higienistas" e estratégias e serviços que não levam em conta a lógica dos que vivem nas ruas.
— Em vez de adotar políticas eficazes, de inclusão, a prefeitura optou pela prática da higienização. Se é verdade que existem pessoas em situação de rua com sofrimento psíquico na cidade, onde estão os residenciais terapêuticos que a Secretaria de Saúde deveria ter? Se é verdade que tem usuários de álcool e outras drogas na rua, onde está o Programa de Redução de Danos? Existe um aumento dessa população, e ele é fruto da verdadeira incapacidade de fazer gestão — critica Richard de Campos, coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua no Rio Grande do Sul.
Pesquisas semelhantes divulgadas em outras cidades também revelam o aumento da população de rua. Marilene Maia, professora de Serviço Social na Unisinos e coordenadora do Observatório das Políticas Públicas do Vale do Sinos, reforça uma incapacidade anterior: a de garantir proteção social aos grupos vulneráveis.
— Existe um déficit significativo de moradias. Há uma população enorme que não tem sua saúde mental acompanhada. E tem pessoas que vivem em territórios violentos e enxergam a rua como uma estratégia de sobrevida. Mais recentemente, ainda se observa os reflexos da situação econômica do país entre essas causas, que são determinadas por uma lógica que exclui esse grupo de todos os processos de distribuição de riqueza — lembra Marilene.
A pesquisadora defende que uma nova perspectiva somente poderá ser traçada quando a população de rua for reconhecida como igual em relação aos outros cidadãos em demandas e anseios.
— Existe hoje um tratamento de coisificação dessas pessoas. Quem diz o que elas querem são os gestores, a sociedade, os empresários. Só que essa população tem o que dizer e tem o que querer. Este é o princípio fundamental: dar ouvidos a ela, realizar uma participação conjunta. Enquanto tivermos essa relação, não conseguiremos ter efetivas mudanças na realidade — diz a professora.
Não faz muito que o Brasil acordou para a necessidade de prover os moradores de rua de recursos necessários para que possam superar a situação. É de 2009 a Política Nacional para População em Situação de Rua. As estratégias lá do início, de forte caráter assistencialista, foram aos poucos sendo substituídas por outras, baseadas em políticas públicas intersetoriais, que visam à habitação como última etapa do processo. Esse modelo, ainda vigente no país, está com os dias contados.
Na metade deste ano, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal passou a inserir em programas e seminários com órgãos estaduais e municipais uma nova concepção, baseada no modelo "housing first", já adotado por Estados Unidos, Canadá e países da União Europeia. O modelo prioriza a política habitacional, partindo de um princípio óbvio: quem está na rua está lá porque não tem casa.
— O que acontece hoje: são pessoas que recusam o atendimento dos serviços públicos porque a qualidade é tão ruim que elas preferem ficar na rua do que serem atendidas. O que estamos propondo é uma mudança de concepção, de forma mais digna, priorizando a habitação. Já foi comprovado nos outros países que as pessoas inseridas na habitação têm muito mais condições de alcançar resultados nas outras políticas — afirma Carlos Ricardo, coordenador-geral dos Direitos da População em Situação de Rua da SDH.
Dentro das políticas habitacionais que devem ser intensificadas nos próximos anos, estão aluguel e hotel social, habitação de interesse social, programa Minha Casa, Minha Vida e moradias temporárias, como abrigos e albergues — só que em formato mais atrativo. Neste sentido, a SDH vê como iniciativa-exemplo no país o Condomínio Social inaugurado há dois anos em Curitiba, modelo de habitação que garante autonomia aos moradores.
— Precisamos ter albergues 24 horas, em que as pessoas possam entrar e sair quando quiserem, tendo seus espaços garantidos. Hoje, com os albergues, não é permitido que a população de rua crie a rotina. Ela fica vinculada ao horário de funcionamento dos equipamentos públicos — afirma Ricardo.
No modelo brasileiro, a habitação deve ainda dividir o topo de prioridades com a profissionalização e a inserção no mercado de trabalho — medida que visa a uma maior autonomia dos atendidos. Quando questionado sobre a grande carência habitacional em todo o país (só em Porto Alegre, o déficit chega a 38,6 mil moradias), Ricardo reconheceu que a estratégia pode ser polêmica, mas deve se refletir como política para todos os públicos vulneráveis, não somente o de rua.
— Temos de avaliar resultados dos projetos que estamos iniciando e considerar custos. O que sabemos por exemplos do mundo afora é que o modelo que prioriza habitação é mais barato — afirma o coordenador da SDH.
Patrice Schuch, antropóloga da UFRGS e uma das responsáveis pela pesquisa na Capital, reforça que a população de rua reconhece a habitação com uma de suas principais lutas:
— Houve uma grande menção sobre o aluguel social, que é uma das possibilidades além do albergamento e do abrigamento dessa população. É um serviço com o qual as pessoas de situação de rua querem muito contar, mas ainda têm dificuldades como enfrentar a burocracia. O que parece é que essas alternativas precisam ser mais trabalhadas, receber mais investimentos.
A pesquisa aponta que as alternativas de habitação são demandas essenciais.
O Departamento Municipal de Habitação (Demhab) não respondeu às solicitações de ZH sobre o número de moradores de rua que são beneficiários ou aguardam na lista dos programas habitacionais. Segundo dados do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), 60 pessoas que vivem na rua estão desde 2010 em uma fila do Demhab para acessar ao Minha Casa, Minha Vida — número desatualizado, já que a lista foi fechada e só será reaberta após a inclusão dos primeiros inscritos. Moradores de rua que recebem aluguel social são cerca de 110, conforme o MNPR.
— Muitas pessoas não conseguem se organizar em um albergue, mas se organizariam perfeitamente em uma casa. Pelo menos uma parte dos cerca de 40 mil imóveis abandonados da cidade poderiam ser utilizados como habitação de interesse social. Isso faria com que as pessoas em situação de rua conseguissem ter uma moradia digna e, assim, liberar vagas nos abrigos, promovendo maior circulação. Mas a prefeitura não tem vontade para isso — critica o representante do MNPR.
ZH tentou contato com o vice-prefeito eleito da Capital, Gustavo Paim, que trabalha na montagem do governo, mas não obteve retorno. Em entrevista sobre a população de rua, publicada no sábado, ele afirmou que, em um primeiro momento, o foco está "em receita-despesa" e que questões específicas ainda "não estão no horizonte".
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Em oito anos, população de rua de Porto Alegre cresce 75% - Instituto Humanitas Unisinos - IHU