22 Agosto 2016
As razões são diversas, mas muitas delas passam pela falta de condições para arcar com o aluguel e pela ausência de políticas públicas. O fato é que quem circula pela região central de Porto Alegre percebe o aumento da população de rua. Sob o viaduto Otávio Rocha, ponto histórico da Capital, numa caminhada na tarde da última quarta-feira (17), foi possível contar mais de dez pessoas improvisando moradias com divisórias feitas de lonas e papelão, guardando seus pertences em carrinhos de supermercado ou à espera da boa vontade alheia para a primeira refeição do dia.
Na praça Conde de Porto Alegre, Wagner vive em sua barraca roxa | Foto: Guilherme Santos/Sul21
A reportagem é de Débora Fogliatto e publicada por Sul21, 20-08-2016.
Há quatro meses, Maria Generice parou nas ruas após ter um surto psicótico. Com problemas de saúde mental, ela foi internada em hospitais, chegou a frequentar centros de atendimento psicossocial (CAPS), mas acabou no viaduto Otávio Rocha. Misturando realidade e delírio, ela menciona que grande parte das pessoas em situação de rua precisam de atendimento psicológico. “Eu sou artesã, sou da cultura, cantora, não era pra eu estar aqui. Estou numa peregrinação, não vou ficar aqui embaixo muito tempo”, afirma, explicitando a falência de políticas de saúde e moradia, que não conseguiram impedi-la de virar sem-teto.
Ao seu lado, Paulo Roberto Evangelista comia, em silêncio, feijão, arroz e frango assado em um prato de plástico, refeição que contou ter sido doada na noite anterior e guardada para o almoço. O tempo em que está na rua é o mesmo de Maria: quatro meses, que marcam o momento em que brigou com a esposa, afundou-se no álcool e não teve para onde ir. Aposentado por invalidez após cair de um andaime quando trabalhava em uma obra, Paulo também é esquizofrênico, e abre um sorriso nostálgico ao ser questionado se gostaria de estar em uma casa ou se prefere a rua. “Eu não gosto nem um pouco, queria voltar para casa ou conseguir outro lugar para morar. Nunca passei por isso antes, minhas irmãs nem sabem que estou nessa situação”, relatou ele, que pretende conseguir dinheiro para encontrar uma delas, em Guaíba.
Maria e Paulo Roberto são apenas dois dos diversos moradores do Otávio Rocha. Alguns já estão lá há muitos anos, outros chegaram há poucos meses. Embora chame mais atenção por reunir muitas pessoas sem outra opção de moradia no coração da cidade, o viaduto não é o único refúgio daqueles que não têm acesso às políticas sociais na Capital. A algumas quadras dali, na praça Conde de Porto Alegre, Wagner Ribas de Oliveira, — que está nas ruas desde os 10 anos de idade — atualmente, faz de uma barraca roxa sua moradia. Segundo ele, há meses tenta conseguir aluguel social a partir do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), mas não obteve sucesso. Por enquanto, a única atenção que recebeu de órgãos públicos foi da Guarda Municipal, que já teria retirado sua barraca da praça diversas vezes e com a qual ele teria entrado em confronto ao revidar. “Acho que fiquei fichado por agressão a policial, por isso não consigo a moradia. Mas eles vêm aqui e começam a chutar minha barraca, o que eu vou fazer?”, questiona.
No bairro Menino Deus, duas praças próximas à Rótula do Papa também abrigam moradores com histórias distintas. Aos 25 anos, Daiane Krug está nas ruas há poucos meses, após ter que abandonar sua casa às margens do Arroio Cavalhada, devido às constantes enchentes. Agora, vive com o marido e a cadela Princesa em uma barraca, cercada por outros pertences, como panelas, potes, roupas e até uma plantinha em um vaso. “Eu sonho em um dia a gente ter uma casinha nossa, com os meus filhos também”, revela a jovem, contando que as três crianças atualmente vivem em abrigos.
Os pequenos já não moravam com ela quando vivia “à beira do valão”, pelo fato de a área ser considerada de risco, mas o sistema de abrigagem permitia visitas semanais. Agora, sem um endereço, isso não é mais possível. “Ainda não sabemos se eles vão para outra família ou não, isso vai ser decidido pela Justiça. O de 7 e a menina de 5 iam ficar revoltados, o de 2, eu não sei se entende muita coisa”, conta ela. Durante o dia, ela e Princesa cuidam da “casa” enquanto o marido é guardador de carros, porque caso deixe os pertences sem vigia, eles podem ser roubados, explica. O mesmo problema é relatado por outras pessoas em situação de rua, que muitas vezes preferem não ter nem colchões pela possibilidade de serem roubados.
A praça escolhida para morar carrega lembranças de tempos melhores: era um dos locais onde Daiane levava as crianças para brincar, quando se encontravam. A jovem, que estudou até a sétima série, conta que, apesar de haver projetos por parte da Prefeitura para reassentar as famílias da chamada Vila do Resvalo, ela não teve condições de esperar pela nova moradia. “Ainda tem muita gente morando lá, a minha sogra ficou, mas além dos alagamentos, tem muito movimento de drogas”, afirma Daiane.
Do outro lado da avenida Azenha mora o “vizinho” Jonas Tessmann, conhecido como Alemão, em uma “casa” improvisada com lonas. Há cerca de um ano, ele se separou da esposa e, sem conseguir emprego, ficou sem dinheiro e sem escolha. “Não estou achando nada bom. Penso em ir para Criciúma ficar com a minha mãe, mas aqui tenho meu filho, que está com minha ex-mulher”, relata ele, que afirma querer “se ajeitar” e, por isso, busca não se envolver com dependentes de drogas ou álcool. “Percebo que tem cada vez mais gente na rua, acho que pela falta de empregos e falta de condições de pagar aluguel. Ninguém quer dar emprego. E eu não gosto de ir para albergue porque não posso levar nada e teria que ficar amontoado com um monte de gente”, diz.
Observadora, Clégia Enar também percebe que houve um aumento na população de rua. Ela, que mora há 12 anos em um terreno abandonado na avenida Loureiro da Silva, diz estar cansada e afirma que gostaria de, em algum momento, voltar a ter uma casa. Por enquanto, fala com carinho da lona, embaixo da qual ficam todos os seus pertences: alguns alimentos não perecíveis, livros, cobertores. Ao lado da cabana, cozinha em um fogão à lenha improvisado, no chão. Recicladora autônoma, Clégia tem a sabedoria das ruas, nas quais aprendeu a “respeitar e ser respeitada”. “Eu fico na minha, ninguém se mete comigo. Se pedirem pra comer comigo, eu reparto, dentro do respeito, da amizade. Tenho duas amigas e oito amigos, todos se dão comigo, mas cada um sabe da sua vida”, conta ela, que está na rua por desavenças familiares.
Fasc admite aumento: “demonstração de grave crise social”
O crescimento no número de pessoas em situação de rua também é observado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão responsável por políticas públicas para essa população. O presidente Marcelo Soares avalia que há um empobrecimento geral da população. “Estamos vivendo um momento em que o que vemos nas ruas é a demonstração de uma crise social causada pela crise econômica. Existe um agravo considerável também no que diz respeito à violência, o que acaba fazendo com que famílias ou indivíduos sejam expulsos de suas casas, ou saiam de comunidades carentes pra fugir da questão do tráfico e acabam parando nos logradouros públicos”, aponta.
A Fundação vem fazendo, em parceria com a Ufrgs, uma pesquisa quanti-qualitativa para atualizar as estatísticas referentes a pessoas sem-teto em Porto Alegre, que deve ficar pronta até o fim deste ano. O último dado é de 2011 e dá conta de 1.347 pessoas nesta situação, mas atualmente, apenas entre os que acessam os serviços de assistência, o número é de 1.652. Com o aumento, a Fasc colocou 44 novos profissionais nas equipes de abordagem, que agora trabalham também nos finais de semana e após as 19h. “As políticas públicas envolvem também questões psíquicas, de saúde mental, há um grande percentual de processos de desagregação familiar, e aí [as pessoas] acabam entrando no uso de substâncias psicoativas”, diz Marcelo, mencionando ainda que é preciso pensar no processo de auto-estima e geração de renda para essa população.
A Fasc afirma ter conhecimento sobre supostos atrasos no repasse do aluguel social para as pessoas em situação de rua, que tem sido reivindicada há alguns meses e denunciado em atos e durante a ocupação do Departamento Municipal de Habitação (Demhab). “Esse é um tema delicado, que tem sido discutido no comitê Pop Rua [Comitê Municipal de Acompanhamento das Políticas para Pessoas em Situação de Rua]. O papel da Fasc é fazer acompanhamento às famílias que estão em aluguel social, mas isto é outra política pública”, explica Marcelo. O Demhab, porém, nega que tenha havido os atrasos e informa que há 176 beneficiários na categoria população de rua, cujos aluguéis estariam em dia.
Remoções e atrasos
O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), no entanto, contesta a afirmação do Demhab e, em junho, realizou um protesto reivindicando que os valores fossem pagos. Deivyd Soares foi um dos participantes do ato que chegou a contar com o benefício por algum tempo, com o qual alugou uma casa na Restinga, e depois deixou de receber. “Eu comecei a receber em agosto do ano passado e seria renovado em agosto desse ano. Parei de receber no mês de março. Depois de dois meses de atraso, [o proprietário] já me despejou. Agora, estou morando na rua novamente”, contou ele, na época.
A educadora social e militante do MNPR Veridiana Farias Machado diz que relatos dos atrasos já foram feitos em reuniões do Comitê Pop Rua, em que inclusive proprietários de imóveis compareceram para tentar resolver a situação, com medo de precisar despejar os inquilinos. “Ficou com descrédito, agora ninguém mais quer saber de alugar nada para as pessoas em situação de rua. Imagina a situação de quem já vive na rua e está pensando em se organizar a partir do aluguel social pra arrumar um trabalho, um emprego e aí vai ser incluído no programa e acontece isso”, analisa.
Durante a ocupação do Demhab, feita pelo MNPR com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ela afirma que descobriram que há atrasos nos aluguéis para diversos beneficiários, não apenas para aqueles em situação de rua.As remoções das comunidades que estão em áreas ocupadas, muitas vezes sem encaminhamento por parte dos governos municipal e estadual, também colabora para o aumento do número de pessoas vivendo nas ruas, na avaliação de Veridiana. Ela menciona a situação da ocupação Campo Grande, despejada em julho, ao mesmo tempo em que acontecia a ocupação do Demhab, para a qual não foi dado nenhum apoio por parte da Prefeitura. “Muitas pessoas ficaram em situação de rua depois dessa remoção. Só quem acolheu essas famílias foi o pessoal da Vila Dique e da Ocupação Progresso, que arranjaram lugar para elas ficarem. Talvez esses despejos também colaborem para o aumento da população em situação de rua”, relata. Este foi o caso de Márcia Gonçalves Machado e seus seis filhos, entrevistada pelo Sul21 poucos dias antes do despejo, que acabou sendo acolhida na Dique.
Na avaliação dela, que é servidora da Fasc, a Fundação faz o que pode, mas não tem como abranger a pauta da moradia. Por isso, o Movimento também pede que as pessoas em situação de rua que reivindicam moradia sejam atendidas diretamente pelo Demhab, o que não acontece atualmente. “Se a pessoa chega no Demhab e diz que está em situação de rua, o Demhab manda direto pra Fasc, diz que é lá que vai resolver o problema dela. Mas tem gente em situação de rua que não acessa a serviço nenhum de assistência social e, ao mesmo tempo, não tem direito de reivindicar moradia no Demhab”, afirma. O Movimento estima que, em 2016, haja no mínimo 3 mil pessoas em situação de rua circulando por Porto Alegre.
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Casas de lona e papelão: empobrecimento em Porto Alegre faz crescer população em situação de rua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU