16 Dezembro 2016
O levantamento da população em situação de rua de Porto Alegre, que demorou cinco anos para acontecer, foi apresentado em primeira mão dentro da Prefeitura, com a presença de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e funcionários da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), na manhã desta quinta-feira (15). Para a própria população de rua, no entanto, o estudo só veio a debate em uma apresentação na tarde de quinta, no Sindicato dos Bancários. Algo questionado por pessoas em situação de rua que participaram como “facilitadores” do estudo conduzido pela UFRGS.
A reportagem é de Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 15-12-2016.
A contestação maior ficou por conta do número total da população apontado pelo estudo. Com um aumento de 56% desde a última pesquisa realizada, em 2011, Porto Alegre teria hoje 2.115 pessoas vivendo em situação de rua.
“Os dados quantitativos podemos discutir 10 a mais ou 20 a menos, mas para nós isso não era o essencial. O essencial para nós era buscar o perfil dessa população, as suas aspirações, os seus problemas, o seu cotidiano, o seu modo de vida, para que isso pudesse ser conhecido, para que possa eventualmente ser usado tanto por eles, quanto pelas instituições”, defende o professor e sociólogo Ivaldo Ghelen, que trabalha com pesquisas da população em situação de rua desde 2002.
Embora ainda não tenha uma posição oficial sobre a pesquisa, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) discorda de Ghelen. “É uma população muito volante e dinâmica, mas se pegar os números dos serviços que atendem [a ela], já vai ver que é muito mais gente. Na base de 5 a 6 mil pessoas, só em Porto Alegre. Nos bairros da Zona Sul e Norte que não tinha e agora tem, é muita gente”, diz Veridiana Farias Machado, educadora social e integrante do Movimento. Só no Consultório de Rua, segundo ela, existem entre 2.400 e 2.500 pessoas registradas.
Carlos da Silva, um dos integrantes do MNPR que trabalhou como facilitador da pesquisa auxiliando os entrevistadores nas ruas, reclamou durante a apresentação que os cronogramas montados pelas pessoas em situação de rua nunca foram aceitos pelos pesquisadores. “O que para vocês era um trabalho, para nós é nossa vida. Todos os cronogramas foram desrespeitados. O cara dizia que tinha passado pelo lugar e não viu ninguém, mas quem sabe mais? Ele que só passou ou eu que moro lá há anos?”, disse.
Segundo ele, na Zona Sul, as pessoas que estão nas ruas alegam nunca terem ouvido falar da pesquisa. Ele também reclamou dos horários em que os pesquisadores da UFRGS iam até os locais onde poderiam encontrar pessoas para serem entrevistadas. “Como vai querer entrevistar na Cidade Baixa, às 19h, de uma sexta-feira? Como vai na Sopa, em uma sexta de manhã, se ela só funciona de terça a quinta? A gente sabe que o número nunca será certo, que é difícil, mas é muito maior [do que 2.115]”, afirmou.
Outra encarregada do estudo, a professora e antropóloga Patrice Schuch, explicou que os pesquisadores sempre ouviram as manifestações dos moradores de rua e tentaram incorporar aquilo que foi possível. A pesquisadora também apontou como uma dificuldade, embora compreendesse as razões, o fato de que o MNPR se negou a participar da parte de mapeamento das zonas a serem visitadas, que antecede a etapa da pesquisa de campo, por receio de que ao revelar os locais poderiam levar até eles abordagens policiais como a do último sábado.
Além dos números quantitativos, o estudo da UFRGS conseguiu ir além em dados qualitativos sobre o perfil e o cotidiano de quem está vivendo nas ruas da capital gaúcha. Um dos números que surpreendeu os pesquisadores, por exemplo, foi o aumento significativo no número de pessoas que está vivendo na rua há mais de 10 anos: cerca de 30% da população ouvida pela pesquisa.
“A pesquisa aponta para uma certa permanência das pessoas em situação de rua. Não há tanta mudança quanto a gente costuma imaginar”, diz Patrice.
Outros dados que indicam uma mudança de comportamento geral na população de rua, apontam que entre 2011 e 2016, diminuiu o número de pessoas que dizem ainda manter contato com os familiares. A pesquisa aponta que 44% deles conta que passa a maior parte do tempo na rua acompanhados de amigos e companheiros. A falta de oportunidades de emprego segue sendo a principal causa porque a maioria dessa população não trabalha. E 34% diz receber Bolsa Família.
O número de usuários de drogas também registrou aumento; 24% das pessoas que responderam à pesquisa disseram usar drogas. Segundo o Movimento da População de Rua (MNPR), isso se deve especialmente à falta de políticas públicas, como a criação de um CAPS-AD que, apesar de promessa do Executivo, nunca foi construído.
Os números mais preocupantes da pesquisa, porém, são os dados de violência. O estudo mostra que 18,7% dos entrevistados se referiram a situações de violência em geral, especificamente de grupos organizados como skinheads e neonazistas. Pelo menos 20% disse ter medo de dormir e não acordar no dia seguinte. A maioria tem medo de ser queimado vivo enquanto dorme.
Entre os agressores, a Brigada Militar é apontada como responsável pela maioria dos casos: 31,4%. Quase 10% a mais do que “outros grupos” (23,6%) e o dobro do que violências praticadas por “pessoas desconhecidas” (15%), que incluem vizinhos dos locais onde população de rua costuma parar e funcionários da Prefeitura Municipal.
Houve também aumento no número de pessoas que relataram terem sido detidas por simplesmente estar nas ruas. Das pessoas ouvidas pelos pesquisadores, 82,5% se sentem tratados com desconfiança e 75,9% com indiferença. Outros 37,4% contam já terem sido impedidos de ficar em locais públicos e 33% de usar transporte coletivo.
“Para nós, esses dados refletem aumento da população de rua em Porto Alegre, refletem práticas que o município vem desenvolvendo com essas pessoas. Acho lamentável a ausência do presidente da Fasc aqui hoje, mas quem acompanha as mídias sabe porque ele não veio”, analisou Richard Campos, também integrante do MNPR e um dos facilitadores do estudo.
O caso citado por Richard é a remoção que ocorreu no último sábado (10), data que marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos, no Viaduto Otávio Rocha, na Avenida Borges de Medeiros. Logo no início da tarde, caminhões do Departamento de Mobilidade e Limpeza Urbana (DMLU), acompanhados da Guarda Municipal, chegaram ao local pedindo que as pessoas se retirassem. Os pertences delas foram destruídos.
“Com ação de remoção e higienização como a Prefeitura tem feito, não resolve a situação da população de rua na cidade. As pessoas não vão sair das ruas, elas vão sair do Viaduto Otávio Rocha e vão procurar outro lugar na cidade”, diz Richard.
O simbolismo da ação também ecoou por outro lado: a remoção das pessoas foi feita pelo departamento encarregado da limpeza e não pelo de assistência social, a Fasc. “Se era para comemorar o aniversário do Viaduto, porque não comemorar com a população de rua? Hoje, eles são parte da paisagem. Eles estão limpando seres humanos nesse caso, não lixo”, avalia o professor Ivaldo Ghelen.
A ação de sábado motivou a criação de um grupo especial para discutir as questões da população em situação de rua junto às secretarias municipais, Ministério Público Estadual e as Defensorias Públicas do Estado e da União. Dentro das discussões levantaram a sugestão de que a Prefeitura procure prédios públicos abandonados para que possam construir alternativas como os “bagageiros populares”, de Curitiba, banheiros públicos, etc que ajudariam a cidade a ser mais acolhedora.
“Isso resume as ações higienistas e o papel de lixeiros sociais que têm esses departamentos. Porque a gente faz todo um tensionamento, eles vêm preparados e o mais cruel, eles usam as pessoas que são da Cotravipa, que geralmente são pessoas também em situação de rua, para fazer a limpeza do pessoal”, conta Veridiana, do MNPR.
Das 80 pessoas que costumavam ficar no Viaduto até sábado, apenas nove voltaram. O casal William e Luana entre eles. Eles estavam no local quando as equipes da prefeitura chegaram pedindo que se retirassem. William, que vive há três anos no Viaduto, conhece bem as ações de remoção e a truculência com que tratam quem recorre ao monumento como teto. “Antes o que eles faziam era o arranhamento. Às 6h da manhã, chegavam a Rocam aqui e mandava todo mundo sair. Era o toque de alvorada que eles chamavam”, lembra ele.
Ele e a namorada foram também os únicos moradores do Viaduto que resolveram prestar depoimento diante da Defensoria Pública do Estado e registrar queixa pela remoção conduzida pelo DMLU.
Luana conta que gosta dali, mas, na verdade, estão esperando a chance do Departamento de Habitação encaminhá-los a uma casa.
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Porto Alegre. População em situação de rua é 3 vezes maior do que apresentado pela Fasc, diz movimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU