02 Dezembro 2016
Assim como qualquer evento importante na Argentina, como um recital ou um grande clássico, a dispersão de Havana transformou a cidade em uma grande faixa para pedestres. E permitiu conversar. Ou melhor, escutar.
A reportagem é de Martin Granovsky e publicada por Página/12, 01-12-2016. A tradução é de André Langer.
O que este homem faz é um monólogo caminhando pela Rua Belascoain. Um stand up à cubana. São duas da madrugada em uma cidade atravessada por rios de pessoas que se dispersam após a homenagem a Fidel Castro na Praça da Revolução. A homenagem começou às 19h, hora local, e terminou com a saudação final de Raúl Castro às 23h30.
A região está escura, assim como muitas outras. Há apenas um risco, caso alguém queira evitar as calçadas com degraus tipo La Boca e andar mais rápido: que algum dos velhos Lada russos esteja com as luzes em mau estado de conservação e seu motorista não consiga distinguir nem o monologuista doméstico nem o seu interlocutor argentino.
O monologuista disse que o discurso de Raúl foi curto. E muito histórico. Eu não consegui ouvir algumas partes, mas foi curto. Olhe, irmão, é bom contar a história, é bom falar de quando os mercenários fizeram explodir esse barco francês que trazia armas para a revolução, mas devemos colocar os pontos nos “is”. O que vamos fazer de agora em diante? Como a economia vai reagir? Assim que você me disse que Raúl anunciou que falaria em Santiago de Cuba e que esse será o seu principal discurso? Isso me deixa mais tranquilo, porque lhe digo, e desculpe que repito, devemos colocar os pontos nos “is”.
Eu sou fidelista. Aqui todos somos fidelistas, porque pessoas como Fidel aparece uma por século. Você não sabe o que foi o período especial. Andávamos de bicicleta e hoje já não se vê bicicletas pela rua. Eu não sei por que, se quebraram, ou não sei o quê, mas lhe asseguro que os cubanos da minha geração não querem mais subir em uma bicicleta. Não tinha mais ajuda dos soviéticos. Então, 15 quilômetros para ir ao trabalho e 15 quilômetros para voltar. Com chuva ou sem chuva. E um pouco de arroz. De luz, quase nada.
E quem nos tirou do período especial? Fidel. Era uma mente superior, porque observava tudo ao mesmo tempo. Um gênio. Se não fosse por ele, continuaríamos nessa crise tremenda, veja irmão. Como vê, eu estou informado. Até russo eu sei, e tenho conhecimento de mísseis, porque trabalhei com eletrônica. Digo-lhe que houve erros, como não haverá... Mas não muitos. Dois? Três? O que são dois ou três erros em 90 anos?
Eu tenho muitas recordações, porque sou filho da Revolução. Eu nasci em novembro de 1958. Minha mãe fez uma promessa. O ditador Batista já estava caindo. A promessa era que se caísse definitivamente, ela não cortaria o meu cabelo até que a Revolução completasse um ano. Veja, estava com todo o cabelo desde quando nasci até janeiro de 1960, porque a revolução foi em janeiro de 1959. Um ano e dois meses. De novembro de 58 a janeiro de 60.
Desculpe se falo muito, mas digo o que penso. Não tenho medo e estou informado. Não tenho internet, mas eu leio, leio até a última letra de cada discurso e assisto TV. Há muita informação na televisão, se alguém tem memória, se alguém se concentra e analisa os dados. Eu disse que houve erros. Eu nasci em 58 e dos anos 1970 me lembro de tudo. Foi um erro ter ido a Angola. Um dos erros de Fidel. E eu estou de acordo com o internacionalismo e com o que disse o Che. Você, de onde é? Argentino. Então sabe o que disse o Che. Lembra-se, outras terras me querem? Mas, sabe o quê?
Para mim, o internacionalismo é como nos últimos anos. Com médicos e com educadores. Minha filha é médica. Agora está no Brasil, no Amazonas, trabalhando por solidariedade pelos médicos do Brasil me disse que não querem ir a alguns lugares da sua pátria. Meu filho é engenheiro eletrônico, mas está em Cuba.
Veja, irmão, a expedição para Angola deve ter sido um fracasso, porque depois disso não houve mais expedições para lado nenhum. Médicos, sim; educadores, sim, mas militares, não. Para mim, o birô político do partido se reuniu e avaliou que havia um erro, chegou a um consenso e disse que não mandaria mais militares para fora. E as armas me assustam, irmão. Mas, do Malecón para fora, para o mar, não vou. Não saio para lutar. Agora, se alguém quiser se meter conosco, peço que me coloquem no farol, no forte onde estavam os espanhóis, e vou defender Havana.
Eu falo com todos. Há pouco cruzei com um senhor norte-americano. Falava um bom espanhol e era muito respeitoso. Outros vêm e criticam. Eu critico o meu país, irmão, e não gosto de dizer a quem critica que se fixe primeiro em seu país, mas penso. Como nas escrituras bíblicas, irmão. Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra. Agora é igualzinho. Quem não tiver problemas em seu país, que fale dos problemas de Cuba esquecendo-se. E não é que não queira ouvir; é que ouço melhor quando falam primeiro dos seus problemas e depois dos nossos. Então, também lhes falo, porque entendo que eles também entendem que não estão livres de pecado, digo-o de maneira bíblica novamente.
Veja, se agora, enquanto caminho com você e falamos me der um “treco qualquer”, você me levaria ao hospital mais próximo, o Ameijeiras, a duas quadras do Malecón. Você não me conhece, mas alguém ficaria sabendo e comunicaria aos meus filhos. Suponhamos que tenha que colocar um marcapasso porque o coração não aguenta mais. Eles vão colocá-lo. Depois viria o meu filho, que está em Cuba, porque minha filha médica, como já disse, está no Brasil. E quanto o hospital cobraria pelo marcapasso? Nada. Absolutamente nada. De graça. Diga-me, em quantos países se pode fazer isso?
Sabe quanto paguei para estudar? Nada. E sabe quanto paguei pelos estudos da minha filha médica e do meu filho engenheiro eletrônico? Nada. Diga-me se isso acontece em muitos países? Mas não sabe o quanto isso me deixa tranquilo. Agora vou ali, compro uma pizza com um refrigerante e fico feliz, porque no sábado posso ouvir o Raúl. Sabe por que nada além de um refrigerante? Porque não vendem cerveja. Por causa do velório. Até domingo.
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Um stand up à cubana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU