30 Novembro 2016
“É muito cedo para avaliar o que será o governo Trump, mas duas coisas são certas. Primeiro, ele está longe de ser o psicopata que representou durante a campanha. Teve um olhar certeiro nos “esquecidos perdedores” produzidos pela falta de sensibilidade social da perversão liberal”, escreve Antonio Delfim Netto, economista, em artigo publicado por CartaCapital, 30-11-2016.
Segundo ele, “se o isolacionismo americano prometido por Trump for confirmado, produzirá a fragmentação e a reorganização geopolítica das nações que se sentirão traídas pelos Estados Unidos, que lhes deram a “garantia” da proteção militar, particularmente Otan, Japão e Coreia do Sul, o que deve estimular uma nova corrida atômica. Não há como não se inquietar com o “espantalho” do perigo externo explorado por Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China, que têm clara propensão expansionista”.
“O pesadelo – conclui - é que talvez a sua eleição tenha adiado sine die a caminhada para a paz perpétua, sugerida por Kant, em 1784, atrás da qual andou, desde sempre, o liberalismo econômico inteligente que foi corrompido pela ideia do “mercado perfeito”.
Eis o artigo.
Não importam as petas que Trump usou para eleger-se. Às vezes mentiras dão certo, como vimos no Brasil, em 2014. Tudo sugere, por outro lado, que sua vitória teve também sólida razão objetiva com o grave descontentamento de parte dos “abandonados” eleitores democratas. Nada, entretanto, tem a ver com a emersão da “direita” ou a imersão da “esquerda” e muito menos com a “luta de classes”, como sugerem alguns fanáticos desiludidos e assustados...
A insuperável vantagem do sistema democrático de governo é que sua continuidade propicia a única forma de conhecimento seguro a que os homens têm acesso: a experimentação e o erro, um aprendizado que tem custos importantes. O uso permanente do sufrágio universal, com eleições livres e renovação do poder incumbente em tempo certo, corrige endogenamente os seus erros eventuais.
Há uma espécie de malaise freudiana no mundo, que vem se explicitando nas urnas. O homem parece mesmo já não saber o que fazer dela. Para começar a entendê-la, talvez seja necessário recuar a 1928.
Depois do excesso de liberdade de que gozou o sistema financeiro e do exagerado movimento de capitais, que foram as causas da crise de 1929, tivemos a estrita regulação rooseveltiana até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
A partir daí a “ordem americana” emergiu na política econômica proposta pelo Fundo Monetário Internacional: 1. Taxas de câmbio fixas, reajustáveis com seu consentimento. 2. Rígido controle do movimento de capitais e 3. Política monetária soberana de cada país.
A estagflação do fim dos anos 1970 perverteu a política econômica compatível com o liberalismo político e levou o mundo à tragédia em que está vivendo. Começou no governo de Ronald Reagan, um republicano que ocupou a Presidência dos Estados Unidos de 1981 a 1989.
Sob o conselho “científico” de alguns economistas que teriam provado “teoricamente” (o que, fora da Lógica, é um absurdo) que “os mercados financeiros deixados a si mesmos, sem a intervenção do Estado, são mais do que perfeitos: além de obedecerem ao imperativo categórico kantiano, propiciam, eficientemente, o pleno emprego”, Reagan não teve dúvidas.
Iniciou a desmontagem da regulação que salvara, entre 1930 e 1933, o capitalismo das velhacarias do sistema financeiro. Novamente livre, ele voltou às mesmas práticas e produziu outra crise em 2009!
Levada ao exagero e sem cuidado, a perversão liberal iniciada em 1981 acelerou a globalização com a liberdade de comércio (uma coisa muito boa e motor do crescimento) e o movimento de capitais (uma coisa mais que duvidosa).
Esqueceu-se de que a teoria das vantagens comparativas só revela seus resultados no longo prazo. O ajuste interno dos países leva tempo e tem custos sociais que podem ser politicamente insuportáveis. Essa é, sem dúvida, uma das causas da malaise que fratura as sociedades e põe em risco a paz mundial.
É muito cedo para avaliar o que será o governo Trump, mas duas coisas são certas. Primeiro, ele está longe de ser o psicopata que representou durante a campanha. Teve um olhar certeiro nos “esquecidos perdedores” produzidos pela falta de sensibilidade social da perversão liberal.
Radicalizou para atraí-los e levou-lhes uma vã esperança, pois dá sinais de que vai insistir em mais desregulamentação financeira. Segundo, ele tem muito a perder e “sabe” como funciona, por dentro, o intercurso incestuoso entre governo e setor privado, financeiro e real, pois é um inegável “beneficiário” e parceiro. Portanto, tentará proteger seus interesses.
Se o isolacionismo americano prometido por Trump for confirmado, produzirá a fragmentação e a reorganização geopolítica das nações que se sentirão traídas pelos Estados Unidos, que lhes deram a “garantia” da proteção militar, particularmente Otan, Japão e Coreia do Sul, o que deve estimular uma nova corrida atômica. Não há como não se inquietar com o “espantalho” do perigo externo explorado por Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China, que têm clara propensão expansionista.
O pesadelo é que talvez a sua eleição tenha adiado sine die a caminhada para a paz perpétua, sugerida por Kant, em 1784, atrás da qual andou, desde sempre, o liberalismo econômico inteligente que foi corrompido pela ideia do “mercado perfeito”.
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O pesadelo Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU