15 Novembro 2016
"Talvez, o pior de tudo é que a grande maioria da população, ainda hipnotizada politicamente pelo que há de pior na mídia, dá o seu pleno acordo ao arbítrio dos policiais, à violência usada contra pessoas desarmadas, à tortura e até, se for o caso, a matar pobres e de preferência negros, basta que se pareçam com marginais", escreve Marcelo Barros, monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro.
Eis o artigo.
Uma amiga dizia que quem deveria votar no presidente dos Estados Unidos seriam os povos da América Latina, dominados pelo império que esse presidente representa. Por enquanto só a metrópole vota. O fato de que, dessa vez, para gerente dos seus interesses, os cidadãos do Império tiveram de escolher entre um brutamonte racista e imprevisível e uma ex-democrata insensível ao mundo dos pobres, responsável pela invasão da Líbia e de outros países, revela a realidade de uma sociedade sem rumo nem perspectivas sadias. Qual será o número do massacre humano provocado em países da periferia até as próximas eleições presidenciais dos Estados Unidos? Do lado de cá, o governo brasileiro tem se esforçado bastante para merecer as boas graças dos patrões que patrocinaram sua ascensão ao poder. Depois dos velhos tempos de ditadura militar, novamente a polícia bate em estudantes e professores. Não precisa mais de mandato judicial para prender adolescentes de menor idade pelo crime de fazerem protestos pacíficos. Lavradores são presos simplesmente por pertencerem ao MST. Bush fazia guerra para prevenir. O atual governo brasileiro copia a prisão preventiva. Talvez, o pior de tudo é que a grande maioria da população, ainda hipnotizada politicamente pelo que há de pior na mídia, dá o seu pleno acordo ao arbítrio dos policiais, à violência usada contra pessoas desarmadas, à tortura e até, se for o caso, a matar pobres e de preferência negros, basta que se pareçam com marginais.
O epicentro desse terremoto cultural de extremismos é a onda de ódio e intolerância, pregada por telejornais e que se tornou uma espécie de neurose coletiva, antes nunca vista em um país pacífico como o Brasil. Nesse contexto, é bom recordar que, a cada ano, a ONU consagra o 16 de novembro como "dia internacional da tolerância". É claro que o termo é ambíguo. Tolera-se o que não se pode evitar. Ninguém gosta de ser apenas tolerado. No plano das relações culturais, o termo se tornou sinônimo de respeito ao outro e diálogo com o diferente. Em uma sociedade pluralista, garantir o respeito à liberdade de pensamento e de expressão de quem pensa diferente de nós é um princípio ético fundamental. Baseia-se na consciência da dignidade de toda pessoa humana e é garantia de que nós possamos também gozar do mesmo direito. Nas relações interpessoais, Dom Helder Camara afirmava: "Se você concorda comigo, eu lhe agradeço, mas se discordar de mim, eu agradecerei mais ainda. Mesmo que depois de conversarmos, eu continuar pensando como antes, você já me ajudou a aprofundar o assunto".
Quem vive esse princípio, descobre o diálogo como princípio de espiritualidade. Há mais de 70 anos, em novembro de 1943, entre os muitos judeus assassinados no campo de concentração de Auschwitz, morreu uma jovem judia holandesa de 27 anos, chamada Etty (Ester) Hillesun. Essa moça era uma jovem anônima de Amsterdam. Só se tornou conhecida quando, anos depois de sua morte, o mundo tomou conhecimento de oito cadernos de anotações diárias. Os primeiros, ela deixou com amigos. Os últimos foram jogados de um trem, quando ela foi levada ao campo de concentração onde morreria. Todos foram reencontrados e, a partir de alguns anos, estão publicados em várias línguas. O diário de Etty Hillesun revela uma moça alegre, de bem com a vida. Por solidariedade ao seu povo, entregou-se e foi levada a um campo de concentração.
No campo de concentração, em meio às barbaridades que ela sofreu e via os outros sofrerem, escreveu: “nessas circunstâncias tão terríveis, a minha contribuição para o meu povo é que não podemos abrir mão da misericórdia. Precisamos nos tornar incapazes de odiar, aconteça o que acontecer conosco. Essa será nossa única força”. "O inimigo pode tirar tudo de nós, até a vida. No entanto, não pode roubar nossa integridade interior, firmada a partir de uma opção de amar e ser benevolente". “Dentro de mim, há um poço muito profundo. Nem consigo ver o seu fundo. Às vezes, me parece coberto de pedras e lixo. Então, para mim, Deus está sepultado. Em alguns momentos, consigo desenterra-lo e posso até ajudar outras pessoas a desenterrá-lo em seus corações. Percebo que em uma situação como essa, ó Deus, tu não podes nos ajudar. Mas, nós podemos sim fazer muito por ti. Podemos ajudar-te a não te deixar sepultado em nós e a ser testemunhas do teu amor, em uma realidade na qual todo amor é abolido e chacinado”.
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O amor solidário em um mundo cruel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU