Por: Vitor Necchi | 16 Setembro 2016
A Constituição Brasileira foi lembrada pelo economista Evilasio da Silva Salvador em vários momentos da conferência Políticas públicas, políticas sociais e a financeirização do Brasil: do modelo atual à necessidade de novos modelos, que realizou nesta quarta-feira (14/9) durante o IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em São Leopoldo. Ele evocava reiteradamente a Carta Magna a fim de destacar que respeitar e ampliar os princípios constitucionais seriam medidas estratégicas para se consolidar a seguridade social, “grande inovação institucional” criada em 1988.
A insistência da referência faz sentido e é oportuna, pois, como bem lembrou Salvador, recentemente, quando Michel Temer ainda era presidente interino, o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, declarou que “a Constituição não cabe no orçamento”. Foi um claro recado de que haveria cortes no financiamento de políticas sociais.
A crise do capital fez ressurgir a receita neoliberal para combatê-la, nos moldes adotados recentemente por países europeus e que leva, sobretudo, a ajuste fiscal e cortes nos gastos sociais, principalmente no campo da seguridade social. Conforme Salvador, o efeito colateral desse caminho é recessão e redução do salário e do emprego nos setores público e privado, tendo como tendência a privatização e a mercantilização dos serviços sociais.
Salvador, que é doutor em Política Social e professor da Universidade de Brasília – UnB, enfatizou que a primeira Constituição promulgada depois do final da ditadura universalizou o atendimento para todos e todas. Recuperar este princípio é estratégico para garantir que a política social cumpra o seu papel: concretizar os direitos dos cidadãos, além de “assegurar níveis crescentes de bem-estar e não servir primordialmente ao acesso ao setor financeiro, como colateral a um endividamento crescente, ou à aquisição de serviços que o Estado se furta a prover”.
No início de sua fala, Salvador salientou a necessidade de se definir política social. Por meio dela, “direitos se concretizam, e necessidades humanas são atendidas na perspectiva da cidadania ampliada”. Por se tratar de política, significa que “é fruto de escolhas e de decisões definidas nas arenas conflituosas de poder”. O economista lembrou que a aposta que a Carta de 1988 fez na proteção social sofreu o ataque do pensamento neoliberal dos anos 1990, quando começou a se disseminar a ideia de ajuste fiscal.
“Ajuste fiscal é a regra do jogo para políticas neoliberais e coloca o Estado de joelhos”, acusa, destacando que, no Brasil, o embate neoliberal objetivou acabar com os direitos sociais conquistados em 1988. “A intenção é sugar ao máximo os recursos do fundo público para a acumulação do capital visando à recuperação acelerada da rentabilidade e da lucratividade dos setores econômicos.”
Neste cenário, as conquistas sociais passam por ameaças. “A financeirização da riqueza implica em pressão sobre a política social, especialmente as instituições da seguridade social, pois aí está o nicho dos produtos financeiros”, explica. A privatização dos benefícios sociais, ou da proteção social, desperta o interesse do mercado, pois transformaria a aposentadoria e o seguro-saúde, por exemplo, em produtos que viram alvo de especulação. “As propostas neoliberais incluem a transferência da proteção social do âmbito do Estado para o mercado, a liberalização financeira passa pela privatização dos benefícios e serviços, notadamente da seguridade social e uma tendência mais recente na educação.”
Salvador cita como exemplo a Pearson, empresa do ramo educacional que movimenta 3 trilhões de dólares no mundo e que nos últimos cinco anos vem investindo fortemente no Brasil, já tendo mais de 5 milhões de alunos dos ensinos básico ao superior. O economista, ao defender o ensino público, conta uma história prosaica: “Costuma-se dizer que, no tempo das avós, a educação era melhor, que se ensinava latim etc. Claro, a avó estudava com mais seis colegas. Poucos tinham acesso, então era mais fácil garantir a qualidade”, ressalva. “Bem ou mal, educação e saúde evoluíram muito em investimento e alcance.”
A financeirização da riqueza tem como consequência o fato de que os mercados financeiros disputam, cada vez mais, recursos do fundo público, ao mesmo tempo em que pressionam pelo aumento das despesas financeiras do orçamento estatal, “o que passa pela remuneração dos títulos públicos emitidos pelas autoridades monetárias e negociados no mercado financeiro, os quais se constituem importante fonte de rendimentos para os investidores institucionais”, detalha. Um efeito deste processo é o aumento da transferência de recursos do orçamento para o pagamento de juros da dívida pública, “que é o combustível alimentador dos rendimentos dos rentistas”.
Salvador afirma que o orçamento público é “um espaço de luta política, com as diferentes forças da sociedade buscando inserir seus interesses”. A partir da década de 1980, estabeleceu-se uma hegemonia do capital financeiro. “Sob o comando das políticas neoliberais, foi esgarçada a liberalização financeira com o enfraquecimento do Estado e da proteção social, sob o efeito dos juros do serviço da dívida, potencializando a crise estrutural do capitalismo”, contextualiza. Ele lembrou que a crise do capital é estrutural e vem desde meados dos anos 1970, sendo que sua expressão maior ocorreu nos Estados Unidos, em 2008. E o que foi feito? Chamou-se o Estado para financiar as instituições financeiras falidas. “O capital não sobrevive um segundo sem recursos públicos”, ironiza.
Durante mais de 50 anos ao longo do século 20, o acelerado crescimento econômico do Brasil não obteve a mesma magnitude dos países do capitalismo central, então grande parte da população se manteve em “condições precárias de vida e trabalho”. Citando o sociólogo Francisco Oliveira, o conferencista diz que este fenômeno se explica em parte porque a intervenção estatal que financiou a reprodução do capital não sustentou no mesmo nível a reprodução da força de trabalho, pois teve como padrão a ausência de direitos. “A mudança mais importante ocorreu na Constituição de 1988, destacadamente o orçamento social, expresso na política da seguridade social, com financiamento exclusivo”, afirma.
A Constituição estabelece que pelo menos 40% dos orçamentos municipais sejam investidos em saúde (25%) e educação (15%). Outros investimentos, como no desenvolvimento urbano (habitação e saneamento), não são regulados e, portanto, dependem da intenção política dos governantes. Na esfera federal, ocorre o mesmo. “Gastos orçamentários com previdência, assistência social, saúde, educação e trabalho conseguem preservar a sua execução, pois têm a maior parte dos recursos de natureza obrigatória e vinculada”, detalha Salvador. “As despesas vinculadas são importantes para garantir direitos, contudo, nem sempre o fato de garantir a vinculação significa que os gastos são feitos de forma a garantir a justiça social e a expandir os benefícios e serviços de forma universal, buscando erradicar as desigualdades sociais.”
Não basta a Constituição prever a destinação de recursos para políticas sociais, tanto que as perspectivas não são animadoras. Salvador alerta que as garantias desenhadas em 1988 serão sepultadas, nos próximos meses, sobretudo com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, “que estabelece um novo teto para o gasto público, que terá como limite a despesa do ano anterior corrigida pela inflação”. Se passar, “a regra de congelamento do gasto público, em termos reais, valerá por 20 anos, período durante o qual o dinheiro economizado será canalizado para pagamento dos juros e do principal da dívida, novamente para esfera da financeirização”. A projeção de perdas de recursos para educação, saúde e assistência social entre 2017 e 2015 está na ordem de R$ 345 bilhões.
A ofensiva contra os direitos sociais vai além. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 87, que prorroga a vigência da Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 31 de dezembro de 2023, “amplia de 20% para 30% o percentual das receitas de tributos federais que podem ser usadas livremente e altera quais tributos podem ser desvinculados, incluindo os fundos constitucionais, taxas e compensações financeiras”, explica Salvador. “Será o sepultamento do orçamento da seguridade social e largo caminho aberto para financeirização dos direitos previdenciários e da saúde.”
A situação já não era ideal, pois todos governos federais desde 1988 não transformaram em ações concretas tudo o que é estabelecido pela Constituição. “Pelo contrário, apropriaram-se das contribuições sociais destinadas para fins de seguridade social, utilizando-as para outras políticas de cunho fiscal, principalmente o pagamento dos encargos financeiros da União (amortização e juros da dívida), e para realização de caixa, visando a garantir o superávit primário.”
Há que se ressaltar que este desmonte do desenho institucional não é novidade e remonta a 1993, na vigência do Plano Real, quando se começou a falar fortemente em ajuste fiscal. Estes mecanismos, contudo, não são suficientes para viabilizar o superávit primário, em razão do aguçamento da crise do capital que rebate na crise econômica, social e política do Brasil. Frente a este quadro, Salvador alerta que “ocorre uma nova ofensiva do capital, sob a batuta de um governo ilegítimo instalado no país, para desmontar a espinha dorsal dos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e de sua parte essencial, que são os recursos vinculados”.
A crise atinge em cheio as políticas sociais. Neste cenário, Salvador, ao final de sua apresentação, foi categórico ao definir a palavra de ordem para qualquer ponto de partida de um novo modelo de proteção social: “Nenhum direito a menos”. E, antes de encerrar, citou o poema Nosso tempo, de Carlos Drummond de Andrade: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”.
Evilasio da Silva Salvador é economista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, doutor em Política Social pela Universidade de Brasília – UnB, com estágio pós-doutoral em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor na UnB, integra o Programa de Pós-graduação em Política Social. Autor, entre outras publicações, do livro Fundo Público e Seguridade Social no Brasil (São Paulo: Cortez, 2010).
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“Nenhum direito a menos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU