17 Março 2016
"Não há segurança nem liberdade possíveis onde a mentira, a falsidade, a simulação, a ocultação de provas, colocam todo o peso da sua aparente verdade nas decisões e sentenças das autoridades, particularmente quando essas entendem como necessário proceder assim", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Segundo ele, "as crises de hoje, no Brasil, podem não estar ameaçando a vida de João ou Maria, mas que milhões de brasileiras/os, já vem sendo vítimas dessa inquietude malsã, beirando o desespero, por um passado opressor e injusto, duramente acentuado na ditadura, provocando danos morais e existenciais individuais e coletivos, isso precisa ser lembrado, para se evitar a sua trágica repetição, pois só é coisa de agora para quem aqui não viveu permanentemente com fome, sem terra, sem teto, sem liberdade consequentemente".
Eis o artigo.
A verdade é filha do tempo, e não da autoridade. Todo o raciocínio capaz de retirar dessa afirmação de Galileu Galilei (1564 - 1642) as lições seculares que ele possa comportar, parece insuficiente para balizar alguma conclusão certa sobre tudo quanto o Brasil vive hoje. Porque a urgência de se aumentar as pressões políticas pró e contra a presidenta da República está provocando nas acusações recíprocas uma vertigem considerada necessária à derrubada ou a preservação do governo, sejam elas verdadeiras ou não.
Desse modo, a cada fato publicado sobre as operações policiais refletidas nos inquéritos abertos para apuração da verdade sobre corrupção moral de políticos, empresas, autoridades administrativas, como crime passível de punição, armam-se paixões partidárias, ideológicas, dispostas a impor como acontecida a versão mais favorável a uma ou outra das posições ora em confronto.
Galileu provara que não era o sol que girava em torno da terra, e sim o contrário, mas até uma verdade física como essa, de brilho igual ao da luz do sol, foi contestada e impugnada pela autoridade da igreja até forçá-lo, pelo poder coercitivo que ela possuía então, a negar de público o que sabia não ser verdade. Levou mais de quatro séculos para, somente reconhecer que errara em 31 de outubro de 1992, pela palavra do Papa João Paulo II.
Agora, a necessidade de se encurtar esse tempo, indispensável à comprovação da verdade do quanto está sendo legalmente processado não pode e não deve incorrer no erro passado da igreja, sobre o conhecimento e a ciência de Galileu. As delações premiadas e outros meios de prova, pelo próprio interesse de quem as faz e de quem as interpreta, podem incorrer no mesmo e antecipar como verdade o que o tempo lembrado por ele provar como mentira, as injustiças daí decorrentes cumprirem todo o seu indesejado e doloroso efeito.
O chamado princípio do contraditório, reconhecido pela Constituição Federal em seu artigo 5º inciso LV, obriga toda a autoridade, seja ela administrativa, policial ou judicial, a “ouvir sempre o outro lado” de qualquer versão sob fatos investigados, justamente para tentar se se prevenir contra o erro, a falsidade e garantir o aparecimento da verdade.
O problema maior, porém, está em que, mesmo quando a verdade apareça como “fora de qualquer dúvida”, dentro de um processo-crime por exemplo, a sua interpretação ter força para lançá-la de volta às dúvidas existentes antes da sua revelação, seja para o bem - no caso de novas provas sobre a realidade processada aparecer em tempo de ser corrigida - seja para o mal, no caso de o juízo da autoridade sobre a sua existência, ou não, estar viciado por paixão, preconceito, interesse, ideologia ou um outro fator de desequilíbrio da razão e da justiça.
Nisso, a afirmação de Galileu serve de advertência extraordinariamente oportuna para o andamento e as conclusões dos processos policiais e judiciais ora em tramitação no Brasil, sobre corrupção política e outros crimes. O campo do imprevisto, onde intervêm juízos afetados por esse desequilíbrio, pode impedir qualquer saída da nação, por estreita que seja, do impasse sob o qual se mantém há tanto tempo em vigília preocupada.
O clamor dominante dá principal atenção ao direito à segurança, como a igreja interpretava a sua, posta em risco pela teoria de Galileu, como se essa negasse a existência de Deus. Posto na cadeia, a segurança não provou apenas ser injusta contra a liberdade dele mas sim contra a liberdade, o saber, o conhecimento, a ciência de toda a humanidade.
No Brasil, o golpe de 1964 fez o mesmo, e ainda hoje há muitos sinais de que goza de muito poderoso apoio, bastando lembrar dois fatos recentes ocorridos no Rio Grande do sul: o site do governo do Estado ter retirado da internet os dados recolhidos pela Comissão Estadual da Verdade, e o projeto de lei da vereadora Mônica Leal pretender impor de novo o nome de Castelo Branco à Avenida da Legalidade, em Porto Alegre, conforme o jornal Zero Hora noticiou, em sua edição de 24 de fevereiro passado.
Não há segurança nem liberdade possíveis onde a mentira, a falsidade, a simulação, a ocultação de provas, colocam todo o peso da sua aparente verdade nas decisões e sentenças das autoridades, particularmente quando essas entendem como necessário proceder assim. Aliás, esse é um dos piores defeitos históricos e frequentes no exercício de autoridade:
“Vocês não sabem nada! Será que não entendem que para vocês é melhor que morra apenas um homem pelo povo do que deixar que o país todo seja destruído?” Caifás usou esse discurso para convencer os futuros cúmplices do assassinato de Jesus Cristo, da conveniência de ele morrer.
Sacrificar, então, uma vida por força da segurança de “razões de Estado”, do capital, negócios, religião, partido, ideologia, é considerada razão suficiente, quando esse direito humano fundamental estiver “atrapalhando”, e tudo vai ser feito em nome da justiça mesmo que a verdade, para a qual ela é condição de existência, esteja sendo falseada. Consciente ou inconscientemente, o vozerio multitudinário reinante pode estar nos conduzindo nessa direção.
As crises de hoje, no Brasil, podem não estar ameaçando a vida de João ou Maria, mas que milhões de brasileiras/os, já vem sendo vítimas dessa inquietude malsã, beirando o desespero, por um passado opressor e injusto, duramente acentuado na ditadura, provocando danos morais e existenciais individuais e coletivos, isso precisa ser lembrado, para se evitar a sua trágica repetição, pois só é coisa de agora para quem aqui não viveu permanentemente com fome, sem terra, sem teto, sem liberdade consequentemente.
Pelo simples motivo de uma verdadeira concepção de humanidade, mais do que simplesmente de um Estado democrático de direito, não poder aceitar a supressão, a diminuição, a humilhação ou o desprezo de uma só vida. É considerando cada uma como própria que ela vai poder se libertar da mentira (até aquela que a própria lei e sua intepretação abrigam) por uma verdade capaz de garantir o livre curso da justiça.
A verdade de Galileu tem de ganhar força e poder junto ao povo para exorcizar o juízo de Caifás, nenhuma/a brasileiro/a “caindo fora” dessa autêntica missão. Como a verdade é filha do tempo e não da autoridade, já é hora de se vencer esse tempo de quaresma para se chegar, de vez, ao da páscoa.
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A injustiça é o principal efeito da mentira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU