30 Agosto 2014
O Papa Francisco acenou para a multidão em sua chegada para participar na Jornada da Juventude Asiática no começo deste mês na Coreia do Sul. No entanto, a reação quanto à mais recente coletiva de imprensa do pontífice, dada no dia 18 durante o voo volta do país asiático a Roma, se centrou sobre se os seus comentários a respeito dos ataques aéreos americanos no Iraque representam um endosso ou uma repreensão.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo jornal The Boston Globe, 23-08-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O religioso ficou no meio termo, dizendo ser legítimo deter um agressor injusto, mas que isso não significa necessariamente jogar bombas e, certamente, não é uma “guerra de conquista”, e ainda que sempre seria melhor ter a garantia das Nações Unidas.
Qualquer que seja a interpretação feita sobre esta resposta, todos sabiam que esta pergunta estava vindo e que o papa havia se preparado para ela. Suas palavras pareceram refletir um equilíbrio diplomático e certa circunspecção, diferente de sua espontaneidade marcante.
Caso queiramos ter o melhor insight sobre quem Francisco realmente é, precisamos olhar para outro lado.
Foi no início da coletiva, quando um jornalista coreano perguntou ao papa sobre o seu gesto durante a visita junto aos familiares das vítimas da tragédia envolvendo a balsa Sewol no dia 16 de abril, naufrágio onde morreram mais de 300 pessoas, a maioria estudantes do ensino médio. A tragédia provocou uma indignação nacional no país, com as famílias exigindo uma lei especial que autorize uma investigação criminal independente.
Durante os cindo dias em que esteve no país, Francisco usou um distintivo na forma de uma fita amarela que se tornou o símbolo do desastre. Na cabeça de muitos coreanos, esta fita não apenas expressa a simpatia como também solidariedade com o pedido para aquela lei especial, além de uma posição crítica quanto ao fracasso do governo em agir após o desastre.
Francisco revelou que depois que já estava usando o distintivo, alguém veio e lhe disse: “Seria melhor se o tirasse do peito (...). O senhor deve ser neutro”.
Francisco disse que respondeu: “Olha, não podemos ser neutros perante o sofrimento humano”.
“Foi isso o que eu disse”, falou Francisco. “E é isso o que eu sinto”.
Embora possa não parecer grande coisa prender um distintivo na sua batina, vale a pena sublinhar o quão distante isso está da norma em geral. Historicamente, os papas têm sido extremamente relutantes em embaraçar os governos anfitriões quando viajam. Caso sentirem que precisam levantar um dedo, fazem-no atrás de portas fechadas e não em público.
A razão é óbvia: os papas precisam do apoio dos governos locais para fazerem estas viagens, e se os políticos precisarem se preocupar com constrangimentos, podem estar menos inclinados a estenderem o tapete vermelho.
Quando Francisco disse que “alguém” sugeriu remover o distintivo (na foto, em amarelo), não faltou muito para pensarmos que este foi um membro de sua própria equipe diplomática, preocupado com o fato de que a presidente sul-coreana, Park Geun-hye, pudesse se irritar.
No final da viagem, houve outro momento marcante envolvendo um distintivo.
Durante uma missa pela paz e reconciliação na segunda-feira, Francisco cumprimentou sete idosas coreanas – “mulheres de conforto” [ou mulheres de alívio, como também são conhecidas] – que foram forçadas à escravidão sexual junto com a ocupação japonesa. Em sua maioria confinadas a cadeiras de roda, estas mulheres são ícones nacionais da opressão do governo japonês.
Uma das mulheres presenteou o papa com um distintivo: uma borboleta amarela, simbolizando o sofrimento. O pontífice o colocou (foto) sobre sua vestimenta externa, chamada casula, e o usou durante a missa.
Além da aparente indiferença do papa para com qualquer reação negativa vinda do Japão, o pontífice estava também desafiando a prática usual dos padres ao rezar a missa. As regras da Igreja claramente desencorajam, ainda que tecnicamente não proíbam, os padres de acrescentarem adereços às vestimentas.
Assim como um especialista em liturgia escreveu: “A última coisa que se quer é que um padre fique em pé lá na frente parecendo um motorista de Fórmula 1 [cheio de marcas famosas estampadas]. Isso estabelece um precedente perigoso, por mais nobre que a causa possa ser”.
Até mesmo aqui, Francisco não teve medo.
Embora pequenos em si mesmos, os distintivos denotam uma ironia gigantesca da era Francisco.
Francisco disse querer promover a colegialidade, ou seja, promover um processo compartilhado de tomada de decisão em vez de impor a sua própria vontade. No entanto, os costumes diplomáticos e litúrgicos que ele tão alegremente alterou na Coreia do Sul representam, na realidade, a sabedoria coletiva dos papas passados, e em certo sentido de toda a Igreja, sobre como as coisas devem ser feitas.
Poder-se-ia argumentar que um ato verdadeiramente colegial seria ele se submeter a estes protocolos até que se realizasse uma ampla consulta sobre se precisam ser modificados ou não. Isso, todavia, não faz parte do estilo do Papa Francisco. Quando a sua intuição e o seu coração lhe dizem que algo importante está em jogo, ele se mostra disposto a agir de forma unilateral em questões tanto grandes quanto pequenas.
Noutras palavras, este é um papa aparentemente comprometido com a colaboração, mas cuja informalidade se parece, às vezes, com aquela conhecida música do Frank Sinatra: “My Way” [Do meu jeito].
Os teólogos terão de se decidir sobre o que tudo isso significa para o exercício da autoridade no catolicismo. Mas, por enquanto, os comentários desafiadores de Francisco sobre o distintivo parecem não deixar dúvida aqui: as inovações deste pontífice estão longe de terminar.
Em termos do que está por vir, a verdadeira resposta é: “Quem sabe?” Francisco pode ter dado uma dica, no entanto, ao revelar durante a coletiva que considerou uma viagem surpresa ao Iraque depois de voltar da Coreia do Sul e que ainda está aberto a esta ideia.
É quase certo que seus assessores vão lhe apresentar um monte de razões, diplomáticas e de segurança, pelas quais deve ser cuidadoso, assim como é certo que não há, absolutamente, um guia para o que, de fato, ele irá fazer.
O apoio aos ataques aéreos americanos no Iraque
Quanto ao uso da força contra o grupo radical Estado Islâmico no norte do Iraque, uma alta autoridade da Igreja disse algo que se pode considerar um aval.
Em entrevista, no dia 21 de agosto deste ano, à televisão italiana, o cardeal Philippe Barbarin, de Lyon, disse que “chegou a hora (…) de fazer desaparecer com o – Estado Islâmico” através da combinação de uma “ação política e militar”.
Barbarin falava após a decapitação do fotojornalista americano James Foley, a quem descreveu como “profundamente católico”.
Barbarin, que é visto amplamente como uma figura influente no Vaticano, há pouco liderou uma delegação de bispos franceses no Iraque. Na entrevista, defendeu com vigor uma resposta militar.
“João Paulo II explicou bem, durante a guerra dos Balcãs, que às vezes o pacifismo se opõe ao progresso da paz”, disse Barbarin, insistindo que o Estado Islâmico “deve ser detido para parar de espalhar mais terror”.
Barbarin também disse que, se a França decidir se juntar à ação militar americana, ele vai “confiar nas decisões dos nossos governos”.
Barbarin pareceu apoiar a ampliação da campanha contra o grupo radical, ao dizer que seria um erro não chamar o líder do autoproclamado califado de “louco”.
“Jamais devemos subestimar este adversário”, disse. “Sabemos que ele está bem armado e que tem mostrado capacidades inegáveis. Não esqueçamos que ele derrubou o poder estabelecido em Mosul em menos de 24 horas, numa época em que esta cidade estava guarnecida pelo exército”.
Barbarin também deu a entender que os católicos de todo o mundo deveriam rezar o Pai Nosso todos os dias até que os refugiados de Mosul possam retornar para suas casas.
Por que o papa é importante
Os céticos podem se perguntar por que é importante saber o que um papa pensa sobre os bombardeios americanos no Iraque, ou sobre qualquer outra questão política. Dado que o papa é apenas um líder religioso, sem exércitos para fazer uso e com pouca força econômica, por que se preocupar com o que ele pensa?
Uma rápida resposta seria: se você não acredita que um papa possa influenciar o curso da história, então precisará conversar com ex-burocratas soviéticos em toda a Europa oriental que hoje se encontram sem trabalho em parte por causa do papel que o falecido João Paulo II desempenhou na queda do comunismo.
Se isso não for o suficiente, há pouco tivemos novas provas de que intervenções papais podem fazer a diferença. Dessa vez com relação ao Papa Francisco.
Bob Carr, ex-ministro australiano das Relações Exteriores, cargo que exerceu de março de 2012 a setembro de 2013, recentemente publicou um livro de memórias. Entre outras coisas, Carr revelou detalhes de uma reunião, de setembro de 2013, do grupo de países chamado G20 ocorrida em São Petersburgo, onde o governo Obama e seus aliados ocidentais foram pressionados a não usar a força para punir o presidente sírio Bashar al-Assad depois das denúncias de que o seu regime teria usado armas químicas.
Antes desta reunião, o Papa Francisco escrevera ao presidente russo Vladimir Putin, anfitrião da cúpula do G20, pedindo que os países “deixassem de lado a busca fútil de uma solução militar”.
A carta tinha sido publicada pelo Vaticano como parte da campanha do papa contra qualquer uso da força, o que também incluiu convocar um dia de oração e jejum pela paz na Síria no dia 7 de setembro.
Carr revela que durante o debate a portas fechadas, o primeiro-ministro italiano na época, Enrico Letta, disse que, embora gostaria de apoiar os americanos, a carta do papa “é um grande fator para mim em termos nacionais”.
“Devemos insistir na necessidade de encontrar uma forma para autorizar uma intervenção”, diz Letta segundo Carr. “Se todos estiverem convencidos de que foi Assad, então só precisaremos da autorização do Conselho de Segurança da ONU”.
Tendo a Rússia e a China como membros permanentes do Conselho de Segurança, Letta sabia muito bem que, invocando uma aprovação assim, estava efetivamente dizendo não ao uso da força.
Mais tarde, Carr relata as observações de Putin a outros líderes de Estado. Segundo escreve, Putin acabou dizendo: “escutemos o que o papa diz”, e então citou a carta do Papa Francisco sobre a necessidade de se evitar usar a força.
É verdade, se a posição do papa não estivesse alinhada com a da Rússia, Putin poderia não tê-la citado. Também é verdade que, se o governo de Letta na Itália não estivesse em apuros, ele bem que poderia ter se retirado de um conflito que sabia ser polêmico.
Mesmo assim, o que as memórias de Carr ilustram é que sem estar presente fisicamente, Francisco foi, não obstante, uma força na reunião do G20. Esta é uma lição do porquê os papas importam, independentemente daquilo que se faz com as suas reivindicações espirituais.
A ansiedade sobre a comissão antiabuso
Por falar em pessoas importantes australianas, nesta semana o cardeal George Pell deu um depoimento, via videoconferência direto de Roma, perante a Comissão da Verdade local que cuida dos casos de abusos sexuais na Igreja Católica. Perguntaram-lhe sobre um plano que pôs em prática enquanto era o arcebispo de Melbourne, em 1996.
Hoje Pell é o czar financeiro do Papa Francisco, sem dúvida uma figura poderosa em seu papado.
O termo mais comum usado na mídia australiana que busca caracterizar o depoimento do cardeal na terça-feira foi “desafiador”. Embora afirmasse que a sua prioridade sempre foi ajudar a curar as vítimas, Pell recusou-se a se retratar em três frontes principais:
• Defendeu um sistema de indenização em Melbourne que aprovava pagamentos às vítimas no valor de 50 mil dólares, dizendo que alguns poderiam receber nada se fossem aos tribunais.
• Insistiu que a culpa pelos abusos não deveria ser “imposta” aos líderes da Igreja, caso o sacerdote agisse sem o conhecimento de seus superiores. Comparou a Igreja a uma empresa de caminhões, argumentando que, se um motorista assedia uma mulher violando a política da empresa, a empresa não é culpada.
• Defendeu a decisão vaticana de não apresentar todos os documentos em sua posse relativos aos padres australianos acusados, sustentando não ser “nem possível nem apropriado” esperar que um Estado soberano divulgue documentos internos de trabalho. Pell acrescentou que o Vaticano fornecerá os documentos na medida em que forem necessários, e afirmou que, na prática, tudo o que a comissão quer já está disponível na Austrália.
Esta reação vai provavelmente se refletir na avaliação mais ampla que se faz da resposta da Igreja aos escândalos de abuso. Aos que tendem a acreditar que a Igreja se curvou para acomodar os críticos – e isso vem sendo sustentado por muitos –, a disposição do cardeal Pell em traçar limites na areia vai, é bem provável, ser interpretada como razoável e que há tempos deveria ser assim. Aos que consideram a resposta como lamentavelmente incompleta, o depoimento feito irá se parecer como o último capítulo num padrão adotado de obstruir as investigações.
Em todo caso, este passo é mais um lembrete de que as discussões sobre os escândalos sexuais estão longe de se resolver. Embora a popularidade geral do Papa Francisco dê à Igreja algum fôlego, não há garantias de que isso irá durar para sempre.
Esta reflexão ajuda a explicar por que nas reformas da Igreja há uma preocupação crescente com a nova Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, lançada em dezembro de 2013, que deveria ser o ponta pé inicial de uma operação de limpeza. A Comissão, que inclui o cardeal Sean P. O’Malley, de Boston, foi importante na organização da primeira reunião deste papa com vítimas de abusos no dia 7 de julho.
Embora tenha havido bastante trabalho nos bastidores, os estatutos para a Comissão não foram oficialmente aprovados ainda, os novos componentes representando outras partes do mundo ainda não foram nomeados e as decisões sobre onde a Comissão irá ter sua sede e quais serão os seus líderes ainda estão para serem anunciados. Além da reunião com as vítimas, a Comissão não lançou nenhuma iniciativa pública que desse alguma indicação de suas prioridades e direção.
Tudo isso contrasta-se com o ritmo rápido no qual a reforma financeira, lançada pelo papa e conduzida por Pell, está se movendo.
O que os reformadores na Igreja estão dizendo, até então apenas em off, é que a Comissão precisa fazer algo em breve para criar a impressão de movimento. O que eles não querem é que as pessoas cheguem à conclusão de que lidar com dinheiro é o que importa neste papado, enquanto que proteger as crianças é uma questão secundária.
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Coreia do Sul. Dois distintivos na lapela mostram um Papa decidindo por si mesmo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU