30 Dezembro 2025
"A emergência e o aperfeiçoamento dos tratamentos no campo da saúde acabam por alimentar uma ideia complicada: a de que podemos vencer sempre a batalha contra o inexorável. Não damos conta de lidar com a ideia de que somos mortais. Há sempre em curso uma ideia que vigora, e que vem reforçada nos cursos de medicina, de que a guerra contra a morte pode ser vencida. Contudo (...) na luta conta a morte todos vamos perder...”, escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, publicado em sua página de Facebook, 18-12-2025.
Eis o artigo.
Trata-se de uma linda iniciativa de Luciana Dadalto e Úrsula Guirro na organização dos dois tomos da obra: Bioética e cuidados paliativos (Editora Foco, 2023 e 2024). Já dei uma primeira olhada sobre os livros e li alguns dos artigos com muito carinho e atenção. Há que lembrar que a advogada e doutora em ciência da saúde, Luciana, foi quem fundou a Associação “Eu decido”, em favor da morte assistida, que conta hoje com mais de 400 membros. Quero aqui chamar a atenção para dois artigos que estão no primeiro volume da obra: "Obstinação terapêutica" (de Claudia Inhaia e Paula Barrioso) e "Ortotanásia e eutanásia passiva: descortinando tabus" (de Fernanda G. Lopes, Bárbara N. Giannastásio e Úrsula).
Achei esse último artigo, em particular, muito enriquecedor. Todos os artigos começam com um caso específico. No artigo sobre a Ortotanásia, o caso escolhido foi de Vládia, de 40 anos, acometida desde os 37 anos como Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). O desenrolar do caso de Vládia, que expressou o desejo de morrer, não terminou segundo a sua vontade. O médico plantonista da UTI acabou decidindo por sua intubação, e ela morreu quatro horas depois, numa decisão que contrariou a sua vontade.
Como apontaram os autores, com razão, “o fim da vida das pessoas portadoras de ELA frequentemente ocorre dentro da UTI, com possibilidade de emprego de medidas invasivas como a entubação orotraqueal, alimentação artificial, drogas vasoativas, entre outras, mas que nem sempre trazem qualidade de vida...”.
Não é incomum ocorrerem tensões entre a equipe da UTI e a equipe de cuidados paliativos. Infelizmente em nossa sociedade, como mostrou com detalhes Philippe Ariès, em sua obra sobre a história da morte no Ocidente, a morte não é vista como “um processo natural da vida, mas como um evento pelo qual 'tentamos passar despercebidos'”.
A emergência e aperfeiçoamento dos tratamentos no campo da saúde acabam por alimentar uma ideia complicada: a de que podemos vencer sempre a batalha contra o inexorável. Não damos conta de lidar com a ideia de que somos mortais. Há sempre em curso uma ideia que vigora, e que vem reforçada nos cursos de medicina, de que a guerra contra a morte pode ser vencida. Contudo, como dizem os autores do artigo citado, na luta conta a morte todos vamos perder...
Segundo Fernanda Lopes e as coautoras do artigo, os profissionais de saúde “passam a construir sua prática compreendendo a morte como um fenômeno técnico quase inadmissível, que pode ser impedido ou adiado”. É essa a ideia simplória de entender a morte como um simples “evento”. E o duro nisso tudo, é que o paciente fica excluído de qualquer possibilidade de opção: as decisões não pertencem a ele.
Quando entra, então, a questão religiosa em jogo, a ideia que se firma é a de que temos que defender a todo custo a vida, e ela “não pode ser interrompida mesmo diante da vontade do paciente ou das avaliações clínicas do profissional” que lida com o caso. Nesta visão restrita, “estar vivo é sempre um bem, independentemente das condições em que a existência se apresente”. E o mais curioso, é que quanto mais aparelhado está o hospital, aumenta mais o risco dos procedimentos de distanásia.
O que vigora, em geral, na nossa sociedade é o predomínio da distanásia e da obtinação terapêutica. A vontade do sujeito que sofre, bem como sua biografia, ficam em segundo ou terceiro planos com respeito à voracidade de prolongamento da vida biológica a todo custo. Em muitos casos, nesse ambiente de distanásia, a agonia ganhar um lugar central nos momentos mais dramáticos da vida do doente. Tudo é feito para adiar a morte, “transformando a fase final da vida em um doloroso processo de morrer”. Como muito bem disse Gilberto Gil, o “morrer” é o que há de mais difícil:
“É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar”.
Felizmente, nas últimas década crescem as reflexões e atuações profissionais numa linha diferente, que podemos nomear como ortotanásia, onde os cuidados paliativos ganham um novo lugar no cenário do morre:
“A prática cotidiana dos profissionais de saúde passou a demandar múltiplas reflexões sobre seus limites e possibilidades, não apenas de ordem legal, mas também a partir de um fundamento ético, que necessita de constantes reavaliações” (artigo citado).
E junto com as reflexões que priorizam os cuidados paliativos e a ortotanásia, começam agora a acontecer, também aqui no Brasil, fora do cinturão protegido de certos paliativistas tradicionais, debates que situam também a possibilidade do direito à morte assistida.
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