‘Podemos estar contratando vários Brumadinhos’, afirma presidente do ICMBio sobre a nova Lei Geral do Licenciamento

Foto: Isac Nóbrega | PR

19 Dezembro 2025

Presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Mauro Pires avalia que a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (Lei nº 15.190/2025), aprovada pelo Congresso após a derrubada de vetos do presidente Lula (PT), representa um grave retrocesso ambiental.

A entrevista é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazônia, 18-12-2025. 

Em entrevista exclusiva à InfoAmazonia, Pires afirma que a flexibilização do licenciamento pode resultar em uma enxurrada de ações judiciais e novos desastres ambientais. Ele avalia que o Brasil pode “estar contratando vários Brumadinhos daqui para frente” e critica o avanço do autolicenciamento para empreendimentos de média complexidade.

As novas regras do licenciamento foram instituídas pelo Congresso com a derrubada dos vetos de Lula (PT) no chamado PL da Devastação (PL 2159/2021). Aprovado em agosto, o texto havia recebido uma série de vetos do presidente, que apontou um enfraquecimento da proteção ambiental, um aumento da insegurança jurídica e um desrespeito aos direitos dos povos indígenas e quilombolas.

Lula também vetou a criação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), que permite emissão de licenças sem análise prévia dos órgãos ambientais, e a Licença Ambiental Especial (LAE), que estabelece um trâmite acelerado de até 12 meses para emissão de licenças para projetos considerados estratégicos pelo governo. No caso da LAC, o Congresso derrubou o veto do presidente restabelecendo o rito especial; já a LAE, que havia sido incluída no PL do licenciamento pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), virou a Medida Provisória 1308/2025 que, ao ser convertida em lei, recebeu uma série de emendas que modificaram o novo regramento para o licenciamento.

Mauro Pires assumiu o ICMBio em maio de 2023, escolhido por meio de um comitê que avaliou 18 candidaturas. O processo marcou o retorno da escolha para a presidência da autarquia pautada pelo critério técnico.

Pires é servidor de carreira, especialista em meio ambiente do ICMBio desde 2009. Em sua atuação no Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima (MMA), trabalhou como diretor de dois departamentos: o de Extrativismo e o de Políticas de Combate ao Desmatamento (DPCD). Também foi diretor de programa da Secretaria Executiva e chefe de gabinete da Secretaria de Biodiversidade e Florestas.

Eis a entrevista.

Como o senhor avalia as mudanças recentes na legislação ambiental aprovadas pelo Congresso?

É uma contradição enorme. A gente mal concluiu uma COP com compromissos claros assumidos pelo Brasil e, logo em seguida, o Parlamento aprova um pacote de retrocessos ambientais. O licenciamento ambiental é um instrumento fundamental de prevenção. Ele serve tanto para proteger o meio ambiente quanto para dar segurança ao empreendedor. Quando você flexibiliza esse instrumento, você deixa de atuar antes do dano e passa a agir depois, quando o prejuízo ambiental já aconteceu. Isso fere diretamente o princípio da prevenção e da precaução.

O Parlamento brasileiro agiu na contramão das preocupações globais. Foram 50 anos construindo uma legislação ambiental baseada no licenciamento como instrumento de prevenção. Isso está sendo desmontado. O custo disso não será apenas ambiental, mas social, econômico e jurídico, e quem vai pagar são as próximas gerações.

Você acredita que as alterações podem contribuir para o aumento do desmatamento ou de desastres ambientais?

No caso específico do desmatamento nas unidades de conservação, o impacto não é tão direto, pois a fiscalização vai continuar. Mas impacta, sim, na perda de biodiversidade. Em relação a desastres e danos ambientais, sem dúvidas, existe um afrouxamento. O licenciamento é um instrumento que serve para os dois lados, tanto para o empreendedor, porque o projeto precisa ser bem planejado sobre os seus impactos ambientais, como para o dever legal da preservação ambiental. Se essa alteração legislativa perdurar, podemos estar contratando vários Brumadinhos.

A nova lei amplia o uso do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), que é, na prática, um autolicenciamento para empreendimentos de média complexidade. Isso é muito preocupante. Brumadinho, por exemplo, se enquadrava nessa categoria. É uma mudança que vai na linha contrária do que o Brasil assumiu frente aos demais países.

Com a LAC, o empreendedor passa a acreditar que está protegido pela flexibilização, instala e opera com menos filtros preventivos. Só que, quando o impacto acontece, o poder público continua obrigado a agir: fiscalizar, embargar, multar e encaminhar ao Ministério Público, o que tende a gerar judicialização. O problema é que, nesse momento, o dano ambiental já ocorreu. O licenciamento existe justamente para evitar que a tragédia aconteça, não para correr atrás do prejuízo depois.

O que muda, na prática, para as unidades de conservação?

Antes, qualquer empreendimento que causasse impacto significativo em uma unidade de conservação precisava da autorização do órgão gestor, no caso, o ICMBio.

Agora, o órgão pode até ser ouvido, mas seu parecer deixou de ser vinculante. Isso significa que um empreendimento pode ser autorizado mesmo impactando diretamente uma unidade, como no caso de atividades fora do limite da UC, mas que afetam lençóis freáticos, rios ou habitats protegidos. É um enfraquecimento claro da gestão das unidades de conservação.

Por exemplo, você tem um rio, o leito está dentro da unidade [de conservação] e existe um projeto de mineração do lado de fora. Se impacta o lençol freático, o órgão gestor tem que ser ouvido e dar autorização. Agora, o órgão pode ser ouvido, mas o parecer não é mais vinculante. Vai dar uma insegurança muito grande, porque o empreendedor acha que, por causa dessa mudança legal, poderá fazer seu empreendimento. De fato, vai poder, mas, se causar o impacto, o órgão gestor é obrigado a olhar para esse impacto.

O que ocorre é que o órgão vai deixar de atuar preventivamente na fase do licenciamento e passará a atuar posteriormente na fiscalização. Mas aí já teremos um custo social que todos nós vamos pagar. E o próprio empreendedor também vai acabar pagando. Ele terá prejuízo pecuniário [financeiro] associado a um prejuízo ambiental, que é coletivo.

Parlamentares alegam que o licenciamento é um entrave ao desenvolvimento. Como o senhor responde a isso?

Existe um argumento legítimo sobre a falta de estrutura dos órgãos ambientais, especialmente em estados e municípios. Muitos municípios sequer têm uma área especializada em meio ambiente. Isso é uma realidade.

Mas esse problema não se resolve flexibilizando a legislação. O licenciamento é parte do desenvolvimento nacional. Em todo lugar onde um setor econômico se estabeleceu e se estruturou de forma sólida, houve planejamento, regras claras, autorizações prévias e investimento do setor público para permitir que a atividade se consolidasse.

Quando você flexibiliza a regra, você dá um sinal de laissez-faire. Mínima interferência do governo na economia e nos assuntos individuais, permitindo que o mercado se autorregule pela oferta e demanda: cada um faz conforme acha que deve ser. Só que a gente lida com bens públicos, que são de todos — o ar, a água, a biodiversidade. O resultado é uma apropriação privada desses bens, com prejuízos que acabam sendo coletivizados.

Você assumiu o ICMBio após um período do governo Bolsonaro que era declaradamente menos preocupado com as questões ambientais. Como você avalia a estrutura atual do órgão?

Comparativamente, o instituto está infinitamente melhor. O orçamento praticamente dobrou, saiu de cerca de R$ 290 milhões no fim de 2022 para quase o dobro agora. Chamamos 430 novos servidores, um aumento de cerca de 25% da força de trabalho. Isso significa mais presença em campo, mais fiscalização, mais estrutura. O ambiente institucional também mudou: acabou o clima de perseguição e a chamada “lei da mordaça”. Revogamos a portaria que impedia os servidores de falar com a imprensa.

O desmatamento dentro das unidades de conservação caiu 74% em relação a 2022. Isso acontece porque o ICMBio voltou a estar presente no território, cumprindo seu papel. Combater o desmatamento ilegal é uma diretriz clara desde o primeiro dia do governo Lula, com a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam, Política pública brasileira criada em 2004 para reduzir o desmatamento na Amazônia e promover um desenvolvimento sustentável, resultando em grandes quedas na taxa de desmatamento. A política foi retomada em 2023, após ser suspensa no governo Bolsonaro, com a meta de desmatamento zero até 2030.).

Já criamos 10 novas unidades [de conservação] e ampliamos outras quatro. A criação de unidades é uma das ferramentas mais eficazes de ordenamento territorial e combate ao desmatamento. São estratégicas para o enfrentamento da crise climática, funcionam como grandes sumidouros de carbono, têm governança estabelecida e permitem ações de adaptação, como vimos durante as secas recentes na Amazônia.

O ICMBio propôs a criação de unidades de conservação na costa norte da Amazônia, na margem equatorial. O que aconteceu com essa proposta?

Propusemos a criação de três reservas extrativistas no Amapá, principalmente marinhas, para proteger os mangues amazônicos, que é a maior área contínua de manguezais do Brasil. Suspendemos as consultas públicas porque o debate sobre exploração de petróleo na margem equatorial gerou uma onda de desinformação e ameaças às comunidades extrativistas, como se elas fossem inimigas do desenvolvimento, o que não é verdade.

Agora que a licença ambiental para a exploração já foi concedida, aquele argumento de que as unidades inviabilizariam o petróleo perdeu força. Estamos avaliando com o Ministério do Meio Ambiente a retomada do processo, com diálogo amplo com a sociedade. Preservar esses ecossistemas é proteger a biodiversidade, o clima e os modos de vida tradicionais. É uma agenda que beneficia toda a sociedade.

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