05 Dezembro 2025
A proposta de Silvia Federici desmantelou a ideia do lar como refúgio e revelou que a economia começa na cozinha, no cuidado, nos corpos que sustentam o mundo sem salário e reconhecimento.
A reportagem é de Anna Margoliner, publicada por Insurgencia Magisterial, 03-12-205. A tradução é do Cepat.
Houve um momento, nos anos 1970, em que algumas mulheres pararam de falar de amor e começaram a falar de trabalho. Silvia Federici, filósofa e militante ítalo-americana, foi uma delas. Enquanto o capitalismo industrial cambaleava em meio a crises e greves, ela e outras feministas começaram a olhar para dentro dos lares: ali, no invisível, residia uma das maiores fontes de exploração do sistema.
Seu manifesto, Salário para o trabalho doméstico (1975), não pedia apenas dinheiro; exigia uma revolução na forma de entender a economia, a família e a própria ideia de liberdade.
Quando o capital entrou no lar
Os anos 1970 foram um período de efervescência e de esgotamento. Na Europa e na América Latina, os movimentos sociais tinham aberto fissuras na ordem tradicional, mas o capitalismo global respondia com uma profunda reestruturação. A crise do petróleo, o desemprego e a transição para o neoliberalismo começaram a redefinir as relações entre Estado, trabalho e sociedade.
Nesse cenário, o feminismo da segunda onda emergia como uma força transformadora. As mulheres tomavam as ruas e as universidades para exigir igualdade no trabalho, direito ao aborto, liberdade sexual e acesso à educação. No entanto, dentro do próprio movimento, nascia um debate crucial: bastava integrar-se ao mundo do trabalho assalariado ou era necessário questionar as próprias bases da produção capitalista?
Federici fez parte dessa segunda frente. Juntamente com Mariarosa Dalla Costa, Selma James e outras militantes da corrente conhecida como feminismo autônomo marxista, começou a enxergar o lar com outros olhos. Em vez de vê-lo como um espaço privado ou natural, passaram a analisá-lo como uma instituição econômica onde se reproduzia a força de trabalho indispensável ao capital. As tarefas de cozinhar, limpar, criar e cuidar não eram simplesmente atos de amor, mas trabalho não remunerado que garantia a sobrevivência do sistema.
A campanha Wages for Housework - nascida na Itália e depois estendida para a Inglaterra, os Estados Unidos e a América Latina - propôs tornar esse trabalho visível e exigir sua remuneração. Foi uma estratégia provocativa que sacudiu tanto o feminismo liberal quanto o marxismo ortodoxo. As feministas do salário diziam que não queriam “ingressar no trabalho” porque já estavam trabalhando: o tempo todo, sem salário e sem direitos.
Esse contexto histórico marca o ponto em que a economia deixou de ser um assunto exclusivamente masculino. A visão feminista começou a introduzir a noção de trabalho reprodutivo, um conceito que revolucionaria a teoria social e abriria caminho a debates contemporâneos sobre os cuidados, a precarização e a economia feminista.
A economia do afeto
Federici desmantelou uma das ficções mais persistentes do capitalismo: a de que apenas o trabalho assalariado produz valor. Em sua leitura marxista do lar, a esfera doméstica não está separada, mas é a própria base sobre a qual repousa a produção de mercadorias. O capital, diz Federici, “nunca deixou de depender do trabalho não remunerado das mulheres”.
Sua proposta de um salário para o trabalho doméstico não era simplesmente uma reivindicação econômica, mas uma ferramenta política para visibilizar a exploração oculta sob a ideologia do amor e da vocação materna. Ao exigir um salário, as mulheres desafiavam o mito da “entrega natural” e questionavam a suposta neutralidade do trabalho reprodutivo.
A autora alerta que enquanto esse trabalho permanecer invisível, as mulheres continuarão sendo a reserva silenciosa do capital. Daí sua crítica a certos feminismos liberais que buscavam só a igualdade dentro do sistema, sem transformá-lo. Federici não queria uma cota na fábrica; queria mudar a fábrica inteira.
Uma vida entre a teoria e as ruas
Silvia Federici nasceu em Parma, Itália, em 1942, e foi para os Estados Unidos nos anos 1960, onde se atrelou aos movimentos estudantis e feministas. Professora, ensaísta e ativista incansável, dedicou sua vida a conectar as lutas das mulheres com as lutas anticapitalistas e decoloniais.
Nos anos 1980, trabalhou na Nigéria, onde ampliou sua análise para as economias do Sul Global e a violência do neoliberalismo contra os corpos femininos. Essa experiência deu origem a outra de suas obras fundamentais, Calibã e a bruxa (2004), na qual reconstrói o vínculo histórico entre a caça às bruxas e a acumulação capitalista.
Quando receberemos salários?
Cinquenta anos depois, o slogan “salário para o trabalho doméstico” continua sendo uma das provocações mais poderosas do feminismo marxista. Não porque todas as mulheres desejam ser remuneradas por limpar e cuidar, mas porque Federici nos obrigou a olhar de frente para a raiz do problema: o sistema precisa da nossa energia vital, emocional e física para se sustentar, sem retribui-la
Em tempos em que a economia do cuidado volta a ocupar o centro do debate global, as palavras de Federici ressoam com uma força renovada. O que já foi visto como uma reivindicação utópica, hoje, revela-se como uma verdade estrutural: sem as mulheres, o capital não funciona. E reconhecer isto é o primeiro passo para subvertê-lo.
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