02 Dezembro 2025
"Sei e sinto tudo isso já que também eu sou um dos 60 mil, sou nascido e criado um ‘filho de Bebedouro’, como por lá dizemos... eu, alagoano de Maceió, que não mais poderei pisar e sentir o meu chão de criança na rua descalça, pois o capitalismo devorou minha infância", escreve Marcos Epifanio Barbosa Lima.
Marcos Epifanio Barbosa Lima é educador. Habilitado ao Magistério pelo CBC Alagoas (1999). Graduado em Pedagogia Pela UFBA (2009). Especialista em Espiritualidade Inaciana pela Universidad Pontificia Comillas (Madri) (2015) e em Análise do Discurso (PUC-SP) (2018). Mestre em Gestão Educacional pela Unisinos (2018). Doutor em Educação pela Unisinos (2024). Membro do Conselho Curador FeA, do Conselho da ABEPARE, do Conselho Editorial da Revista Itaici. Escritor. Pós-doutor em Educação no PPGE-Unisinos (2024-2025). Marcos Epifanio é irmão jesuíta.
Eis o artigo.
“Nossa interdependência neste planeta se faz cada dia mais evidente com realidades de amplo espectro, desde a economia até a ecologia. Para responder a este mundo, que vai ficando pequeno rapidamente, os Jesuítas têm posto o foco em educar para uma cidadania responsável no cuidado universal.... Quais são as características mais notáveis dessa educação futura, orientada para a cidadania responsável em escala mundial? O pensamento crítico, aplicado com amabilidade ao processo político”.
Peter-Hans Kolvenbach, SJ (1928-2008)
Discursos universitários
Georgetown-EUA, 8 de junho de 1989.
Não recordo bem como me chegou a informação da existência do livro Cidade rachada (SERRA, 2025). O que recordo é que pensei: tenho que ter esse livro, pois ele pode me ajudar a explicitar como o capitalismo devorou minha infância.
Acredito que um livro não se lê (só) pela capa. Quando um livro me chega às mãos, faço duas coisas: vejo o que está no índice – entendendo-o como o modo original que os autores conseguiram pensar, organizar e dar forma a um conteúdo – e, na sequência, analiso a bibliografia utilizada – como vozes de outros às ideias que os autores querem comunicar.
Em Cidade rachada, o sumário mapeia 44 narrativas em formas de breves capítulos – contendo entre três e cinco páginas cada um deles. Leitura curta e respeitosa, anunciativa e denunciativa, que me revela o trato digno e à altura da densidade e do drama do tema: capitalismo devorando mundos!
Na leitura do livro, consegui pôr em arranjo alguns blocos temáticos ou focos de atenção que, mesmo que não fizessem falta, ajudaram-me a estabelecer alguns recortes de análise como possíveis chaves de (outras) leitura e interpretações a partir desses (re)arranjos:
histórias biográficas (“Uma família no Bebedouro”, p.153-155);
narrativas do cotidiano (“As gêmeas de Bebedouro”, p. 232-233);
relatos pessoais (“Os cajus e os cactos”, p. 38-41; “A mundaú e os pescadores”, p. 191-194);
vozes em primeira pessoa (“Na parede da memória”, p. 145-148);
textos entrevista (“Coveiros da Braskem”, p. 234-237);
ditadura militar (“O governador biônico e o Ditador”, p. 83-86);
aparelhamento do Estado (“CPI da Braskem”, p. 201-208”);
racionalismo neoliberal (“Cerco à vítima”, p. 209-215);
colapso climático (“Flores e lágrimas”, p. 169-171);
mineração predatória (“A mina 18”, p. 175-179);
literatura alagoana (“No rastro de Nise e Graciliano”, p. 221-224);
cronologia e datação factual (“O mapa da tragédia”, p. 16-17);
relatórios oficiais (“Ausências na CPI”, p. 201-208);
estudos e escritas científicas e acadêmicas (“Teia econômica rompida”, p. 156-161);
imagens e semiótica (“Muros e histórias”, p. 246-255).
As referências bibliográficas são múltiplas, com pesquisa feita através de livros editoriais, teses acadêmicas, artigos de jornais online, relatórios governamentais, entrevistas e reportagens. Sem pretensões de estilo ABNT em sua formatação, o repertório bibliográfico dá conta de ser um repositório suficiente para fácil acesso às fontes importantes.
Dizia que um livro não se julga (só) pela capa... mas, é por ela que se pode abrir-se à semiótica, à estética, ao que, de chofre, não escapa à visão. Da capa livro, dois elementos gráficos a compõem:
a) uma mão humana, direita, com pele enrugada e emaciada – recortada até a altura do punho, no limite da capa. Quatro de seus dedos (menos o polegar) estão dentro de uma rachadura, localizada na estrutura de uma parede branca;
b) uma parede branca, com alvenaria rebocada e aparente, que apresenta uma rachadura de alguns centímetros, em sentido vertical ao livro, ‘rasgando-o’ de alto a baixo.
Essa capa de Cidade rachada deu-me três passagens e... viajei.
"Cidade rachada: como a mineração engoliu cinco bairros em Maceió e arruinou a vida de 60 mil pessoas", livro de Cristina Serra (Máquina de Livros, 2025)
Com a primeira passagem fui, com Saramago, em sua Jangada de Pedra, até a fronteira entre a Península Ibérica e a França Europeia e a mesma rachadura que deixou a Ibéria à deriva no Oceano Atlântico, na escrita do lusitano – e a deslocou rumo ao continente Latino-Americano – essa mesma rachadura veio se alimentar das rachaduras de Maceió, AL.
A segunda passagem me levou à Necrópole Militar do Palácio dos Inválidos, em plena Paris, até me deter no túmulo de Napoleão para perceber como a posição dos seus dedos ocultados sob a roupa – assim como ocultos estão os dedos na rachadura da capa do livro – se tornou um símbolo de ‘status, poder, tirania’ e de como a mão humana detentora dessa tríade pode devorar mundos inteiros.
Com a terceira passagem cheguei à Galileia, na companhia de Tomé, um dos apóstolos do Cristo, e ouvi o ressoar de uma voz que dizia ‘põe a mão em minha ferida e não seja incrédulo’ (Jo 20, 27). As rachaduras que arruinaram a vida de 60 mil pessoas em cinco bairros de Maceió, AL, são as mesmas chagas abertas pelas lanças manuseadas por aqueles que oprimem e continuam a condenar, hoje, o povo crucificado ao desespero, à dor, à morte... O Cristo cravado na Cruz... a Cruz cravada no Chão. E, com Galeano, indigno-me ao constatar que as veias da América Latina continuam abertas, chagadas, hemorrágicas, agora também em Maceió, AL.
Ao ler a narrativa de como a Mina 18, da Braskem, colapsou; que boa parte da sanidade do povo de cinco bairros em Maceió colapsou; consigo anuir com Guterres, na ONU, que relatou que o planeta está, hoje, em colapso e, portanto, não há mais volta, apenas remediação. E, como síntese, vale o registro de que o que encontrei no livro de Cristina Serra foram vidas e vozes, anúncio e denúncia, em (mais) uma Cidade rachada... entre rachas, rixas, rachaduras e rachadinhas... tudo faz parte do mesmo colapso, da mesma múltipla crise!
Por fim, ao concluir a leitura de Cidade rachada, descobri o que queria, particularmente: reconhecer o instante em que o capitalismo devorou minha infância!
Foi no “começo de 2019, um dia, por volta das 15 horas”... (p. 229).
É com esta narrativa temporal que se apresenta o momento no qual o último abalo da mineração da Braskem condenou fatalmente a estrutura do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, no bairro de Bebedouro.
Este Colégio Bom Conselho, fundado em 1877, viveu e sobreviveu a duas guerras mundiais e outras tantas... ele era espaço em que a minha vida era o Colégio... Viveu e sobreviveu a secas e enchentes... nele, a vida do Colégio era a minha... Viveu e sobreviveu à ditadura militar... no Bom Conselho, a vida mesma era meu Colégio.
Viveu e sobreviveu... até que a predação neoliberal o matou.
Agora e nas gerações futuras, não mais poderemos adentrar àquela Casa de Educação;
nem participar das procissões de Santo Antônio, no mês de junho, na Igreja da Matriz;
nem desfrutar dos parques instalados para a festa do padroeiro em frente à Igreja Praça Lucena Maranhão;
nem ouvir as bandinhas no coreto, nem dançar Coco de Roda, nem ver apresentação de Chegança e Reisado nos palcos daquela mesma praça...
Um manifesto me ocorre: apenas os nossos folguedos alagoanos, como nosso Guerreiro, é que deveriam ter o poder de fazer o treme-terra!
E, agora, não mais poderemos visitar e viver os lugares sagrados de meus primeiros sacramentos; tampouco aguardar os fiéis vivos que, com suas velas de novembro, chegavam para fazer memória e culto aos fiéis finados, nossos antepassados, que foram sepultados no Cemitério do bairro, à rua Sabino Romariz, onde nasci e cresci...
Sei e sinto tudo isso já que também eu sou um dos 60 mil, sou nascido e criado um ‘filho de Bebedouro’, como por lá dizemos... eu, alagoano de Maceió, que não mais poderei pisar e sentir o meu chão de criança na rua descalça, pois o capitalismo devorou minha infância.
Notas
SERRA, Cristina. Cidade rachada: como a mineração engoliu cinco bairros em Maceió e arruinou a vida de mais de 60 mil pessoas. Rio de Janeiro: Máquina de livros, 2025. 256 p.
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